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Conversação clínica: O que o caso da jovem homossexual ainda nos ensina?

Os atos no caso da Jovem homossexual

Atos

No Seminário da Angústia, Lacan propõe que no caso da Jovem homossexual houve um acting out e depois uma passagem ao ato. Gostaríamos de explorar essa construção em dois tempos para levantar a hipótese de que as passagens ao ato possam ser, em sua maioria, precedidas de um ou mais actings. Assim, poderemos temperar o caráter disruptivo da passagem ao ato e fazer uso dos actings, não só para pensá-los como solução para a angústia, mas também como um sinal e até mesmo como um mecanismo para evitar a passagem ao ato.

O modo de agieren do acting passa por um “colocar em cena” a relação do sujeito com o objeto, um descortinar da fantasia dirigida ao Outro. Por isso, entende-se o acting como um pedido de socorro, uma demanda atuada. Lacan valoriza esse aspecto ao fazer a distinção entre o acting e o sintoma. Sua indicação é clara: o sintoma é gozo, não pede por interpretação; o acting, ao contrário, demanda uma interpretação; ele é encenado para ser interpretado. Se entendermos assim, podemos identificar um acting no passeio próximo ao escritório do pai como sendo um “dar a ver” do comportamento da Jovem na sua relação com a dama.

É bem verdade dizer que a passagem ao ato, assim como em todo e qualquer sintoma, também se mostra como Outro; entretanto, não seria propriamente uma exigência de sua natureza clamar por interpretação. O acting out, por sua vez, clama por interpretação, uma vez que ele compreende um apelo ao Outro. Mas seria isto possível? De que maneira?

Acting out

Para Lacan, a relação profunda e necessária com o objeto a é a principal característica do acting out. Em essência, todo acting out diria respeito a alguma coisa que se mostra na conduta do sujeito. Para ele a exibição dos passeios, nos quais, se por um lado, a Jovem não faz esforços para esconder a relação, por outro não economiza mentiras dirigidas ao pai, como se quisesse que ele soubesse que ela o enganava. Poderíamos interpretar que todo o seu comportamento de cortejo à dama de reputação duvidosa, exibido aos olhos de todos, configura um acting out.

O que podemos construir sobre o contexto no qual o acting out se dá? Lacan segue a vertente edípica de Freud e aponta que, nesse caso, há um desejo frustrado. Vejamos o caminho proposto por Freud. A Jovem, enredada na trama edípica, deseja um filho do pai, uma das formas possíveis a uma mulher, segundo Freud, de acesso à feminilidade – forma simbólica de ter o falo pela via do filho (uma frustração imaginária de um objeto real). Para Lacan essa fantasia não se sustentou. No caso da Jovem, quem teve o filho do pai foi a mãe. Freud justifica o comportamento da Jovem para com a dama como uma forma masculina de fazer a corte a uma mulher. Para além de uma identificação masculina, o que vemos é uma identificação imaginária com o falo que é encenada pela via do amor. A posição do amante é aquela de quem não tem, mas, como o amor é dar o que não se tem, a Jovem se oferece à dama nessa posição do ter. “Em outras palavras, coloca-se naquilo que ela não tem, o falo, e, para mostrar que o tem, ela o dá.”[1] Portanto, ela contorna seu desejo deste modo demonstrativo.

O acting acontece quando a dama denuncia a farsa fálica da Jovem como podemos ler no diálogo abaixo:

“A dama: Nesse caso, ma chère, é realmente melhor que você me poupe de suas manifestações de amor pela metade. Tudo isso só estraga o meu humor.

A Jovem: Leonie, por favor, gosto tanto de estar com você, sempre! Queria ficar a seu lado dia e noite e todos devem saber disso, mas…

A dama: É exatamente esse “mas” o motivo pelo qual é melhor que de agora em diante não sejamos mais vistas juntas. Corra e passe bem!”[2]

Ninguém tem o falo, alguns portam um órgão que imaginariamente se confunde com ele. Em relação ao falo, estamos todos e sempre no campo do engodo, da falácia do falo, pois como significante ele está no lugar daquilo que não há.

O fantasma fundamental é a última resposta do sujeito ao desejo do Outro que o solicita, que o provoca, em posição de causa de desejo e de gozo. Nesta situação, em que a angústia domina o sujeito, ele responde com a causa de seu próprio desejo.

Essa fantasia pode estar integrada por significantes, mas se inscreve no imaginário: nesse roteiro o sujeito lida com seu objeto pulsional em uma posição que o elide (fading). Na sua fantasia fundamental o sujeito consente ao seu ser de objeto.

A Jovem homossexual, por exemplo, se comporta como um legítimo cavalheiro diante de sua amada dama, apesar de não exatamente sê-lo. Ela banca ter o que não tem. O seu desejo passa a ser mostrar-se como um outro para assim se designar. É uma “mostração velada”, mas não velada em si. “O essencial do que é mostrado é esse resto, é sua queda, é o que sobra nessa história.”[3]

Podemos propor que o lugar de complemento da dama condensava alguma coisa do ser da Jovem, uma sustentação imaginária que, ao ser retirada, a faz cair como objeto e a desliga do Outro. Nesse momento, já estaríamos no segundo tempo do ato apontado por Lacan e que irá levar a Jovem ao encontro com Freud.

Antes, podemos retomar uma das teses apresentadas no início do texto sobre a possiblidade do acting out servir como uma tentativa de evitar a passagem ao ato. Lacan levanta essa possibilidade ao dizer que “(…) na maioria dos casos, a passagem ao ato é cuidadosamente evitada. Só acontece por acaso”.[4] A questão que colocamos em discussão é se no caso da Jovem homossexual, o acting out que antecedeu à passagem ao ato poderia ter servido para evitá-la, ou, se ao contrário, a teria precipitado?

Passagem

“Tudo que é acting out é o oposto da passagem ao ato”[5]. O acting dá a ver, enquanto a passagem ao ato faz o sujeito desaparecer restando apenas como objeto dejeto. Ela não seria apenas uma reação frente à angústia, mas também uma evasão provocada por ela, isso porque diante da emergência do objeto a, que não pode ser imaginarizado nem significantizado, passa-se ao ato: “na passagem ao ato, como verificamos na clínica, não se trata somente de um ato que exclui o sujeito, mas também se trata de uma realização que dissolve a formação narcisista do eu (i (a))”[6]. Ela é uma espécie de dissolução narcísica em um contexto no qual não resta mais ao sujeito nenhuma sustentação no Outro ou nas suas identificações. Na passagem ao ato o sujeito se coloca no limite do discurso ao deixar-se cair como um objeto.

