Algumas observações sobre o desejo do analista e o manejo da transferência no tratamento das toxicomanias a partir do caso da jovem homossexual[1]

 

O que nos ensina o caso da jovem homossexual de Freud sobre o tratamento das toxicomanias? Essa é a questão central que foi produzida pelo Núcleo de pesquisa sobre toxicomanias e alcoolismo.

A partir das discussões do Núcleo de pesquisa, alguns questionamentos foram levantados como possíveis aproximações entre o caso e a clínica com as toxicomanias. Fundamentalmente, nossas leituras nos guiaram em direção à reflexões sobre o manejo da transferência, o desejo do analista e a passagem ao ato. Essas noções nos pareceram relevantes nas articulações clínicas que são parte integrante das discussões no núcleo de pesquisa.

Ao tomarmos o caso da Jovem homossexual como parte de nosso objeto de investigação, revelou-se a questão sobre a demanda de tratamento, que parece tangenciar o cotidiano de trabalho de alguns participantes do Núcleo. Notamos que, comumente, o movimento de busca por tratamento das toxicomanias é promovido, não pelos próprios usuários, mas por aqueles que se dispõem a cuidar desses sujeitos. Analogamente ao caso da Jovem, nos tratamentos das drogadições a demanda também não surge do próprio sujeito, mas de seus pais, que gostariam que ela fosse curada de sua “inversão”. O que decorre disso, como sabemos, é a produção dos sonhos da jovem, dirigida à Freud, que os toma como não verdadeiros. Serge Cottet[2] (1989, p.50) nos relata com precisão essa passagem do caso:

“O fato de que Freud seja o analista não o distingue, por um significante novo, de um pai “suposto” que almeja desviá-la de sua perversão. Freud, contudo, percebe com justeza que ela sonha para seu analista, supondo neste o mesmo desejo que tem seu pai. A partir dessa técnica de interpretação, tem-se fundamentos para fazer a seguinte pergunta: que papel desempenha Freud?”

Nos tratamentos das toxicomanias, notamos algo próximo a uma demanda que se apresenta como “mentirosa”, como foi apresentada no caso freudiano. Isso se evidencia por algumas razões que a clínica nos mostra. Inicialmente, essa demanda se verifica, possivelmente, porque há um discurso corrente, estabelecido culturalmente no tratamento das toxicomanias, que correlaciona a cura à abstinência. Nesse sentido, há sujeitos que se apropriam disso como um discurso de mestria, como tentativa de aproximação do Outro, como o esboço de uma demanda ao Outro.

O que mais nos ensina o caso da Jovem? Para Lacan, no Seminário 10, há um momento fundamental que circunscreve a questão freudiana sobre a paixão pela verdade. No ponto em que Freud não se engana sobre as “mentiras” da jovem, é exatamente ali, segundo Lacan, que “trata-se justamente do que cria a aparência de uma ausência de qualquer relação transferencial”[3]. Digamos que mesmo certo de que não se enganava, em sua interpretação, Freud estava numa relação transferencial, segundo Lacan.

A partir dessa citação outra questão se impõe. É possível dizer que Freud teria sido enganado, não pela jovem, com seus sonhos mentirosos, mas por sua paixão pela verdade? Freud teria passado ao ato, ao interromper o tratamento, pouco tempo depois de comunicar à jovem seu julgamento sobre os sonhos? Lacan, no mesmo seminário, ao retomar a questão sobre a mentira sintomática da jovem, afirma que a passagem ao ato de Freud ocorreu quando “sem ver o que o atrapalha, ele se emociona, como certamente o mostra, diante dessa ameaça à fidelidade do inconsciente. E então, passa ao ato”[4]. O que poderíamos extrair dessa passagem como ensinamento para a questão sobre o desejo do analista?

Lacan, no Seminário 10, situa a questão sobre a verdade mentirosa do sintoma e retoma sua afirmação de que a verdade possui estrutura de ficção. O que nos ajuda a pensar sobre o lugar ocupado por aqueles que se dispõem a tratar dos usuários em serviços especializados para álcool e drogas, os chamados CAPS AD. Tendo em vista a dificuldade inerente aos usuários de drogas em estabelecer uma demanda de tratamento e um laço transferencial, as toxicomanias se situariam como um anti-amor, como nos diz Miller no texto A teoria do parceiro.

Alguns praticantes da clínica com toxicômanos e alcoolistas, atravessados pela psicanálise, relatam questões importantes sobre as dificuldades encontradas no manejo da transferência, que em muitas situações, não é levada em conta nos centros de tratamento. O uso de discursos validados pela saúde mental, muitas vezes corroboram uma mestria sobre o sujeito, para não lidar com o que se apresenta como uma demanda. Nesse sentido, podemos retomar a observação de Lacan no Seminário 10, sobre a transferência com Freud. Acolher a “mentira” do toxicômano pode colaborar com o estabelecimento da transferência.

Resumidamente, é necessário acreditar que para além da fala típica dos usuários, como as promessas de abstinência, há a possibilidade de que um desejo se enuncie. Na clínica com as toxicomanias e no que pudemos depreender do caso da jovem homossexual, não há transferência ao saber suficiente para que o sujeito sustente uma pergunta a seu sintoma e o transforme em enigma. Há toda uma tentativa de preencher a fratura estrutural. Cabe ao analista aqui, dirigido por sua ética, não se deixar adormecer e escutar o sujeito em suas coordenadas significantes. Estar atento à verdade que o sintoma porta é o indicativo para que algo do desejo do analista esteja presente.

[1] Trabalho realizado pelos participantes do Núcelo de pesquisa sobre toxicomanias e alcoolismo. São eles: Clarice Cabral, Deborah Souza, Luisa Brand, Luiza Sarrat, Maurícia dos Reis Leandro, Rodrigo Abecassis(Coord. Adj.), Sarita Gelbert( Coord.), Viviane Tinoco e Wagner Erlange.

[2] Cottet, S. Freud e o desejo do analista, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, RJ, 1989. p. 50.

[3] Lacan,J. O seminário livro 10: a angústia, Riode Janeiro: Jorge Zahar Ed.,2005.p.143.

[4] Idem, p144.