Paulo Vidal
Convidado para falar sobre clichês na psicanálise, mais precisamente sobre o clichê “Freud explica”, partirei de uma definição linguística de clichê: nos deparamos com um clichê quando um significante se acha invariavelmente conectado ao mesmo significado. Temos portanto um laço entre S1 e S2 gerador de redundância. Assim, no Dicionário das Ideias Recebidas de Flaubert, verdadeira enciclopédia dos clichês da sociedade francesa do século 19, lemos na entrada prostituta: “é um mal necessário. Salvaguarda de nossas filhas e de nossas irmãs enquanto houver solteiros”. No verbete “artistas”, temos: “todos farsantes…O que fazem não se pode chamar trabalhar”.
Se o clichê amarra um significante 1 a um significante 2, que lhe dá significação, ele produz uma alienação do sujeito às significações do discurso do Outro, ao desejo do Outro ao qual ele consente, se presta, sem interrogá-lo. Crença no Outro que caracteriza o tolo, ao passo que o canalha não crê no Outro, se faz de Outro em função dos seus interesses de gozo. A uma apoiadora que lhe pediu uma “palavra de conforto” para os familiares das vítimas de covid, nosso presidente respondeu: “a gente lamenta todos os mortos, mas é o destino de todo mundo”.
Num programa de televisão argentino, o repórter perguntou para os participantes de uma mesa redonda, da qual fazia parte o escritor Jorge Luis Borges, quantos mortos e desaparecidos a ditadura argentina tinha deixado atrás de si. Os interlocutores apresentaram estatísticas diversas – 2, 3, 5 mil mortos e desaparecidos -, até que Borges tomou a palavra para dizer: um, tocando assim a cada um dos ouvintes.
Sibilina como um oráculo, a intervenção de Borges foi uma interpretação. Em vez de satisfazer à pergunta do jornalista, ele a transformou em outra questão, inesperada para o interlocutor, que o dividiu e o convocou para decifrá-la. Chegamos assim ao “Freud explica”, “só Freud explica” e também ao “nem Freud explica”, enunciados que igualmente conferem uma dimensão oracular ao dizer de Freud. Pois são sintagmas pronunciados quando algo não se explica, quando um vazio de sentido se impõe e abre para uma possível mudança de discurso. Digitei no google ato falho e imprensa, dei enter, eis um dos resultados: “Ato falho! Abel Braga chama Flamengo de Fluminense em coletiva de imprensa”.
Como se a realidade desde Freud comportasse essa função de perturbação do enunciado pela enunciação cujo paradigma é o ato falho, função que torna o sujeito senão um analisante em potencial, pelo menos um sujeito inclinado à histericização, à produção de atos falhos ou acting outs (no sentido de colocar em cena, mostrar aquilo que não é ouvido pelo Outro). De fato, é notório que baste alguém se declarar analista ou mesmo psi em certos ambientes, numa reunião social por exemplo, para que os atos falhos comecem a pulular entre os convidados, discreta ou espetacularmente. A invenção freudiana instituiu na cultura um Outro do endereçamento, Outro que comporta o analista.
Embora a invenção da psicanálise tenha decorrido do projeto freudiano de estender ao psiquismo as coordenadas das ciências naturais, em Análise com Fim e infinita (1937), a propósito do espinhoso problema da resolução durável de uma exigência pulsional ao fim de uma análise, Freud escreveu que podemos apenas dizer ‘é preciso então apelar para a feiticeira`, ou seja, a feiticeira metapsicologia. Sem a especulação metapsicológica e sem a teorização – eu diria quase o fantasiar – não se dará um passo adiante. Infelizmente, ainda desta vez as informações da feiticeira não serão nem muito claras nem muito detalhadas (p. 140).