No instante da passagem ao ato, a Jovem homossexual olha para o pai[7] e não encontra o signo de amor, mas de fúria. A antiga decepção, experimentada quando do nascimento do irmão, encontra agora a castração do pai, ou seja, o vazio do olhar do pai. Busca no olhar do Outro uma significação para si e não vê nada. Como consequência temos um episódio de dessubjetivação: a Jovem anda desnorteada pela avenida que a levará ao terminal de trem[8].

Se depara, nesse momento, com a impossibilidade de fazer parceria amorosa com o pai – a barreira do incesto. E a fantasia que, até então, sustentava essa parceria imaginária como defesa do vazio, transborda. Além disso, a parceria com a dama, que veio substituir àquela com o pai, se rompe. A dama a rechaça. À Jovem, resta nada, ela resta como nada.

A passagem ao ato assinala, então, um rechaço a qualquer identificação fabricada pela operação subjetiva. Lacan aponta que é um salto no real, no real pulsional, na medida em que “o sujeito realiza o limite do discurso, que é o objeto a, e o realiza na identificação, se faz objeto a[9]. É por isso que Lacan vai entender a passagem ao ato como um atravessamento selvagem da fantasia. Nessa situação, o sujeito ao invés de se fazer representar entre dois significantes, se identifica ao objeto. Assim, a passagem ao ato se estabelece como um limite da relação do sujeito com o que ele é como a, indicando o rompimento do limite entre a cena e o mundo.

O ato chamado verdadeiro, aquele que tem como modelo o atravessamento do Rubicão por Júlio César, resulta em uma mudança subjetiva. O mesmo não é observado na passagem ao ato. Entretanto, mesmo que nela não se observe uma mudança subjetiva, podemos, por outro lado, dizer que, se vista como uma repetição, não se trata de uma repetição do mesmo, porque a passagem ao ato pode se deslocar. As compulsões nos ensinam que a passagem ao ato pode ser serial, podendo se deslocar para outro objeto enquanto a estrutura se mantém.  No caso, a Jovem homossexual não recolheu nenhum efeito subjetivo como consequência da passagem ao ato. Podemos supor que sua recusa à análise tenha contribuído para isso. A mudança, no entanto, parece que ocorreu no Outro, pois, a tentativa de suicídio produziu alguma mudança na relação da Jovem com o pai[10].

A evasão da cena é algo que Lacan marca ser o que é essencialmente reconhecido na passagem ao ato e o que a diferencia do acting-out. Enquanto no acting out a ênfase está no Outro, na passagem ao ato a ênfase está no objeto. O acting out encena a fantasia; na passagem, o sujeito pula para fora da cena. A alienação que caracteriza a passagem ao ato é o “não penso”, onde se manifesta a presença oculta e acéfala da pulsão. No acting out a alienação se manifesta pelo “não sou”, apontando para um entrelaçamento com o Outro e um Inconsciente posto em ato.

E aí, o que fazer?                                                 

O que um analista pode fazer diante de um acting ou de uma passagem ao ato? Antes de ensaiar alguma resposta, três pontos devem ser levados em consideração.

O primeiro diz respeito à contraposição entre ato, pensamento e saber, distinguindo-o, no entanto, da simples reação motora. Lacan vai usar o cogito cartesiano e invertê-lo. A máxima de Descartes era “penso, logo sou/existo”, na inversão de Lacan fica “onde penso não sou, onde sou não penso”. É o modo de Lacan excluir da psicanálise qualquer racionalismo, instituindo um saber próprio ao inconsciente que é um “saber não sabido”. Não se trata de uma intuição, também não é uma memória, tampouco um saber escondido. Trata-se de um saber que só se sabe no exato momento em que ele se constitui. Por isso, Lacan poderá dizer que no ato não há saber.

O segundo também é uma oposição entre o ato e, agora, a linguagem. Porém, aqui, há uma particularidade: ao mesmo tempo que o ato é mudo[11], ele vem no lugar de um dizer, exatamente no limite do discurso.

Se os dois pontos anteriores são mais reconhecíveis no Seminário 15, o terceiro tem seu auge no Seminário 10. É nele que Lacan situa duas das concepções de ato – passagem e acting – como respostas à angústia. O seminário tem por base a suposição de que certeza e angústia estão irremediavelmente ligadas – “agir é arrancar da angústia sua certeza”[12]. Não se age na dúvida; apenas imbuído de uma certeza inabalável que o sujeito se precipita tanto no acting como na passagem. “A certeza é a essência do ato”, nos diz Miller[13].

Tendo esses três pontos, comecemos pela passagem ao ato.

Dificilmente uma passagem ao ato dá chance para se fazer alguma coisa antes, mas em alguns casos o contato posterior com um analista oferece a possibilidade de alguma abordagem. Pelo que vimos anteriormente sobre a oposição entre ato e saber, torna-se claro que não há interpretação possível para uma passagem ao ato porque ela não porta um saber. Pelo contrário, ela é a “expressão máxima do rechaço ao inconsciente”[14]. O ato falho é o modelo de ato que porta um saber e faz falar o inconsciente, enquanto a passagem ao ato pode até ser considerada um ato “bem-sucedido”, porém não veicula uma mensagem, nem porta um saber. No espaço entre a angústia, que leva à passagem ao ato e o ato em si, não há saber. Sem saber, sem a suposição de um saber suposto ao inconsciente, como interpretar?

Um dos manejos possíveis, indicado pelo Guy Trobas[15], é fazer o sujeito falar, associar a partir das pegadas que possam existir dos momentos que antecederam a angústia e com as quais o sujeito possa construir uma história ou um contexto que localize o ato em um aparato discursivo. Quando há chance de se fazer alguma coisa antes da passagem ao ato, a tentativa visa criar um espaço que anteceda a angústia ou faça um parêntese entre ela e o ato. O objetivo seria incluir um tempo de compreender e com ele desfazer a superposição do tempo de ver com o de concluir. Como fazer isso? Cada caso fornecerá na transferência, e só nela, as coordenadas possíveis a esse manejo.

No acting temos uma cena que pode ser lida, o que é um perigo. Mesmo sendo uma mensagem endereçada ao Outro, ela sofre do mesmo desconhecimento da passagem ao ato e pode ser tomada em um viés persecutório. Sua opacidade ainda assim deixa à mostra um resto. O acting out é uma cena à qual o sujeito assiste de fora, podendo assim identificar o que acontece com o protagonista. Isso, às vezes, aponta para uma interpretação que não poderá ser da intenção do ato, mas da posição na qual o sujeito sobra como dejeto.

Uma característica importante de todo e qualquer ato é que ele somente se define como tal por suas consequências. No texto “Discurso na Escola Freudiana de Paris”, Lacan comenta sobre o fato de seus colegas titulados como AE e AME terem considerado a “Proposição”, que tratou sobre o passe, um ato. Ele diz: “Será ela um ato? É o que depende de suas consequências, desde as primeiras a se produzir”[16]. E a repercussão delas o confirmou.

