Comentários sobre a apresentação de Paulo Vidal, por Maricia Ciscato.

Primeiro, queria agradecer ao convite de Cristina Duba. Para mim é uma honra e um prazer poder estar aqui nessa troca sobre um tema tão bacana com colegas de quem tanto gosto. Paulo foi a pessoa certa para nos falar sobre clichês – com ele, as conversas sempre tendem para uma experiência viva, completamente fora de clichês, como acabamos de ouvir.

Outro ponto que torna especial, para mim, estar aqui é a quem se destinam esses encontros: um público que se aproxima do ICP e dos conceitos chaves da psicanálise. Essa (ao menos suposta) pouca intimidada com os conceitos lacanianos dos participantes nos provoca a expor fazendo um esforço de deslocamento da zona de conforto que é fazer uso de certa linguagem que, supomos – mesmo sabendo que isso não se aplica de fato – ser entendida por nós mesmos e por todos os ouvintes. É o famoso “lacanês”. Quando destinamos nosso trabalho, de texto ou de fala, a um público não tão íntimo da teoria lacaniana, nos obrigamos a “abrir” os conceitos e a nos depararmos de um modo muito especial com a invenção da transmissão e com o nosso próprio não-saber.

Paulo toca esse ponto, de um modo muito certeiro, quando, a certa altura de seu texto, coloca a questão: “Como se situar numa tradição e desse texto fazer surgir outro texto que responda às perguntas da atualidade, não fazendo dele, portanto, um clichê a ser seguido como destino”. Esse é um grande desafio para um psicanalista quando ele se propõe a trabalhar na transmissão da psicanálise. Em seu próprio texto, trazer uma escrita viva, para além da pura repetição de conceitos, ideias ou chavões. Como nos indica Freud a, clinicamente, ouvir cada analisante como se fosse a primeira vez, esse valor de ineditismo se mantém também como desafio na transmissão. E não é nada fácil. Por isso, sempre um prazer ouvir Paulo, que tem o dom de promover, com seu olhar e escuta, verdadeiras aberturas na teoria.

Antes de receber o texto de Paulo para comentá-lo, que é a minha agradável função aqui, fiquei me perguntando sobre o que o título proposto a essa atividade, “Freud explica?”, me abria como questão. Minha primeira associação tocou em um ponto que me tem sido caro em meu próprio trabalho pessoal sobre os lugares do saber e do sentido no decorrer de uma análise, como eles se movem, se modificam e – se tudo correr mais ou menos bem – fracassam. Comumente, uma “explicação” comporta uma expectativa de saber e de sentido, e a psicanálise lacaniana nos revira exatamente aí.

Primeira parte: S1-S2

Começo, então, destacando do texto do Paulo a ligação entre o que chamamos “S1 e S2”: S1, um significante primeiro, que vem acompanhado de outro a lhe dar um significado, um sentido. Paulo destaca que os clichês produzem uma alienação do sujeito às significações do discurso do Outro, de onde pegamos emprestados os significantes que nos constituem. Nesse sentido, os clichês “unem” S1 e S2 impedindo que um sujeito advenha do que pode se abrir “no entre” dois significantes.

É justamente aí, neste entre, que pode incidir uma fala a gerar enigma, equívoco, ou ao menos certo alvoroço, como nos brinda Paulo com a cena da intervenção de Borges diante das estatísticas macabras da ditadura argentina. Produz-se ali uma quebra entre significante e saber, e o sentido fechado, ‘chapado’, se abala. Paulo traz aí o instante em que certo vazio de sentido emerge, nisso em que um intervalo entre S1 e S2 é produzido.

É diante desse vazio de sentido que, inúmeras vezes, ouvimos a brincadeira: “Freud explica!”, privilegiada por Paulo em seu texto através do ato falho, forma de apresentação do inconsciente que ganhou um lugar social preponderante, aberto pela invenção freudiana. Essa “fala clichê”, destaca Paulo, anuncia um vazio de sentido e pode apontar para uma abertura, mas ao mesmo tempo fechá-la. Se a ligação direta entre S1 e S2 se refaz logo em seguida com mais explicações e mais sentidos, perdemos a abertura.