Por que a “feiticeira metapsicologia”? É uma citação do Fausto de Goethe. Quando Fausto solicita o elixir da juventude para Mefistófeles, este o aconselha a viver na paz do campo, um conselho riponga ao qual Fausto retruca que “é estreito demais”: ele quer mais e inclusive que Mefistófeles prepare a poção. Como tal arte escapa a Mefistófeles, para solucionar o impasse só lhe resta declarar “é preciso então apelar para a feiticeira” e conduzir Fausto até uma feiticeira que prepara o elixir num tacho.Como se nota, a intervenção da feiticeira metapsicologia visa rejuvenescer, renovar a teoria para resolver uma aporia surgida na clínica. Evidentemente, a feiticeira pode responder ou não à invocação, mergulhando no seu caldeirão patas de sapo, asas de morcego e outros restos com os quais bricola a poção requisitada. Mas, o que faz aqui a invocação da feiticeira, de um Outro decerto estranho, avesso mesmo à epistemologia cientificista e positivista?
Para entendermos melhor isso, exploremos o conceito de abdução de Peirce, procedimento através do qual Freud inventou o conceito de inconsciente. Único procedimento que dá lugar a uma nova ideia, a abdução tem para Peirce a estrutura de um ato: ao modo de um relâmpago, interrompe a cogitação do pesquisador num salto ao limite cujo resultado é o novo. Desprovida de fundamentos por ser um salto, na abdução as premissas não garantem a conclusão. Em termos lógicos, a abdução é a inferência a favor da melhor explicação: a hipótese A, ao ser verdadeira, explica B, nenhuma hipótese pode explicar tão bem B quanto A. Logo, A é provavelmente verdadeira, mas as premissas não garantem a conclusão, diversamente do que ocorre no raciocínio dedutivo. Criativa, a sopa da feiticeira é uma afirmação primordial, apofântica, equívoca, anterior à predicação do sim e do não.
Em psicanálise, não existem procedimentos que, de modo necessário, precipitem uma conclusão. Em vez da demonstração como nas matemáticas, recorremos à argumentação na língua, a qual exige uma decisão, sempre subjetiva, que responda à inconsistência da linguagem. Argumentação que, por suposto, passa pela exposição pública do saber elaborado no cartel, na escola.
Em resumo, quem pratica a psicanálise se defronta inevitavelmente com a seguinte questão: como se situar numa tradição e desse texto fazer surgir outro texto que responda às perguntas da atualidade, não fazendo dele portanto um clichê a ser seguido como um destino? Afinal, o clichê é equívoco, faz pensar e impede pensar. Existe em Freud uma enganosa clareza, a qual ninguém tensionou melhor que Lacan. Confrontado com o impossível de se pensar, Freud recorreu às ciências da natureza e à construção de mitos: para pensar a origem da cultura, o mito do assassinato do pai da horda; para pensar a origem da hiância que afeta a relação dos humanos com o sexual, o mito edípico. Por relação a esta mitificação do impossível, Lacan preferiu denominar real esse impossível. Podemos dizer que a trinca real-simbólico-imaginário tomou o lugar dos 3 pontos de vista metapsicológicos, econômico/ dinâmico/tópico. Lacan também empregou saberes que, tendo a ver com outro real que a psicanálise, deram à ciência moderna meios para operar sobre o real que lhe é próprio: a matemática e a lógica. Contudo, levando em conta que o real da psicanálise não é o mesmo que o da ciência, Lacan se apoiou em outros saberes, particularmente em certo saber fazer: o saber implicado pela operação do poeta na língua.
Ao estilo romanesco de Freud, mais versado no romance clássico de Goethe e na mitologia, podemos opor o estilo poético de Lacan, capaz de dizer “Je suis né poème, mais papouète”. Este “eu nasci poema” toca na relação nativa do falasser com lalíngua. Eis a feiticeira de Lacan, é aquela da qual fala Baudelaire, aquela que exerce sua feitiçaria encantatória na língua. Pois lalíngua nos faz nascer poema, o infans, o pequeno ser que ainda não fala, lalíngua faz com que ele nasça, enquanto falasser, poema.