Assim, um ato nunca é, sempre foi, porque o que importa não é sua origem, mas aquilo que ele produziu. O ato pega suas coordenadas na estrutura da linguagem na qual o significado do S1 só se define a partir do S2, em retroação. Se por um lado o ato se conjuga no passado, por outro ele “está aberto ao futuro”[17], já que esse é o tempo da consequência. É nesse sentido que temos que guardar certa cautela até decidir se foi um ato.

Construção coletiva:

André Spinillo, Bruna Borges de Araujo Bulhões, Christine de Morais Saturnino, Glaucia Helena Barbosa, Maria Lídia Pessoa, Heloisa Shimabukuro, Leonardo Lopes Miranda, Mariana Tamborindeguy de Oliveira, Ondina Machado e Samantha de Moura Ribeiro.

 

 

[1] Lacan, J. O seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p.138.

[2] Rieder, I.; Voigt, D. Desejos secretos. A história de Sidonie C., a paciente homossexual de Freud. São Paulo: Cia das Letras, 2008, p. 29.

[3] Lacan, J. O seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p. 139.

[4] Lacan, J. O seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009, p. 31.

[5] Lacan, J. O seminário, livro 10: a angústia. Op.cit., p. 136.

[6] Trobas. G. “Tres respuestas del sujeto ante la angustia: inhibición, passaje al acto y acting out”. Revista Logos 1 (NEL- Miami). Buenos Aires: Grama Ediciones, 2003, p. 39.

[7] Aqui existem algumas diferenças entre o relato de Freud e o das autoras de Desejos secretos (op.cit) que entrevistaram a Jovem homossexual um ano antes de sua morte aos 99 anos. Nele, a cena em que a Jovem vê o pai é descrita de maneira que o olhar do pai ganha todo o seu valor: “Do outro lado da rua, em frente, ela viu seu pai (…). Com certeza, o pai a viu e atravessaria prontamente a rua para lhe pedir explicações. Não sabia o que fazer. Desesperada, olhou para Leonie e desta para o pai, e viu como ele acabava de apertar a mão do amigo e despedir-se. Ela precisava agir” (p. 29).

[8] Sobre o encontro com o pai, ela nunca soube exatamente se ele a viu com a dama ou não. Ao descrever a cena em que larga a dama e sai correndo diz que “ao olhar à sua volta, percebeu admirada que o pai não pareceu atentar para sua presença; muito pelo contrário, acabara de embarcar no elétrico que passava nesse momento”. Idem.

[9] Trobas, G. Op.cit., p.39.

[10] Mais uma vez nos servimos do livro Desejos secretos, op.cit.. “não se deflagrou a temida tempestade. (…) os pais se deram por satisfeitos de ter recebido a filha de volta e ainda com vida”, p. 30. Também “além disso, os pais tão cheios de amor e atenciosos como nunca haviam sido!”, p. 32.

[11] Miller, J.-A.. “Jacques Lacan: observações sobre seu conceito de passagem ao ato”. Em: Opção Lacaniana Online, nova série, ano 5, n. 13, março 2014, p. 9. Acesso por: www.opcaolacaniana.com.br

[12] Lacan, J. O Seminário, livro 10, op.cit., p. 88.

[13] Miller, J.-A.. “Jacques Lacan: observações sobre seu conceito de passagem ao ato”. Op. cit., p. 8.

[14] Brodsky, G. Short Story. Os princípios do ato analítico. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2004, p. 74.

[15] Trobas, G..Op.cit., p. 42.

[16] Lacan, J. “Discurso na Escola Freudiana de Paris”. Em: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 265.

[17] Miller, J.-A.. “El acto entre intención y consecuencia”. Em: Política lacaniana. Buenos Aires: Colección Diva, 2002, p. 94.

CLÍNICA E POLÍTICA DO ATO

Coordenação: Ondina Machado

Coordenação adjunta: Leonardo Lopes Miranda

Periodicidade e horário: segundas e quartas sextas-feiras do mês, às 14hs

Início: 13 de agosto

 

Neste segundo semestre prosseguiremos sob o signo do amor  trilhando os caminhos do amor na vertente paterna em Freud procurando entender a proposta de um amor mais digno vindo do último ensino de Lacan. Trata-se do amor como laço, o que nos permitirá pensar a sustentação do laço amoroso, do ato político ou mesmo de uma análise.

Falar em amor na psicanálise, como escreve Freud, nos remete ao fenômeno da transferência que, atualmente, se dá além da exigência do saber. Este será nosso eixo de trabalho, guiando-nos pelos desdobramentos da questão apresentada no argumento de Ram Mandil – “O que seria o amor de transferência, por exemplo, como demanda de presença pura, quando os signos do amor parecem reduzidos ao mero batimento presença/ ausência?”

Referências bibliográficas:

 

ARGUMENTOS. Site do X ENAPOL. Disponivel em: http://x-enapol.org/pt/argumentos/

MILLER, J.-A. O amor entre repetição e invenção. Em: Opção Lacaniana online nova série, n. 2 de Julho 2010. Acesso: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_2/O_amor_entre_repeticao_e_invencao.pdf

LACAN J. (2011). A Terceira. Opção Lacaniana, Revista Brasileira     Internacional, São Paulo. Edições Eolia, n. 62. (Original publicado em 1974).

LACAN. J [1972-1973] O seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 2008.

 

 

Núcleo de Pesquisa Clínica e Política do Ato Sobre a transmissão da psicanálise em tempos de isolamento

