Conversação dos núcleos do ICP

No dia 08 de dezembro de 2022, os Núcleos de Pesquisa do ICPRJ se reuniram mais uma vez para realizar uma Conversação. O evento aconteceu de forma híbrida, presencial e virtualmente. Neste post, trouxemos a contribuição do Núcleo de Topologia para a discussão do tema e do caso apresentado.

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Por: Ana Tereza de Faria Groisman

 

A conversação entre os núcleos de pesquisa do ICP-RJ, em 2022, partiu de uma pergunta lançada pela coordenação de núcleos: “o que é um caso para a pesquisa clínica no ICP?”. O núcleo de pesquisa em medicina e psicanálise escreveu o relato de um caso atendido num dispositivo institucional e acompanhado por uma participante do núcleo: O Caso E. No núcleo de topologia, dedicamos dois encontros ao seu estudo e, no primeiro encontro, junto com Elena Lerner e Flávia Hasky, me dediquei a fazer uma leitura topológica do caso.

Organizei o relato, destacando três momentos que nos ajudam a circunscrever uma lógica do caso E.

 

Primeiro momento: tempo pregresso

Considero que seria, mais do que um momento específico, uma perspectiva histórica recolhida do prontuário da paciente: sua chegada ao Caps AD como local de tratamento. As crises de angústia eram descritas por ela como “falta de ar” e “mal-estar difuso”. Qualquer fator orgânico que poderia provocá-las é descartado, porém, nota-se que as crises vinham sendo tratadas por ela com a ingestão desordenada de medicamentos (ansiolíticos), o que orientou seu encaminhamento para um centro de atendimento votado para usuários de Álcool e outras drogas. A ingestão abusiva de substâncias se desloca da função de tratamento e passa a ser interpretada como sintoma a ser tratado.

Logo nas primeiras entrevistas, ela associa angústia e medo às dores difusas pelo corpo.

 

Segundo momento: repetição e demanda

Um circuito se desenha alguns anos depois de sua chegada. Ela narra, para a praticante que a acompanha, a sequencia de fatos que tende a se repetir incessantemente: a falta de ar sentida no corpo (interpretada por nós como sinal de angústia), o não reconhecimento do outro de que algo não está bem (a irritação do marido e deboche do filho relatados por ela), a irrupção da violência que se espalha entre todos (o tapa que dá e a briga que começa), a emergência da urgência que a leva ao Caps (lugar de tratamento e acolhimento da demanda). No Caps, recebe a garantia de que goza de boa saúde (aferição de seus sinais vitais), e finalmente o apaziguamento e contorno dado pela equipe que a atende a tranquilizam e estabilizam seu humor. Um circuito que tende a se repetir inúmeras vezes.

O que chamamos de circuito, também pode ser pensado como um enredo, ou uma cena que tenta enquadrar um gozo que itera. A “falta de ar” é sinal de uma presença estranha ao Eu, algo no corpo não funciona como deveria. Seria este o sinal de um gozo disruptivo que desarranja sua consistência narcísica?

 

Terceiro momento: o “silêncio eloquente”

Esse momento foi lido por nós como um momento de corte ou de um ato propriamente dito, pois divide o tempo entre um antes e um depois, subverte a relação entre o sujeito e o objeto e localiza um ponto onde paciente e praticante sofrem seus efeitos de surpresa.

Gostaríamos de destacar a fórmula que o núcleo de medicina encontrou para nomear o ato da praticante: “silêncio eloquente”, uma fórmula paradoxal e ao mesmo tempo absolutamente precisa para nomear o objeto voz. A eloquência é sempre atribuída à fala, não às palavras ditas, mas ao que dá peso a enunciação e orienta os enunciados. Este silêncio, portanto, tem estrutura de linguagem e valor de enunciação.

Consideramos que, o que dá eloquência ao ato, é justamente o fato dele se desprender de qualquer protocolo. A praticante dá voz ao silêncio que se impõe. Vale salientar que ele não se dá, sem que antes sejam tentadas outras saídas. Ele se impõe como limite, na borda do saber. Esse ato tem efeitos para a praticante e para a paciente, que finalmente acolhe o olhar e as palavras ditas como pontos de apoio.

Em nossos encontros, concluímos que as palavras que faziam apelo a uma retificação subjetiva, algo como: “você está incluída na causa daquilo que se queixa”, só puderam ser ouvidas de dentro: “ouço sua voz vindo da minha cabeça”, a partir do “silêncio eloquente”. É nesse ato (silencioso) que localizo o corte que viabiliza o advento do sujeito do inconsciente.