Além do ato falho, podemos pensar também do lugar do sintoma, que, tal como lido por Freud, é outra forma de apresentação do inconsciente. Foi, aliás, o sintoma a primeira questão que me veio antes de ler o texto do Paulo. ‘O sintoma tem sentido?’ – perguntei-me. Tem sentido, é claro, se pensarmos que, no decorrer de uma análise, se produzem não apenas um, mas inúmeros sentidos para o sintoma. Corre-se atrás, sessão a sessão, de explicações que visem dar conta justamente do “sem sentido” do sintoma. Aí tem o pulo do gato: o desfiladeiro de elaborações de sentido que o sintoma impulsiona um sujeito em análise a fazer é algo que se produz ali apenas para que se perca. Não é o encontro com um sentido último que orienta uma análise, mas o que está para além dele. É preciso que o sentido, afinal, fracasse.

E por quê? Não se trata de uma apologia à tolice, que, como bem marcou Paulo, é justamente o lugar de cola do sujeito na crença da consistência do Outro e, portanto, na crença de um saber absoluto e num tudo explicar. É preciso que o sentido fracasse, reiteradamente, para que se possa ter notícias do gozo que sustenta o sintoma e, neste ponto, não é da conjunção entre S1 e S2 que se trata, mas da conjunção entre S1 e gozo, “onde não há sentido recalcado, nem verdade a ser revelada”.[1]

A busca pelos sentidos do sintoma é parte fundamental do processo analítico, mas o encontro com o recalcado só servirá se produzir não um reforçamento de mais sentido, mas, justamente, uma liberação de sentido e, com isso, uma nova possibilidade de circulação pulsional.[2] Atravessar os desfiladeiros de sentidos em uma análise visa, portanto, a contingência do encontro entre significante e gozo. Esse encontro gera ao falasser a possibilidade de contar com o “sem-sentido” e com o “não-saber” para viver, amar e trabalhar.

Quando se diz “Freud explica”, essa fala é também uma alusão ao texto freudiano, no qual as associações nos desfiladeiros dos sentidos dos sintomas ou dos atos falhos encontram inúmeras camadas e são trabalhadas por Freud de um modo sempre surpreendente. Mas não podemos perder de vista que suas interpretações tinham, à época, um valor de subversão, de reviramento e de surpresa até então inéditos. Dizemos que tocavam um “real”. Quando Paulo lança a questão do final de seu texto: “Freud ainda explica?” ele está justamente nos perguntando se ainda somos capazes de, com as ferramentas da psicanálise, tocar o real de nossa época e dos sintomas que ela produz.

Mas, antes de irmos a esse ponto, quero retomar mais alguns momentos do texto do Paulo que me pareceram primorosos e fazem vibrar sempre a disjunção entre S1 e S2. Queria destacar “a feiticeira metapsicologia” – adorei isso – que visa não imprimir uma carga de explicações que poderiam ser tomadas como científicas ou como “sabidas” sobre os impasses clínicos, mas justamente o contrário: “renovar a teoria para resolver aporias que a clínica apresenta”, tal como justamente o lugar da pulsão ao final da análise, já levantada por Freud em Análise terminável e interminável.

Ou ainda, quando Paulo destaca o “impossível de se pensar” em Freud. Diz: “Há em Freud uma enganosa clareza, a qual ninguém tencionou melhor que Lacan. Confrontado com o impossível de se pensar, Freud recorreu às ciências da natureza e à construção de mitos: para pensar a origem da cultura, o mito do assassinato do pai da horda; para pensar a origem da hiância que afeta a relação dos humanos com o sexual, o mito edípico.”

Queria destacar esse lugar dos mitos freudianos que Paulo levanta, os mitos entrando justamente no ponto em que um vazio de sentido emerge e algo de um impossível de saber se apresenta. Freud não recobre isso com mais sentido, mas muda o estatuto do seu texto e incluí, aí, os mitos. A este ponto de impossível, Lacan, diz Paulo, nomeia “Real” e ele mesmo recorre ao apoio nas operações matemáticas e, principalmente, poéticas, com e na língua, fazendo de si mesmo poema.

Segunda parte: entre questões e certezas

Por fim, chego à parte final do texto de Paulo, que traz os efeitos da primazia do discurso capitalista hoje. Sobre essa parte, vou trazer mais questões do que comentários, porque pensar os tempos de hoje me levanta muitas questões! É uma época que nos desafia. Penso que produzir questões e buscar circunscrever, entre elas, as “boas”, ou seja, aquelas que podem nos por a trabalho, é fundamental – a cada um. Não desfaço da importância do comentário, principalmente para quem os faz, pois é um modo muito vivo de aprendizado – e eu aprendi podendo comentar o texto de Paulo –, mas penso que o desenho de questões possa de fato ter um valor maior. É onde o vazio de sentido emerge mais vibrante.