André Spinillo

Assim que o vírus chega aqui, na nossa realidade, ultrapassando as fronteiras que o mantinha do outro lado do mundo, somos obrigados a restringir as fronteiras de nossos mundos particulares. Como cidadãos e seres humanos, a ordem é de nos isolarmos, para protegermos a nós e aos outros, nossos semelhantes.
No lugar de psicanalistas, nos resta um certo paradoxo.
Nossa prática sempre teve o encontro como condição para acontecer. E como a psicanálise acontece também fora da clínica propriamente dita, os lugares (institucionais e físicos) onde nossa transmissão se faz também ficam comprometidos. No entanto, o que vem se afirmando é que o comprometimento desses espaços e do encontro presencial não é o suficiente para que todo nosso trabalho seja interrompido. O que parece é que a existência dessa barreira impõe a nós duas opções: a de abandonar o trabalho frente a ela e esperar o dia em que ela irá se dissolver ou a opção de encontrar alternativas para seguir adiante, quase como driblando a aparente impossibilidade. Essa segunda opção, evidentemente, é aquela que adotamos.
Nosso núcleo de pesquisa teve seu primeiro encontro do ano no dia 13 de março, exatamente no mesmo dia em que o governador do nosso estado decreta a suspensão das atividades escolares e de tantos outros eventos, o que se configurou como uma das primeiras medidas oficiais no combate à disseminação do Coronavírus. Até então, foi nosso único encontro presencial do ano, sem sabermos exatamente quando haverá um novo.
Tomamos, então, como medida, mantermos o cronograma de estudos já estabelecido, preservando a data e horário de nossas reuniões, bem como nossas diretrizes de estudo, os textos que selecionamos, os casos que escolhemos trabalhar etc. Porém, o local do encontro não seria mais na sede da EBP, mas em alguma plataforma virtual de nossa escolha.
Logo surgem alguns desafios: o de escolher uma plataforma que seria mais apropriada, em primeiro lugar, e, em seguida, o desafio de entender o seu funcionamento e tentar tirar dela o melhor proveito. Apesar das dificuldades, elas são logo superadas e nosso primeiro encontro em uma nova modalidade acontece.
Os momentos de fala de cada um têm de ser mais comedidos e calculados para tirarmos o máximo proveito das nossas conexões. A conexão, que às vezes falha, não é um grande impedimento para que nos conectemos, de fato, uns com os outros, através da transferência que existe pelo nosso trabalho. Por assim dizer, a conexão promovida pela transferência suplementa a conexão de nossas redes de internet.
Há barreiras a serem superadas, mas há também portas que se abrem. O grupo parece estar aumentando de tamanho, incluindo participantes que antes não poderiam estar conosco por conta da distância. Nem só de impossibilidades e dificuldades se constitui a atual situação.
Por fim, vale dizer que a psicanálise, de alguma maneira, sempre se tratou precisamente de quebrar muitas barreiras. Se o que era inconsciente pode advir e se revelar e se constituir como um novo saber, é por termos a fala como principal instrumento para tal.
Portanto, os psicanalistas já devem saber, há muito tempo, que é sustentando a possibilidade de haver onde falar é que nossa clínica e nossa transmissão podem acontecer, seja essa fala presencial ou virtual.

Intercâmbio da Unidade de Pesquisa “Clínica e política do ato” com o departamento VEL – Violência e Estudos Lacanianos do ICBA – Instituto Clínico de Buenos Aires 

No debate de um caso clínico foi recortada a demanda de contenção que, por estrutura, não pode se manifestar senão com o próprio corpo. Esse movimento aparecia sob a forma de idas e vindas do paciente em um dispositivo de Saúde Mental, uma presença que, evocando o Fort Da, se fazia pelo real.

Ao recortarmos esse movimento como o modo de estar no dispositivo a sua maneira, percebeu-se que as palavras não se articulavam em um discurso, seus elementos eram dispersos onde o S1 não se ligava ao S2, prejudicando o laço social.

O ir e vir criava fugazes e precários pontos de basta que, mesmo assim, possibilitavam alguns momentos de organização imaginária e interrompiam o automaton no uso de drogas.

Discussão rica possibilitada pelo intercâmbio da Unidade de Pesquisa “Clínica e política do ato” com o departamento VEL – Violência e Estudos Lacanianos do ICBA – Instituto Clínico de Buenos Aires.

Nosso afeto e agradecimento aos colegas Marcelo Marotta, Graciela Ruiz e Ernesto Derezensky. Valeu Gustavo Kroitor pelo apoio internético!  

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Ódio e Segregação

Ódio e segregação

Por Gisela Goldwasser

“Alguns mais delicados preferiam morrer…”  Sua preservação talvez seja mais condição de cuidado que de luta.  O animal é brando com a natureza e com os outros da espécie,  no homem,  pode vigir uma forma silenciosa de brutalidade : a indiferença ante o sofrimento do outro.( Bertold Brecht)

“par délicatesse, j’ai perdu ma vie”.  É preciso ter cuidado com as cedências…  (Arthur Rimbaud)

 

Na investigação sobre o ódio, um dos itens do tema do Enapol 2019, “Ódio, cólera e indignação”, deparei-me com o artigo “Dizer não” de Graciela Brodsky.

O texto parte de um relato pessoal de fobia infantil, que a fazia parecer antipática com os outros. Graciela fala sobre as implicações do “dizer sim” e “dizer não” ao Outro. Nesse dizer, a tentativa constante de segregação para a diferenciação, mas no fundo apenas  uma  identificação a novos traços. A autora, nessa mistura entre segregação e identificação, chega  à única possibilidade de separação desse Outro, apenas pela singularidade do gozo: “Primeiro, em aparência, parece que a identificação confere um pertencimento ao Outro. Porém, se examinamos um pouco mais atentamente, descobrimos que a identificação a um traço me separa do Outro – o que rapidamente acaba reciclado em novas identificações com aqueles que compartilham tal traço. Para sair desse círculo vicioso é necessário então um terceiro passo no qual se descobre que o que me separa do Outro, o que me segrega do Outro ou o que segrega o Outro não são as identificações mas o gozo.  É o gozo o que faz com que o Outro seja Outro, radicalmente diferente de mim mesmo. Além disso, é o gozo o que faz com que o próprio sujeito  seja para si mesmo esse Outro do qual não quer saber nada.”

Sobre esse gozo que separa, o ódio no conceito de gozo- Lacan- o ódio que vem desse gozo que me ultrapassa; não é ódio do outro, é ódio disso em você que te ultrapassa. Disso em mim que eu localizo no Outro.

 

 

 

Unidade de pesquisa Clínica e política do ato

Programa para o segundo semestre de 2018

 

Coordenação: Ondina Machado e Heloisa Caldas

Ato e segregação

O tema do Encontro Brasileiro de 2018 – “A queda do falocentrismo. Suas consequências para a psicanálise” – permitirá pensar nas análises nos tempo atuais, de sujeitos que, a despeito de se livrarem do Outro, caem na malhas de um Outro feroz, rígido, com o qual não há papo, sequer na intimidade fantasmática. A falta de dialética enseja mais ao ato que à reflexão e encaminha a solução do mal estar à formação de comunidades de gozo que muitas vezes sustentam o sujeito. Aqui pretendemos pensar um dos conceitos básicos da psicanálise, a identificação, e questionar a relação entre a saída identitária e as formas de segregação que presenciamos atualmente. Por outro lado, tanto a entrada em análise quanto seu término implicam em um ato. Que tipo de ato implica o término da análise? Seu desfecho leva à redução de um ponto de singularidade que recorta o gozo único que habita cada um de nós. Como fazer isso sem entrar na lógica segregativa nem virar um ermitão? Estas são as questões que pretendemos abordar em nosso programa de pesquisa.

Programa:

1 – Comunidades de gozo: da identificação à segregação. Sexo, seitas, religiões e partidos

2 – Identificação ao sinthoma ou como fazer laço com o gozo singular

Os temas serão abordados alternando a teoria com casos clínicos extraídos de nossa prática ou da literatura disponível.

Frequência: quinzenal, sempre às segundas e quartas sextas-feiras do mês.