O corte é condição necessária, mas não suficiente, para que um tratamento possa prosseguir numa via orientada pela psicanálise. Até aqui, apesar do tanto de trabalho feito no acolhimento decidido pela equipe do Caps AD, poderíamos supor com a topologia que E. seguia como um pneuzinho (um toro) girando ao redor de um furo, sem nada querer saber sobre o que a faz girar.

Como veremos com a topologia de superfície, a partir do corte (interpretação) que subverte a estrutura, o imaginário tende a se recompor. O furo revelado pela estrutura moebiana que põe em relação o sujeito e o objeto a, tende a se tamponar novamente. Mas, a nossa aposta, é de que o furo não se fechará da mesma maneira.

 

Uma leitura topológica do caso

“Vem agora um pouco de topologia…” é assim que Lacan introduz em seu texto “O Aturdito”, a apresentação que faz do corte que viabiliza uma mudança na estrutura do discurso. Esse corte pode ser lido, portanto, como efeito da interpretação ou do ato do analista. Ele descreve passo a passo, o corte que produz uma subversão topológica que desvela a superfície moebiana que o toro escamoteia, “a evidência da banda é homologada pelo esvaziamento do toro”. O corte produz a “verdadeira banda”, aquela que se equivale a seu corte (Lacan, 2003, p.470).

No vídeo abaixo, é possível visualizar o corte que produz a subversão do toro em banda de Moebius, que na clínica corresponderia ao momento propício a entrada em análise ou ao surgimento do inconsciente transferencial.

https://youtu.be/876a_0WAoCU

Para Lacan, o corte e a banda são equivalentes: “O que se evidencia, é que a banda de Moebius, não é outra coisa senão esse mesmo corte, aquele pelo qual ela desaparece de sua superfície” (idem, p.471).

Lacan prossegue, localizando a passagem da banda ao cross-cap, que se infla em esfera a partir dela, é um inflado imaginário que coloca em relação o sujeito do significante e o objeto a. Ele pode ser lido como uma apresentação do matema da fantasia ($ ◊ a), ou ainda, como uma variante do esquema R, onde o simbólico e o imaginário se articulam pela torção da realidade. Porém, na passagem dos esquemas para o Cross-cap, o real se imiscui na fantasia. Segundo Lacan, “realizando a topologia, não saio da fantasia, mas confirmo que é a partir do discurso em que se funda a realidade da fantasia, que aquilo que há de real nessa realidade, se acha inscrito” (idem, p.478).

No aturdito, Lacan nomeia o Cross-cap como a (a)sfera, um inflado, com a aparência de esfera, mas que inclui uma torção interna que aloja o objeto em relação de extimidade com o sujeito.

Neste vídeo, é possível visualizar a estrutura do cross-cap: https://youtu.be/W-sKLN0VBkk

Por conta dessa torção, o dentro e o fora encontram-se em continuidade. Por isso, a voz da praticante (no caso E.)  pode ser ouvida como vindo do lado de dentro da cabeça, ou o olhar dela pode ser buscado como testemunha ou apoio que lhe assegura um contorno corporal. A paciente encontra seu lugar no olhar da praticante.

Aqui, vale lembrar da imagem que Lacan nos oferece da transferência em seu texto “Posição do inconsciente”, onde ele descreve o inconsciente como o “lugar onde isso fala”, e o relaciona com a caverna de Platão (e também de Ali Babá) , onde nela vemos entrar o psicanalista: “mas as coisas são menos simples, porquê essa é a entrada a que nunca se chega senão no momento em que ela é fechada (esse lugar jamais será turístico) e porque o único meio de ela se entreabrir é chamar do lado de dentro”, um abre-te Sésamo pelo efeito de linguagem (Lacan, 1998, p.852).

Retomo essa passagem para visualizarmos a torção que se opera com o ato da praticante, uma torção que introduz um novo lugar no discurso. As palavras produzem efeitos por serem ouvidas desde o lado de dentro da caverna, é de lá que se produz uma abertura para a dimensão inconsciente e uma possível retificação subjetiva. Uma topologia de borda, onde o dentro e o fora colocam-se em continuidade.

Voltando ao Aturdito, Lacan nos ensina que a topologia não é uma teoria, mas “deve dar conta de que haja cortes do discurso tais que modifiquem a estrutura que ela acolhe originalmente”. Esse corte não se dá como efeito da intervenção da sabedoria, ele irrompe no ato que brota no limite do saber.