Para finalizar, gostaria de colocar a seguinte pergunta: Freud ainda explica? O inventor da psicanálise tentou fundar o inconsciente estendendo o princípio de razão, segundo o qual nada é sem razão, a fenômenos que escapavam à racionalidade científica da época, notadamente o sintoma histérico, cujo valor de verdade Freud denunciou. Ao lado do inconsciente freudiano, operamos hoje com a noção de inconsciente real para dar conta das configurações dos gozos, dos sintomas. Diversamente do tempo de Freud, o discurso hegemônico de hoje não é mais o discurso do mestre, mas o discurso do capitalista, que visa alocar todos os gozos na máquina incessante, insaciável da produção/consumo, da acumulação infinita do capital. Ora, os sintomas que perturbam o ciclo infernal do mais de gozar são aqueles que põem em causa a vida e a produtividade, a chamada depressão por exemplo, entendida como pane da máquina do sujeito. De acordo com um estudo realizado pela London School of Economics em 2016, os prejuízos em produtividade causados pela depressão chegaram a 246 bilhões de dólares em todo o mundo. Uma vez que no discurso do capitalista prepondera o laço pouco social entre o indivíduo e os produtos, o consequente desamparo acentua também nos sujeitos um desejo de integração via retorno no real das vozes de exceção, dos fundamentalismos.
Ora, a sociedade democrática, ainda mais na fase que Bauman popularizou como “modernidade líquida”, é condição evidentemente da psicanálise, esta só respira num laço social democrático porque tem como meio a fala e também porque opera sobre um sujeito que desliza de um significante para o outro, cuja paixão é a falta a ser, que sofre da falta a ser, ou seja, um sujeito que procura lastrear, justificar a sua existência.
Que o sujeito não tenha razão de ser, seja contingente, não é decerto algo novo historicamente, mas se torna causal na subjetividade moderna, que não dispõe mais de um Outro garantido por deus. Contudo, o próprio cunhador da expressão modernidade líquida, Bauman, nos advertiu de que poderia haver um retorno do pêndulo, do líquido para o sólido, da amplificação da liberdade para a revalorização da segurança. No meu entender, esse retorno do pêndulo envolve uma política na qual o ódio é um afeto capital, melhor dizendo certa forma de ódio. Por exemplo, a atual política no Brasil e noutros países emprega como ponto de basta clichês como “quem faz oposição é comunista”, “imigrante é perigoso”. Procura assim interpor um muro entre nós e eles, entre o povo Um e o Outro. Contudo, uma coisa é dizer “imigrante é perigoso”, ainda pior é dizer “é perigoso porque é imigrante”. Quando inverto a proposição“imigrante é perigoso”, não caio numa tautologia, digo que a significação de “imigrante” no “porque é imigrante” não se reduz às propriedades atribuídas ao imigrante, ainda que sejam por exemplo “ladrão de emprego”, “terrorista” etc. Tais significações têm como referência um X, uma incógnita inomeável suposta causar tais significações. A sanha genocida se esforça precisamente em chegar a esse x, a essa coisa e exterminar esse gozo malvado.
Dá para notar que a retórica política descamba assim para o exagero e para o insulto, é um ódio que, como diria M. Klein, visa destruir o objeto mau. Numa entrevista, Trump declarou “eu sei o que se vende e o que as pessoas querem. Eu jogo com as fantasias das pessoas. Chamo isso de hipérbole verídica. É uma forma inocente de exageração e uma técnica de promoção muito eficaz”. Hipérbole verídica designa o estilo das declarações de Trump e outros políticos atuais, peremptórias, não dialéticas, se impondo indiscutivelmente como a verdade toda. Mas, o que faz com que a barreira da vergonha seja ultrapassada pelo insulto misógino, racista?
Ora, o que está em jogo nesse suposto falar a verdade não é a verdade no sentido psicanalítico, verdade que desponta nas entrelinhas, mas sim uma certeza, certeza de ser que essa paixão, o ódio, traz consigo. No seguinte trocadilho, Lacan evidencia o laço entre o ser do sujeito e o ódio: “plus il hait, plus il est”, mais ele odeia, mais ele é. À maneira de Descartes, Lacan postula aqui uma disjunção entre pensar e ser, de tal forma que nunca estou tão certo de ser que quando não penso. Juntando as duas proposições, o ódio garante o ser não pelo pensamento, mas pelo gozo: lá onde eu gozo, não penso. Para odiar, não é preciso pensar, salta aos olhos o quanto o ódio torna estúpido o sujeito cujo sentimento de existir depende inteiramente do ódio. Nas palavras de Spinoza, “o ignorante…tão logo deixa de sofrer, deixa também de ser”.