Horário: 14:30, na sede da Seção Rio da EBP.

Bibliografia:

Laurent, É. O avesso da biopolítica. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2017.

Laurent, É. “Racismo 2.0”. In: Lacan Cotidiano, n. 371. AMP Blog, Acessível por: http://ampblog2006.blogspot.com.br/2014/02/lacan-cotidiano-n-371-portugues.html

Delgado, O.; Fridman, P. Indagaciones psicoanalíticas sobre la segregación. Olivos: Grama Ediciones, 2017.

Holck, A.L.L.; Santos, A. O que se passa? Análises lacanianas e outras histórias. Rio de Janeiro: Subversos, 2012.

Miller, J.-A. Extimidad. Los cursos psicoanalíticos de J.-A.Miller. Buenos Aires: Paidós, 2010.

Racismo e psicanálise

por Geisa de Assis

Os objetos de estudo da Unidade de pesquisa Clínica e política do ato têm sido o racismo e a segregação. Com estes dois significantes, e partindo da indicação de Miller em “Racismo e extimidade” de que a segregação seria conhecida pelo nome batido de racismo, equivalendo os dois, decido, a partir de uma indicação de Ondina, não ir rápido demais e a cada encontro me perguntar: haveria uma especificidade do racismo como segregação? Certamente esta pergunta não foi respondida de primeira e sua resposta será construída a cada passo, encontro e texto.

Pretendo, neste texto, vislumbrar essa construção, mas já deixo uma importante indicação de Mbembe (2018) sobre a especificidade do racismo. Em “Necropolítica”, o autor afirma que “…a função do racismo é regular a distribuição da morte e tornar possíveis as funções assassinas do Estado” (Mbembe, 2018, p.18).

O primeiro texto lido na Unidade foi “Racismo 2.0” de Éric Laurent. Dentre muitas indicações importantes, como, por exemplo, a de que a raiz do racismo está no corpo e na fraternidade do corpo e de que os mercados comuns se equilibrarão numa ampliação cada vez mais dura dos processos de segregação, indicações, estas, de Lacan recolhidas por Laurent, uma me chamou atenção: “De fato, o racismo muda seus objetos à medida em que as formas sociais se modificam (…)”. Aqui, torna-se importante apresentar um pouco da minha pesquisa para clarear porque essa indicação, que parece autoexplicativa, em mim fez eco.

Minha pesquisa é resultado da inquietação provocada pelas recorrentes mortes de cidadãos negros na cidade do Rio de Janeiro. Tais mortes inquietam, pois ultrapassam e esgarçam a noção de civilidade. A pesquisa, portanto, se impôs como uma exigência. Olhos abertos e atentos à cidade do Rio de Janeiro, aos múltiplos bairros que a compõe, a diferença salta ao olhar. Não a diferença singular e inalienável a cada sujeito, ou as diferenças que, segundo Angela Davis, são como fagulhas criativas. A diferença que salta ao olhar, ao atravessar a cidade, é a diferença que marca o acesso, ou melhor, o não acesso, em última análise, à dignidade e à vida.

Diferença marcada pela cor e que determina a dita guerra sobre a qual nos reportam as manchetes dos jornais. Logo, essa guerra às drogas faz a polícia morrer e matar, e o exército operar apenas nas favelas, lugar de preto e favelado. Ali, até uma criança com roupa de escola é suspeita. A morte faz parte do cotidiano desta cidade, mas a expressão “bala perdida” parece não fazer mais sentido, principalmente quando o corpo que mais jaz no chão é o corpo negro. Aqui, a bala tem endereço. O corpo negro no Brasil, e, especialmente, no Rio de Janeiro, é um corpo alvejável[1].

Segundo dados compilados pelo Instituto de Segurança Pública com base em boletins da Polícia Civil, obtidos pelo UOL através da Lei de Acesso à Informação, entre janeiro de 2016 e março de 2017, 9 em cada 10 mortos pela polícia no Rio de Janeiro eram negros ou pardos, e cerca de 22% ocorreram em morros ou favelas. Segundo o mesmo Instituto, a cada 100 mortos no Brasil, 71 são negros; e, de acordo com o Atlas da violência, a estimativa é que cidadãos negros tenham um risco 23,5% maior de serem assassinados em relação a outros grupos populacionais. Além disso, do ano de 2005 a 2015, enquanto a taxa de homicídio caiu em 12,2% entre não negros, a mesma aumentou em 18,2% entre negros.

Estes números colocam em xeque de forma radical a democracia racial brasileira, ou melhor, o mito da democracia racial brasileira, ainda operante. Tal mito consiste na crença de que, no Brasil, brancos e negros têm as mesmas possibilidades de existência. Assim, o Brasil vendeu sua imagem de paraíso racial e, sobre ela, se constituiu. Uma das explicações para isto é a solução que o governo brasileiro encontrou para o problema da presença do negro pós-abolição: a miscigenação, a partir do fomento da imigração de brancos, principalmente, europeus. O objetivo do governo brasileiro era que, em 100 anos, não houvesse mais negros no país; objetivo que claramente fracassou.

O fracasso deste projeto não significou a extinção do racismo, mas sim lhe deu outras roupagens e maneiras de operar. Aqui, destaco o significante genocídio, entendido não apenas como morte física, mas qualquer tipo de estratégia que apaga a existência, como aponta Abdias Nascimento em “O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado”.

Depois deste breve panorama, é preciso nos perguntar: será que, no Brasil, foi o objeto do racismo que mudou? Não é o que parece.

Com isto, recolho uma importante indicação de Heloísa Caldas frente à persistência do racismo contra o negro no Brasil. Segundo ela, não se trataria de uma mudança do objeto do racismo, mas sim de uma mudança de semblante.

Lacan trabalha a noção de semblante a partir da sua teoria dos discursos. Os quatros discursos que ele elabora seriam indicados a partir dos deslocamentos dos termos da estrutura tetraédrica. O semblante é um desses termos. No seminário 18, Lacan aproxima a noção de semblante à noção de significante ao afirmar que “o significante é igual ao status como tal do semblante”. O semblante, em Lacan, se afasta da noção de falso, já que “a verdade não é o contrário do semblante” e “a diz-mansão da verdade sustenta a do semblante”.

Tomo, aqui, a noção de semblante como uma função; agente do discurso, como aponta Lacan; como as diversas roupagens das quais um discurso se serve a fim de se manter operante ao longo dos anos. A partir das indicações de Laurent e Heloísa, poderíamos afirmar que o racismo no Brasil se manteve operante, pois seu semblante mudou à medida que as formas sociais se modificaram? Assim, conseguiríamos vislumbrar as relações históricas do racismo contra o negro no Brasil, quer dizer, a escravidão, a miscigenação, o mito da democracia racial e, atualmente, o genocídio da população negra, como semblantes de um discurso racista?

