Flavia Trocoli

Alguém já disse que são tantos Hamlets quanto são os seus leitores. Então, vou limitar-me a ler Hamlet através de seus leitores. Essas indicações de leitura, que apresento hoje aqui[1] de maneira mais topicalizada do que argumentativa, se organizarão através da ênfase em um eixo problemático, a saber: a relação disjuntiva entre pensamento e ação, questão exaustivamente trabalhada desde o romantismo alemão até Harold Bloom.

A tragédia grega – estrutura da ação trágica: dando destaque ao fato de que a tragédia grega surge ao mesmo tempo que o Direito, Vernant e Vidal-Naquet, em Mito e tragédia na Grécia Antiga, propõem que a tragédia grega sustenta-se em uma estrutura ternária em que se enlaçam a estética, a política e a psicologia. Diferente da epopéia em que a ação dos homens estava ligada aos deuses e às suas qualidades, a ação trágica é o núcleo da tragédia, o herói é agente e paciente da ação, é engendrado pela ação.

Drama de Hamlet – pensamento sem ação: mais de 20 séculos depois, enquanto Racine ainda se esmerava em seguir o modelo grego, Shakespeare reinventará, por assim dizer, o trágico através de Hamlet, o herói que justamente procrastina sua ação. Hamlet pensa e não age. Depois da saída do fantasma, Hamlet diz: “Só o teu mandamento permaneça nas páginas do livro do meu cérebro.” Ainda nessa direção podemos ler a enigmática frase – “The time is out of joint”- não apenas como um diagnóstico do seu tempo (o do terror), mas como um entre, como uma disjunção entre o pensamento e a ação. Tempo do drama da sucessão que não deixa de ser tempo, também, do luto. O Rei e a Rainha dizem a Hamlet que ele precisa tocar a vida. Ele reivindica o luto denunciando o tempo, sem luto, da morte do pai e do casamento da mãe com o tio: as carnes do enterro foram servidas no casamento.

A representação – cena sobre a cena: muitos críticos dirão que Hamlet é um drama sobre a representação teatral, dessa perspectiva Hamlet é um personagem trágico em busca da ação e que duvida dela. Em ruptura com Édipo Rei, Hamlet dramatiza a perda da unidade da tragédia clássica. Não sabe sobre o ser e não sabe sobre o fazer. Seu drama é ontológico e ético: parecer, fazer ou não fazer, ser e não-ser. O que resistirá à destruição absoluta, à voragem do nada? A própria força do verso, a astúcia da linguagem de Hamlet. O pensamento ilimitado diante da finitude da vida: somos obra-de-arte e quintessência do pó.

BLOOM, Harold. Hamlet – poema ilimitado. Tradução: José Roberto O´ Shea. Inclui texto integral de “Hamlet” traduzido por Anna Amélia de Queiroz Carneiro deMendonça. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004.

BRADLEY, A.C. A tragédia: Hamlet, Otelo, Rei Lear, Macbeth. Tradução: Alexandre Rosas. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

DUARTE, Pedro. “A filosofia Romântica do trágico, ou a moderna ironia de Hamlet.” In: Revista Terceira Margem – Dossiê Tragédia e modernidade. Número 27.  2013. http://www.revistaterceiramargem.com.br/index.php/revistaterceiramargem/issue/view/1

FRYE, Northorp. Sobre Shakespeare. Tradução: Simone Lopes de Mello. São Paulo: EDUSP, 1992.

HELIODORA, Barbara. Falando de Shakespeare. São Paulo: Perspectiva, 2004.

KERMODE, Frank. A linguagem de Shakespeare. Tradução: Barbara Heliodora. Rio de Janeiro: Record, 2006.

VERNANT, J-P. & VIDAL-NAQUET., P. Mito e tragédia na Grécia Antiga. São Paulo: Perspectiva.

[1] Essa exposição, que ocorreu em 20/05/2016, serviu de introdução à leitura que o Núcleo Práticas da Letra está realizando das sete lições sobre Hamlet do Seminário 6, de Jacques Lacan.