A passagem do toro à banda e ao Cross-cap ((a)sfera) apresenta uma ficção que fixa um furo que conecta as duas dimensões do dizer. O objeto se torna êxtimo e, de fora, toca o mais íntimo de cada um: “sua voz entrou na minha cabeça” é a formulação poética de E. que demonstra de forma clara que é de dentro que o dizer poderá alcançar a dimensão do gozo.

Por fim, uma nota sobre o tempo: a topologia Moebiana não apresenta uma subversão apenas do espaço, onde a localização Euclidiana se dissipa, mas também subverte a relação com o tempo, onde o antes e o depois nem sempre se sucedem cronologicamente. Retomo aqui um recorte de Lacan na apresentação que faz de seu texto sobre o tempo lógico, onde diz que “o depois se fazia de antecâmara para que o antes pudesse tomar seu lugar” (Lacan, 1998, p.197).

A partir disso, penso ser razoável considerar que, no caso apresentado, o silêncio (posterior ao dito) serviu de antecâmara para que a voz ressoasse num novo lugar. O tempo da interpretação não coincide com o momento em que a praticante enuncia suas palavras, mas sim, se sucede ao corte que o silêncio produz.

 

 

 

Bibliografia:

LACAN, J. O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada. In: LACAN, J. Os Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

LACAN, J. Posição do inconsciente. In: LACAN, J. Os Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

LACAN, J. O aturdito. In: LACAN, J. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.

 

https://youtu.be/876a_0WAoCU

https://youtu.be/W-sKLN0VBkk

 

 

 

 

 

Liberdade e invenção. Corpo e dor como obra de arte. Breve comentário sobre o filme “Frida” (2002), da diretora Julie Taymor

Este texto fez parte do encontro de trabalho do Núcleo de Topologia do ICP do dia 09 de setembro de 2022, onde foram apresentados e discutidos os comentários de Marilena Leitão, Lucia Mariano e Ana Beatriz Freire, sobre o filme “Frida” da diretora Julie Taymor.

 

Por: Marilena Leitão

(Participante do Núcleo de Pesquisa em Topologia do ICP)

 

“A boa maneira é aquela que, por ter reconhecido

a natureza do sinthoma, não se priva de usar isso logicamente,

isto é, de usar isso até atingir seu real, até se fartar”.

– Jacques Lacan, Seminário 23, O sinthoma. (1)

 

“Frida”, o filme, é sobre a artista Frida Kahlo (1907-1954), seu relacionamento com o também artista Diego Rivera e sua saga com as dores advindas de um terrível acidente que trouxe complicações que a colocaram na cama até a morte. Mas o filme mostra principalmente a forma como ela fez de seus sintomas o Sinthoma que produziu seu dizer sobre a arte, a liberdade e “o saber haver-se aí” diante das contingencias da vida.

Vemos no filme, o pai de Frida em uma relação bastante amorosa com ela e apoiando-a em tudo. Ele, um fotógrafo que ela admirava muito e em quem se espelhava. Frida, quando jovem, vestia-se de homem e o pai dizia: “Eu queria ter um filho homem”.

Após o grave acidente e a fragmentação corporal que sofreu, a pintora transformou em arte a sua tragédia e a sua dor. Para atravessar a impossibilidade de movimentos do seu corpo, fez de sua própria imagem uma obra de arte. E o fez até mesmo com crueldade. Ela dizia que era a vida que ela pintava, mas era o (tocar o) Real que ela fazia surgir diante dos olhos de todos…

Diego Rivera a tomou como objeto a, como tomava todas as mulheres – e não eram poucas –, mas casou-se com Frida. O casamento não cessou a busca de Diego pelo objeto. Ele não buscava A Mulher, não abria mão de sua liberdade e menos ainda de seu compulsivo e incontrolável desejo elas mulheres.

Mas para Frida, Diego era tudo, era um verdadeiro deus. Podemos ler no texto de Miller (O parceiro sintoma) que: “Há uma outra pantomima que escrevemos em série: fazer do homem um deus, ou deixá-lo louco. O sujeito feminino dirige-se ao Outro para nele encontrar a consistência, mas oferece ao sujeito masculino a oportunidade de aí encontrar a inconsistência, a que inscreve satisfatoriamente o (A/)”. (2)

Estava formado o casal sintomático.