A aproximação entre semblante e significante também nos faz introduzir este outro conceito de Lacan. Dentro da lógica do racismo, a criação de significantes condensa e veicula o gozo a ser segregado, direcionando a segregação a qualquer um que seja atravessado por este significante. Achille Mbembe (2018), em “Crítica da razão negra”, ilustra como isto ocorre com a criação do nome negro, tomado, aqui, como significante:

“…o nome “negro” foi, desde sempre, uma forma de coisificação e de degradação. Seu poder era extraído da capacidade de sufocar e estrangular, de amputar e castrar. Aconteceu com esse nome o mesmo que com a morte. Uma íntima relação sempre vinculou o nome “negro” à morte, ao assassinato e ao sepultamento. E, óbvio, ao silêncio a que deveria necessariamente ser reduzida a coisa – a ordem de se calar e de não ser visto” (Mbembe, 2018, p. 264).

Vimos que, no Brasil, não parece ser uma mudança de objeto, mas sim uma mudança de semblante que mantém o racismo contra o negro, já que o objeto do racismo permanece o mesmo. Ele se mantém, mas a maneira que se apresenta já não é a mesma, levando muitos a acreditar que não há racismo no Brasil.

Retomamos, mais uma vez, a citação de Laurent, desta vez, completa: “De fato, o racismo muda seus objetos à medida que as formas sociais se modificam, mas, conforme a perspectiva de Lacan, sempre jaz, numa comunidade humana, a rejeição de um gozo inassimilável, domínio de uma barbárie possível”. Aqui, cabe perguntar: a manutenção do racismo, a partir da mudança de semblantes, seria sustentada pela rejeição deste gozo inassimilável, domínio de uma barbárie possível? Ou seja, o racismo contra o negro no Brasil persiste por: 1) seu semblante mudar à medida que se modificam as formas sociais; e, 2) por estar sustentado por um gozo inassimilável? Poderia ser, esta, uma chave de leitura para as barbáries que presenciamos, as mortes sem fim?

Termino com uma indicação de Marcelo Veras, uma perspectiva não a partir do que segrega, mas daquele que é alvo da segregação e o que ele faz com isto:

“…o Outro para o negro, no Brasil de hoje, são os milhões de negros escravizados, em subempregos, as mães empregadas domésticas, os jovens negros assassinados a cada 23 minutos, os pais humilhados, etc. Eis porque o significante reparação é tão importante na questão do racismo hoje”.

Para o negro no Brasil, segundo Veras, o significante a ser destacado é reparação, reparação do Outro, o que nos leva a entender o movimento de resgate da ancestralidade, da história, música, dança, vestimentas, literatura, filosofia e religião africanas, por muitos jovens negros no Brasil como afirmação da sua negritude como vida que vale a pena ser vivida frente ao genocídio de sua população. Isto não parece ser muito diferente de um dos movimentos que Césaire (2012) apresenta em seu poema “Diário de um retorno ao país natal”:

Ó morte teu pântano pastoso!

Naufraga teu inferno de destroços! aceito!

No fim da madrugada, poças perdidas, perfumes errantes, furacões encalhados, cascos sem mastros, velhas chagas, ossos apodrecidos, boias cegas, vulcões acorrentados, mortos mal enraizados, gritar amargo. Aceito!

E a minha original geografia também; o mapa do mundo feito para o meu uso, não pintado com arbitrárias cores dos sábios, mas de acordo com a geometria do meu sangue derramado, aceito

e a determinação da minha biologia, não prisioneira de um ângulo facial, de uma forma  de  cabelo,  de  um  nariz  suficientemente  achatado,  de  uma  tez  suficientemente melânica, e a negritude, não mais índice cefálico, ou um plasma, ou um soma, medindo- se agora ao compasso do sofrimento

e o negro cada dia mais baixo, mais covarde, mais estéril, menos profundo, mais disperso,  mais  separado  de  si  mesmo,  mais  sonso  consigo  mesmo,  menos  imediato consigo mesmo

aceito, aceito tudo isso

[1] O termo alvejável foi utilizado por Luiz Eduardo Soares no livro “Ódio, segregação e gozo” (2012, Subversos).

_______________________________________

Referências Bibliográficas:

CÉSAIRE,  Aimé.  Diário  de  um  Retorno  ao  País  Natal.  São  Paulo:  Editora  da Universidade de São Paulo, 2012.

LACAN, Jacques (1971). O Seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.

LAURENT,    Eric.    Racismo    2.0.    http://ampblog2006.blogspot.com/2014/02/lacan- cotidiano-n-371-portugues.html Acesso em 14/07/2018.

MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. São Paulo: n-1 edições, 2018.

 ________________ Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. São Paulo: n-1 edições, 2018.

MILLER, Jacque-Alain. Racismo e extimidade. In: Derivas analíticas: Revista digital de psicanálise e cultura da Escola Brasileira de Psicanálise – MG. Nº: 4 (Maio 2016). VERAS, Marcelo. A contingência negra. In: Correio Express https://www.ebp.org.br/correio_express/extra001/texto_MarceloVeras.html acesso em 14/07/2018.

https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2017/07/26/rj-9-em-cada-10- mortos-pela-policia-no-rio-sao-negros-ou-pardos.htm acesso em 14/07/2018.

https://g1.globo.com/politica/noticia/enquanto-homicidios-de-negros-crescem-taxa-cai- no-restante-da-populacao.ghtml acesso em 14/07/2018.

Comentário sobre a Conferência de Éric Laurent “Disrupção do gozo nas loucuras sob transferência”, apresentado no Congresso de Barcelona 2018

Comentário sobre a Conferência de Éric Laurent “Disrupção do gozo nas loucuras sob transferência”, apresentado no Congresso de Barcelona 2018[1].

Por: Ondina Machado

Em primeira audição fiquei com alguns termos girando na minha cabeça que nem mosquito de desenho animado. Disrupção? Auto-elaboração? Transferência aplainada? Despertar? Jaculação? Ui!

Comentei com Cristina Duba que estava a meu lado: difícil, né? E pensei: mas muito interessante!

Para meu conforto, não tardou muito para aparecer na internet resumos, comentários e, finalmente, o texto. Não é fácil acompanhar o pensamento de Laurent. Sofisticado, às vezes erudito – entender a jaculação de Píndaro não foi bolinha, mas me provocou. Ele se propõe a pensar a transferência e a interpretação no último ensino e por isso usa o termo ‘loucura’ para dimensionar suas reflexões à foraclusão generalizada, ao “todos somos delirantes”.

Vou me deter na transferência e deixa-los curiosos quanto a “jaculação de Píndaro” como forma geral da interpretação.

