Nossa discussão contou com a apresentação de Elisa Werlang, a quem agradecemos a rica contribuição. Não podemos deixar de citar Cida Malveira, pelo trabalho intenso com as transcrições, que ajudou muito no recolhimento das questões abaixo. O que se segue serão os pontos em torno dos quais nosso trabalho com o caso se deu, o que mobilizou os participantes. Não cabe nomeá-los todos aqui, mas agradecemos suas considerações fundamentais na produção desse texto.

Contexto

O caso da jovem homossexual aparece num momento importante para Freud. Trata-se de um caso em que Freud mobiliza a interpretação dos sonhos e a teoria da sexualidade, e o caso mostra a questão da pulsão de morte. A hipótese levantada é que aparece aí algo novo que não tem solução no amor do pai. Que Freud era esse que escreveu sobre esse caso? Ao lê-lo, nos perguntamos: em termos lacanianos, o que estava em jogo para além do pai e do dom no momento da publicação desse caso?

Identificação ao pai?

É marcante no caso o episódio em que o pai dá à mãe um filho, acontecimento que vai delimitar uma virada na posição subjetiva na jovem homossexual. Ela deixa de brincar de ser mãe de bonecas para se identificar à posição viril do pai. O que vai se concretizar quando, mais tarde, vai passar a seguir de maneira devota uma dama, a quem vai lhe dedicar um amor de “fã”, o amor cortês.

Nesse ponto, surgiu uma pergunta sobre a identificação: é possível dizer que a jovem homossexual de fato se identifica a um homem? Fazendo um contraponto ao caso Dora, parece que Dora se identifica ao Sr. K e ao pai, ao amor e ao desejo por uma mulher. Ela passa pelo homem para acessar algo do feminino. Já no caso da jovem homossexual, isso não é claro.

Os esquemas que Lacan apresenta para dar conta do caso no Seminário 4 não nos permitem ficar na leitura freudiana, a da identificação ao pai, identificação à mãe. A questão do feminino vai aparecer como sendo aquilo que justamente pode forçar para entrar neste jogo, o que não funciona.

Na leitura do caso, de um lado aparece uma questão: o lugar do pai da homossexual seria justamente o lugar de um homem potente, ele era importante na economia do Império Austro-húngaro, um homem muito rico. Lacan coloca: “o que um homem que tudo tem pode amar e desejar?”. Ou seja, como o pai vai fazer para entrar na dialética do dom, signo do amor, que é dar o que não se tem, dar a falta? Ele, que não se apresenta como aquele que dá uma falta, e sim quem dá algo concreto e de valor fálico, um bebê para a mãe. Vemos que a resposta da homossexual está ligada a isso: o lugar que ela vai ocupar como objeto é um certo lugar em resposta a não transmissão do pai daquilo que ele não tem, mas que ela supõe poder ostentá-lo com a construção do amor cortês, o que Lacan dirá ser como mostrar ao pai que é possível amar uma mulher na sua falta. Mas, no caso da sua passagem ao ato, quando ela “cai” na linha do trem, ela ficaria nesse lugar de objeto para barrar a prepotência do pai, assim como para descompletá-lo? A solução poderia ser um para além do pai, uma saída para o feminino?

Para encontrar a dama, a jovem homossexual dissimula, dá várias desculpas, mente para a família, mas ela não mente, não dissimula, diz às claras, faz questão de ostentar quando está com a dama na rua. Ela se oferece a um certo olhar, ao olhar do pai. O pai sabia que ela se dirigia a ele, como vingança, a mãe condescendia porque tirou alguém da competitividade, de certa maneira, estava mais tranquila com a escolha homossexual, competia com a filha para ter a atenção dos homens. Trata-se de uma mãe diferente da do caso Dora, pois a mãe de Dora não se colocava como objeto do desejo de um homem, e Dora não a usa na saída subjetiva.

Transferência

Passamos à transferência para pensar como aparece o amor de transferência com Freud e como ele reage a isso. Freud se engana por não querer se enganar, por não querer bancar o tolo[1]. Essa afirmação está referida ao lugar na transferência em que Freud passa a ser colocado pela jovem homossexual, o que aparece quando ela lhe endereça sonhos cujo conteúdo versa sobre o anseio por um amor de um homem e filhos, ali onde os sonhos prenunciavam a “cura pela inversão” da homossexualidade por meio do tratamento de uma maneira enganadora.

Essa atitude de Freud é criticada por Lacan da seguinte maneira:

Afirmando que lhe é prometido o pior, o que ele [Freud] quer evitar é sentir-se ele mesmo desiludido. Isso quer dizer que está prestes a iludir-se. Pondo-se em guarda contra as ilusões, ele já entrou no jogo. Ele realiza o jogo imaginário. Fá-lo tornar-se real, já que está dentro dele. […] Na medida em que está, e que interpreta precocemente demais, ele faz voltar ao real o desejo da moça, quando era simplesmente um desejo, e não uma intenção [consciente], de enganá-lo.[2]

Freud se engana ao não querer se enganar, pois não se deixa usar como objeto na transferência, não aceita o lugar de enganado que é oferecido a ele pela jovem homossexual, e quando interpreta a transferência, acaba agindo a partir desse incômodo, sem se deixar usar para servir-se disso. Mas, poderíamos pensar aqui também: o que está em jogo no engano que a jovem homossexual procura promover com relação ao pai?