Ainda em Miller, vemos que: “Se seguirmos Lacan, a mulher é sempre objeto a para um homem, motivo pelo qual ela não é mais que parceiro-sintoma. O núcleo de gozo, esse objeto a, o parceiro sendo aqui o invólucro de a, exatamente como o sintoma o é. O parceiro como pessoa é o invólucro formal do núcleo de gozo, enquanto, para a mulher, se o homem se aloja em S(A/), não é somente um sintoma circunscrito, porque esse lugar implica o ilimitado. É um lugar não cerceado, um lugar em que não há limite. O homem é então o parceiro-devastação. Dito de outro modo, a devastação comporta o ilimitado do sintoma. Em um determinado sentido, para cada sexo, o parceiro é o parceiro-sintoma, mas para a mulher, em particular, um homem pode ter a função de parceiro-devastação”. (3)

Após muitas idas e vindas e dois casamentos desse mesmo casal, Diego finalmente cede e se reencontra com a mulher Frida, em quem reconhece a parceira de uma vida, sob o signo da liberdade.

Frida já totalmente imersa na morfina para aplacar suas terríveis dores, surpreende a todos chegando deitada em sua própria cama na abertura de sua primeira exposição no México após muita luta. Na época, era ainda mais difícil do que hoje as mulheres chegarem a lugares que eram ocupados apenas pelos homens.

Já perto da partida final, Frida Kahlo anuncia que espera “não voltar mais”. Ela se vai e sua obra ascende vertiginosamente em valor de mercado.

Frida é desenhada no filme como uma mulher interessante, corajosa, audaciosa, de humor sagaz, libertária e do Partido Comunista.

O filme apresenta uma posição decidida de Frida nas parcerias sexuais com os homens e com as mulheres também. Uma proposta de vida sexualmente livre. Mas, no entanto, ela necessitava da lealdade do seu homem. E aqui é onde ela se enrola na relação com Diego e com ela mesma.

E para concluir, vamos com Miller que nos diz que: “… o sintoma é antes de tudo um fato de enrolação. Há sintoma quando o nó perfeito rateia, quando o nó se enrola, quando há, como dizia Lacan, lapso do nó. Ao mesmo tempo, porém, esse sintoma feito de enrolação é também o ponto de basta, e em particular, o ponto de basta do casal. Assim, o sintoma é também um termo Janus. O sintoma, em uma de suas faces, é o que não vai bem, e na outra, o que Lacan, recorrendo à etimologia, denominou de sinthoma, o único lugar onde, para o homem que se enrola, finalmente isso rola”. (4)

 

 

Referências bibliográficas

(1) Lacan, J. (1975-1976). O Seminário, livro 23: O Sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007, pg. 16.

(2) Miller, J.-A. “A teoria do parceiro”. In: Os circuitos do desejo na vida e na análise. Escola Brasileira de Psicanálise (orgs.). Rio de Janeiro: Contra Capa, 2000, pg. 196.

(Esse texto retoma uma ampla parte do seminário proferido, em colaboração com Éric Laurent, no quadro da Seção Clínica de Paris VIII, e intitulado O Outro que não existe e seus comitês de ética (1996-97), dias 12, 19 e 26 de março, 23 de abril, 21 e 28 de maio, 4 e 11 de junho de 1997. Texto estabelecido por Catherine Bonningue).

 

(3) Miller, J.-A. “A teoria do parceiro”. Op. Cit., pg. 197.

(4) Miller, J.-A. “A teoria do parceiro”. Op. Cit., pg. 207.

 

 

O céu (não) é o limite: o discurso da ciência, a “taquinologia” e a verdade sob controle

O texto que se segue é o efeito provocado pelo encontro entre o Núcleo de Pesquisa em Toxicomanias e Alcoolismo (ICP/RJ) e o CIEN – Centro Interdisciplinar de Estudos sobre a criança, ocorrido em 07 de junho de 2022.

 

Por: Rodrigo Pedalini Borges Pires [1]

 

Disparada por uma fala de Rodrigo Abecassis sobre a queda da função paterna, tive uma questão: Que relação é possível estabelecer entre o declínio da função paterna e a tecnologia – se assim posso dizer – “adictiva”? Teria a primeira algum efeito colateral sobre a segunda, de modo que, se o avanço tecnológico participa de alguma forma do mal-estar do sujeito contemporâneo, sendo mais uma modalidade de adicção, isso se daria por conta da pré-existência ou da pré-condição de um declínio da função paterna? Ou o contrário: é o avanço da tecnologia que faz deixar fora do ar o sistema da função paterna no contemporâneo?