Laurent já vem há algum tempo ensaiando um bem dizer sobre a transferência na psicose. Podemos acompanha-lo desde as Conversações, nas quais percebemos que a posição de secretário ou de testemunha não lhe bastam. Nesse texto, me parece, pelo menos até agora, ele alcança um bem-dizer sobre o lugar do analista na transferência com sujeito psicóticos que vai também nos ensinar sobre a transferência quando a relação com o Outro não faz sintoma.

Mesmo com as esparsas menções ao termo transferência no último ensino de Lacan, e com as observações de Miller sobre esse ensino, Laurent identifica uma nova abordagem da transferência como consequência de uma ruptura na ancoragem do psicanalista na suposição de saber. “Ele não está no lugar do sujeito suposto saber, ele está no lugar daquele que segue”. Aqui há o uso de uma homofonia que demonstra não se tratar do ser do analista, mas da sua função: não se trata do “je suis” (eu sou), mas do “il suit” (ele segue). Dessa maneira, digo rapidamente, Laurent propõe o analista como fazendo semblante de uma parceria de gozo, um analista que segue os sulcos cavados pelo gozo na singularidade de cada analisante. Este “ele segue” mais uma vez reforça a ideia de que a transferência, sob a perspectiva do último ensino, não se assenta sobre uma dissimetria tal como pensada no período clássico do sujeito suposto saber. Sem poder contar com o Nome-do-pai, como operar na via da suposição de saber? Ainda mais: como pensar a transferência quando os laços com o Outro se romperam ou são precários?

Laurent usa alguns trechos de Miller no “Ultimíssimo ensino” ampliando seu entendimento. Miller diz que, nesse momento, “Lacan estava farto da psicanálise fundada sobre o Outro”[2] e propõe que a transferência, entendida como simpatia ou antipatia, positiva ou negativa, “foi aplainada, tosqueada”[3] para dar valor ao Um, ao irremediável do gozo, aos sulcos. Entendi esse aplainar não só como nivelar, em contraponto à dissimetria, mas também como tosquear, tirar-lhe os excessos imaginários, reduzi-la a uma função.

Nesse ponto Laurent traz de volta a vizinhança entre amor e ódio – ‘amoródio’, para situar uma nova concepção do une-bévue, tal como Miller propõe. Situa que o ódio é primeiro em relação ao amor e daí parte para entender que o une-bévue, que também pode ser traduzido por tropeço, é o modo pelo qual o inconsciente aparece se ao tropeço for acrescentada uma significação.  A transferência, então, seria seguir esses sulcos e ajudar o analisante nesses tropeços, nos pontos em que lalingua o invade e o deixa à deriva. Com essa parceria, que situo no nível do pequeno outro, seria possível ao analista se posicionar na transferência fazendo com o tropeço um fazer-verdadeiro que restabeleça, a cada momento, as defesas contra a disrupção de gozo.

[1] O primeiro encontro da Unidade de pesquisa Clínica e política do ato foi a discussão desse texto de Laurent. A forma escrita aqui apresentada deve muito à essa discussão e foi a minha contribuição à atividade do Conselho da EBP “Ecos de Barcelona” realizada no dia 7 de maio de 2018.

[2] Miller, J.-A. Perspectivas do Seminário 23 de Lacan. O Sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010, p. 142.

[3] Ibid, p. 141.

CLÍNICA E POLÍTICA DO ATO

Coordenação: Ondina Machado e Heloísa Caldas

Periodicidade e horário: segundas e quartas sextas-feiras de cada mês, às 14h30

Início: 10 de março

Ato e psicose

O próximo Congresso da AMP será em Barcelona, em 2018. O tema já foi lançado: As psicoses ordinárias e as outras – sob transferência. Nossa Unidade poderá contribuir com o estudo do ato e sua incidência na clínica das psicoses. Para isso, propomos o estudo detalhado dos casos reunidos nos livros “Os casos caros, inclassificáveis, da clínica psicanalítica: a Conversação de Arcachon” e “A psicose ordinária”, ambos estão editados em português e contam com inúmeros casos interessantíssimos acompanhados das discussões que se seguiram a cada apresentação. Destacaremos aqueles que apresentam actings e passagens ao ato, mas debateremos também casos das nossas clínicas que nos esclareçam pontos candentes dessa discussão: diferenças e semelhanças entre psicose ordinária e extraordinária, manejos da transferência, desencadeamentos e neodesencadeamentos e outras questões que se impuserem.

Para relembrar nossas bases sobre o ato, iniciaremos o semestre com quatro breves apresentações de capítulos escolhidos do livro Short Story, de Graciela Brodsky.

Importante: Os interessados devem enviar e-mail para ondinamrm@gmail.com explicando o motivo do interesse na pesquisa.

Bibliografia:

Brodsky, Graciela. Short story. RJ: Contracapa, 2004.

____. Loucuras discretas. BH: Scriptum, 2011.

Miller, J.-A. et all. Os casos caros, inclassificáveis, da clínica psicanalítica: a Conversação de Arcachon. SP: Biblioteca Freudiana, 1998.

Miller, J.-A. et all. A psicose ordinária: a Convenção de Antibes. BH: Scriptum, 2012.

Comentário sobre “O problema do corpo do Outro”

Arthur Chicralla

O enfraquecimento do Nome-do-Pai acarreta efeitos de desorientação para os adolescentes de hoje em dia. Essa é uma das considerações de J.-A. Miller[1] no artigo “Em direção à adolescência”. Esse enfraquecimento do Nome-do-Pai não significa seu desaparecimento: o que se observa na contemporaneidade é o declínio do patriarcado como principal forma de transmissão do saber e das maneiras de fazer. O discurso da ciência faz deslocar a primazia que a função do pai tivera outrora, destituindo e desgastando registros da tradição que organizavam, entre outros, a família e a sexualidade.

Há, porém, como aponta Miller, uma tradição que não se abalou pelo discurso da ciência: o islã. Mais do que isso, o islã chega ao “mercado” do Ocidente, de forma acessível e atrai a aderência de adolescentes e jovens, pois representa o discurso que melhor organiza o laço social sobre a não relação sexual. Ao contrário do cristianismo e do judaísmo, o islã o não foi riscado pelo discurso da ciência e estabelece na sua lógica as coordenadas de como deve ser um homem, uma mulher, um pai, uma mãe, etc.. O islã seria até uma boia de salvação recomendável, comenta o autor, para os jovens à deriva devido a referências simbólicas frágeis, se não fossem seus desvios, como por exemplo, o fundamentalismo do Estado Islâmico.

O problema do corpo do Outro é o último item deste artigo de Miller e traz uma questão importante sobre a formação de grupo neste contexto: se o laço entre os membros não se dá a partir de uma ilusão de um gozo do corpo do Outro. Para introduzir tal questão, Miller apresenta uma ruptura de perspectiva da Psicanálise de Freud a Lacan. Em “Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, Freud[2] estabelece uma transição do gozo autoerótico à satisfação copulatória, que gera uma ilusão de que se goza do corpo do Outro. Com Lacan, o gozo se situa tão somente do lado do próprio sujeito – goza-se do próprio corpo ou de suas fantasias. A questão de Miller é sobre grupos que possivelmente se formam, não por uma identificação de seus membros ao ideal do eu, mas pela ilusão de um gozo comum que dá corpo ao Outro.