Outro ponto ressaltado foi: o que fez impasse a esse caso? Lacan falar como se tivesse sido um erro de Freud, se podemos dizer assim; Freud identificado com o pai enganado. A leitura que ele faz da mulher é que ela ilude. Então, ele vai se iludir para se desiludir, é algo que no caso Dora já tinha aparecido, no que Freud interpreta como fantasia de vingança de Dora, uma fantasia sádica.

No caso da jovem homossexual, Freud fala de um desejo de vingança do pai, porque havia uma interdição que ela havia feito ao viril. Ele situa uma fantasia masoquista. Isso pode ter a ver com o momento do Seminário 4, em que Lacan tenta esvaziar a imaginarização a que uma análise pode levar. Mas há outra coisa em jogo: se trata do encontro de Freud com a tentativa de suicídio, a possibilidade da jovem homossexual se jogar, dela realmente se colocar no lugar de sacrifício.

Amor platônico e dom

Com relação ao amor platônico que a jovem homossexual dirige à dama, é importante ressaltar que o que Lacan pontua é que esse amor visa a não satisfação sexual e que, por ser da ordem de um “amor ideal”, “institui a falta [não há relação sexual, por exemplo] na relação com o objeto [amado]”[3]. Lacan afirma que o que a jovem homossexual procura mostrar ao pai com relação à falta é que seria possível amar “verdadeiramente” alguém, a dama, em sua falta.

O que coloca a seguinte questão:

O reflexo da decepção fundamental nesse nível, sua passagem ao plano do amor cortês, a saída encontrada pelo sujeito nesse registro amoroso, colocam a questão o que é, na mulher amado para além dela mesma, e isso põe em causa o que é verdadeiramente fundamental em tudo o que se relaciona com o amor na sua realização[4].

 

E aqui o dom:

Essa necessidade de situar o eixo do amor, não no objeto, mas naquilo que ele não tem [naquilo que o objeto resguarda de falta], nos põe, justamente, no coração da relação amorosa e do dom. É este algo que o objeto não tem e que torna necessária a constelação terceira da história deste sujeito.[5]

Fazendo uma articulação ao caso Dora: ela coloca a Sra. K nesse lugar para onde o “x” do desejo do pai incide, aquilo que ele ama para além dela mesma. O enigma do desejo do pai, que escapa, se dirige para a Sra. K, e ela passa a encarnar para a Dora alguém suposto saber sobre o ser de mulher. Para isso, é preciso existir uma montagem, para que esse circuito se estabeleça dessa forma: é preciso haver uma identificação de Dora com o pai pelo que dele aparece como a carência da sua função paterna, a sua falta traduzida nos sintomas somáticos de Dora e por meio de quem ela “ama por procuração”: a Sra. K. Esse aspecto da lógica do dom no Édipo em Freud é um clássico na psicanálise: a figura do pai como aquele que transmite a lógica fálica a partir da sua transmissão de uma falta. Ao final, é a figura paterna destituída que a Dora obtém como saldo: o Sr. K saiu destituído, como aquele que não tem nada com sua mulher e não tem dinheiro, e o próprio Freud, a quem Dora se despede com um sorriso enigmático de Gioconda.

Nossa questão, portanto, abrange na lógica do dom o papel do feminino nesse comércio de trocas. Ali, onde Dora se situava em uma troca silenciosa de presentes preciosos entre seu pai, sua amante e o Sr. K, o que também está presente na sua denúncia quando do desencadeamento de sua neurose, quando ela se diz reduzida a mero objeto “de uma troca odiosa”. Pois, a mulher não é um objeto de troca qualquer nesse circuito em que tudo pode ser arranjado. De que maneira o feminino aí se engaja? Há um impasse e um embaraço próprios ao feminino presentes nessa questão do dom.

[1] “Advertido por uma ou outra ligeira impressão, disse-lhe certo dia que não acreditava naqueles sonhos, que os encarava como falsos ou hipócritas e que ela pretendia enganar-me, tal como habitualmente enganava o pai”. Freud, S. (1920) “A psicogênese de um caso de homossexualismo numa mulher”. In: ESB. RJ: Imago, 1996, p. 204.

[2] Lacan, J. (1956-57) O Seminário, livro 4: a relação de objeto. RJ: Zahar, 1995, p. 109.

[3] Lacan, op. cit., p. 109.

[4] Op. cit., p. 111.

[5] Op. cit., p. 131.