Fez-me questão a afirmação de Paulo na qual “a psicanálise só respira num laço social democrático”. Será mesmo, Paulo? Se for isso mesmo, não estamos em apuros? Estamos respirando, é certo, mas estamos num “laço social democrático”? Será que a democracia, pelo menos aquela que conhecemos, atrelada ao estado de direito, regida por leis, escritas em uma constituição que regula o laço social, ainda se sustenta nesta nossa época de Outro que não existe?

Se estamos no retorno do pêndulo, vindo da priorização da liberdade para a priorização da segurança, em que a verdade perde seu lugar e o ódio ganha preponderância na própria forma de fazer política, em que o gozo é o ponto de horror – sempre alheio – a ser eliminado, exterminado, e manipulado politicamente, já não estamos exatamente numa democracia, ao menos assim me parece, numa primeira leitura. A democracia que conhecemos conta com o vazio da lei e com seu “núcleo louco” e, por conta disso, com a força da lei – com todas as questões que isso levanta e que Cristina Duba já tantas vezes trabalhou no Núcleo de Psicanálise e Direito do ICP.

Ainda podemos contar com a lei? Pra mim, estamos mais para a lógica totalitária, em que a lei não existe a partir do furo, mas na voz do próprio führer – embora eu também não acredite que possamos nos servir dos sistemas totalitários como referência histórica para nomear o momento, já que não há o Um da exceção a sustentá-la em uma sociedade líquida. Na verdade, não me parece que tenhamos muitos nomes já conhecidos para dar ao tipo de política que se anuncia no regimento atual do laço social. E isso nos exige mais ainda, certamente, mas não sei se podemos afirmar que sem a democracia não teremos como seguir. E se ela mudar tanto que não se chame mais democracia? E se o discurso capitalista aliado à “política do ódio” seguir ganhando corpo, os psicanalistas não terão suas ferramentas para fazer, aqui e ali, surgir o inconsciente, tocar o falasser, ou trabalhar a partir da angústia? Criar seus nichos democráticos, num ambiente árido, mas nos quais a palavra pode circular?

A lógica que visa “interpor” um muro entre “nós e eles” é a aquela nomeada por Freud como “narcisismo das pequenas diferenças” – em nossa época, poderíamos dizer talvez que essa lógica foi elevada ao zênite? Sobre ela, vale lembrar um trecho de Freud em Psicologia das Massas e Análise do Eu:

(…) cada pequeno cantão encara os outros com desprezo. Raças estreitamente aparentadas mantêm-se a certa distância uma da outra: o alemão do sul não pode suportar o alemão setentrional, o inglês lança todo tipo de calúnias sobre o escocês, o espanhol despreza o português. Não ficamos mais espantados que diferenças maiores conduzam a uma repugnância quase insuperável, tal como a que o povo gaulês sente pelo alemão, o ariano pelo semita e as raças brancas pelos povos de cor.[3]

Nesta montagem segregativa, em que o Eu se fortalece, é preciso sustentar a diferença imaginária para se manter íntegro e a salvo. O problema é que, hoje, me parece, essa diferença não está mais garantida e é preciso, incessantemente, fazê-la existir, sob o risco de, num descuido, deixar de fazer parte do “nós” e passar a valer como “eles” – quantas vezes vimos isso ao longo dos últimos meses em que “memes” proliferam anunciando o mais novo “comunista” da vez, por exemplo.

Ao final de seu texto, Paulo afirma: “Ora, o que está em jogo nesse suposto falar a verdade [referindo-se a Trump ou similares] não é a verdade no sentido psicanalítico, verdade que desponta nas entrelinhas, mas sim uma certeza, certeza de ser que o ódio, essa paixão, traz consigo.” Quanto mais o sujeito odeia, mais ele é.

Neste ponto, minha pergunta se volta para como o analista maneja (já estamos manejando, não?) para fazer aparecer, no atual contexto, não o ponto da “certeza de ser”, consistida pelo ódio, mas para abrir um trabalho a partir da certeza da angústia, um trabalho que pode criar intervalos e possibilidades para além do recrudescimento do ódio e da segregação.


[1] Sobre isso, vale ler o belo texto de Lucíola Freitas de Macêdo intitulado “O fracasso do sentido em psicanálise”, de onde extraí essa citação. Disponível em Opção Lacaniana on-line, N. 8, de julho de 2012: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_8/O_fracasso_do_sentido_em_psican%C3%A1lise.pdf
[2] Idem.
[3] Freud, S. Psicologia das massas e análise do eu. Em: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora. Vol. XV. P.112.
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