Neste sentido, o islã, e mais precisamente o Estado Islâmico, possui grande êxito neste tipo de grupo corporificado a partir do gozo do Outro. Para Miller, estabelece-se uma nova aliança entre identificação e pulsão, que não segue a lógica por exemplo do cristianismo, no qual há a dialética constituinte pai-filho que insere a Lei e um sujeito dividido. No Estado Islâmico a inscrição do sujeito se dá por outra via: não há fascinação pela causa perdida. Enquanto no cristianismo a pulsão de morte encaminha para a castração do próprio sujeito, no Estado Islâmico a pulsão de morte está a serviço da morte do Outro, o que conduz Miller a nomear esse desvio de narcisismo da causa triunfante.

Tal discussão retoma um trabalho anterior de Miller[3] que trata da questão do racismo – tema também levantado por Lacan[4]. Raça neste sentido corresponde ao efeito do discurso para circunscrever aquele que goza de um modo diferente do sujeito, ou seja, extrapola a questão imaginária da etnia, religião, nacionalidade, etc.. O racismo é o ódio ao modo de gozar do Outro. Porém, tem que se destacar que gozo do Outro possui relação êxtima com o sujeito, isso quer dizer que no próprio gozo do sujeito há uma parte de inassimilável, de alteridade.

En el racismo, por ejemplo, se trata precisamente de la relación com un Otro como tal, un Otro pensado en su diferencia. Y no parece que todos los discursos generales y universales sobre el todos somos hombres tengan alguna eficacia en esta cuestión. Porque en el racismo se trata de un odio que se dirige precisamente hacia lo que funda la alteridad del Otro, hacia el goce del Otro. Me parece que esto se ve a través de la experiencia analítica. Ninguna decisión es suficiente para borrar el racismo, dado que este se funda en este punto de la extimidad de Otro. No se trata solo de agresividad imaginaria, que se dirige al semejante. El racismo es lo que se puede imaginar del goce del Otro, es el odio a la forma particular, propia, que tiene el Otro de gozar. Se puede pensar que el racismo existe porque el vecino islámico hace demasiado ruido con sus fiestas, pero lo que está verdaderamente en juego es que obtiene su goce de un modo distinto que nosotros. Quizá la televisión le interesa menos y prefiere gritar un poco.[5]

Engendrar o laço social num corpo fraterno que busca situar o gozo do Outro num campo externo e nomeável, para extirpá-lo, é um fenômeno contemporâneo bastante notável.

Trazendo o problema para a realidade brasileira, destaco a aderência de jovens às facções criminosas ligadas ao tráfico de drogas, principalmente nas grandes cidades. Sérgio Laia[6] faz uma importante comparação entre os jovens jihadistas franceses e os “meninos do tráfico” no Brasil. Focarei aqui apenas nas proximidades dos grupos para articular adolescência com a temática do racismo. Em ambos os grupos citados, há um enlaçamento da juventude em torno de corpos que se constituem como irmandade e se colocam em oposição a outros corpos. Cria-se uma união dos membros que se escora por uma função de fraternidade ou família, onde se impera a vontade de gozo mortífero. É pelo gozo, pelo modo de satisfação, que operam essas conexões e não pelas referências simbólico-identificatórias, daí o ponto que converge à questão da segregação.

O racismo, então, se apresenta quando nosso desvairado modo de satisfação procura se orientar rejeitando as formas diferentes (ou mesmo desconhecidas) de o Outro se satisfazer. Por exemplo, em nome do que gozamos como o Bem ou a Democracia (à la Bush ou, de modo menos truculento, Obama), países islâmicos são puramente identificados como o Mal e destruídos; visando garantir nosso gozo da ‘segurança pública’, as ‘Comunidades’ são invadidas para o ‘combate ao tráfico’.[7]

A adolescência, portanto, ganha relevo nesta discussão por ser esse momento lógico em que o sujeito é impelido a buscar Outros corpos para sua satisfação sexual e identificação. Segundo Laia, o desvario desses sujeitos tende a tomar proporções cada vez mais intensas, já que, atualmente, por consequência dos efeitos da globalização, as coordenadas do Outro não possuem contornos tão palpáveis.

Para finalizar, cito Éric Laurent[8], que ao falar sobre o tema, nos adverte da ineficácia de reduzir o fenômeno a uma questão de ideal. O gozo é o eixo que perpassa esses grupos e qualquer tentativa supostamente especializada, para tratar esses jovens, baseada num viés moralista ou de ideologia tende ao fracasso. A experiência de gozo é o que deve reverberar quando se tem a oportunidade de ouvir esses sujeitos, sendo a fala instrumento precioso no dispositivo ético.

Por essa razão, os falsos debates construídos em torno de retirar esses jovens dessa via de perdição, no sentido de tentar desradicalizá-los e falar-lhes de outro ideal de vida parecem falhar, precisamente, quanto à experiência de gozo fundamental. De fato, seria muito mais pela via da arte, pelas paixão dos grupos de arte, ou seja, a paixão de falarem juntos,  vivida não com um tipo de fala à maneira dos protestantes, dos alcoólicos anônimos ou confessando seus pecados etc. Não. Vivida como paixão de poder exteriorizar, digamos, extrair do corpo todas essas palavras, toda essa angústia de viver que os precipitou nesse tipo de solução. Ao contrário, é a fala como arma de combate que deve ser praticada. É uma fala que também deve ser carregada de emoções e afetos, tal como são essas experiências de vida narco.[9]


[1] MILLER, J.-A. “Em direção à adolescência.” Em: Opção Lacaniana, Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n.72, março de 2016, São Paulo: edições Eólia, p. 20-30.

[2] FREUD, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905). Em: ______ Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Ed. Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1980.

[3] MILLER, J.-A. Extimidad. Buenos Aires. Paidós, 2010.

[4] Ver LACAN, J. Televisão. Em: _______ Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.

[5] MILLER, J.-A. op. cit. p.221

[6] LAIA, S. Os jovens daqui e os do Estado Islâmico: proximidades e diferenças. Em: CALDAS, H. BEMFICA, A. e BOECHAT, C. (orgs.) Errâncias, adolescência e outras estações. Belo Horizonte: Editora EBP, 2016. p. 147-155.

[7] Ibid. p. 149.

[8] LAURENT, É. A fala não é um semblante: entrevista com Éric Laurent, por Marcus André Vieira. Em: CORREIO – São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise – n.79, 2016. p. 37-41.

[9] Ibid. p. 41.

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