Cito Dessal: “Ciência e técnica começam a transitar por caminhos separados, posto que o princípio de impossibilidade que rege para a ciência, não tem lugar no discurso da técnica.” (1) Lacan, em 1969 desenvolve a teoria dos 4 discursos: do Mestre, da Universidade, da Histérica e do Analista. Pelo que pesquisei recentemente, o que podemos chamar de um “Discurso da Ciência” estaria num lugar entre o Discurso do Mestre e o Discurso da Universidade. Mas, e o Discurso da técnica? O que seria? Pode-se pensar na existência formal de um discurso que é o da tecnologia?

Dessal segue, ainda sobre o divórcio da ciência com a tecnologia, dizendo: “Por outro lado, ciência e técnica opõem-se no que se refere à temporalidade. Enquanto a verdadeira ciência progressa lentamente, a técnica avança de forma acelerada, e faz da velocidade, um de seus postulados máximos. Para a gente de Silicon Valley, o método científico clássico é anacrônico e inadmissivelmente lento.” (1)

Os discursos, segundo Lacan, “nada mais são do que a articulação significante, o aparelho, cuja mera presença, o status existente, domina e governa tudo o que eventualmente pode surgir de palavras. São discursos sem palavra, que vêm em seguida alojar-se neles”(2). Também pelo que andei pesquisando, entendi que a impossibilidade é estrutural no discurso do Mestre e no do Analista, ao passo que a impotência (ou insuficiência) o seria em relação aos Discursos da Histérica e da Universidade. Só que a tecnologia avança acelerada e faz vacilar o que parecia pertencer ao campo da impossibilidade. Nada parece impossível para a tecnologia. O céu (não) é o limite (e há pouco um brasileiro foi sorteado para uma volta no espaço, organizada pelo multi-bilionário Jeff Bezos). Sendo assim, se não há a dimensão do impossível e não há impotência, poderíamos considerar a existência de um Discurso da tecnologia?

O Discurso do Capitalista, derivado do discurso do Mestre a partir da inversão entre as posições de S1 e S barrado, é um discurso no qual também desaparecem as dimensões da impossibilidade e da impotência, porque o sujeito ocupa a posição de agente, guiado pelo objeto “de acordo com as leis de consumo”. Poderíamos então equivaler um hipotético Discurso da Tecnologia ao Discurso do Capitalista? A tecnologia seria apenas uma versão do capitalismo? Que leis ordenariam esse discurso?

Parece-me, ou é a hipótese que levanto, que não há um discurso da tecnologia. Parece, antes, tratar-se de pura taquilalia, porque é rápida, acelerada, e de metonímia, porque é mais, do mesmo. Matematicamente, é como se se cortasse por equivalência, no matema do Discurso do Capitalista, o elemento que está no lugar da verdade (ou do capital), S1 – “o mestre moderno” – e o do outro, o do saber (ou da ciência), S2. Como se saber e verdade (ciência e capital) fossem equivalentes e pudessem ser eliminados, “cortados” como se faz em uma equação matemática. Talvez seja disso que se trate quanto à tecnologia: de se saber a verdade. Ou melhor ainda, de se ter a verdade à mão, de se poder controlar a verdade. Sobra um S (des)barrado, agente que aponta sua seta para o infinito e além, sem lei: acelerado (porque não há nada para detê-lo), segue em direção ao impossível, enquanto produz uma sequência infindável de objetos g(a)dgets.

Um Bom Lugar: exílio e luto

Outra questão que me tocou na reunião foi quanto à universalidade dos smartphones. Smartphones são quase tão universais quanto um CPF ou uma Carteira de Identidade. Quem não tem um, não existe. O tal do metaverso é isso. O mundo é o que se passa por dentro da tela. O velho exercício filosófico da pergunta “se uma árvore caiu no meio da floresta e ninguém ouviu, a árvore fez barulho? Pode-se dizer que a árvore caiu?”. Quanto aos smartphones (e não aos telefones normais, sem acesso a redes sociais) essa pergunta também vale. Quem não tem um, existe? Quem viu? Quantos likes são necessários para ratificar a presença de um sujeito? “Quantos likes merece esse Princeso??”, como já vi numa postagem qualquer. O like, aliás, é a lista de presença de uma postagem. É a marca feita a canivete no tronco da árvore que caiu ou não caiu: “Estive aqui”. “Aqui, fui”. Ou, bastante contemporâneo, ao lado das iniciais de um casal apaixonado, o desenho de um coração, like oficial do Instagram.

Tudo isso para dizer que, pensando clinicamente, a relação de um sujeito com a tecnologia, diferente da relação do sujeito com a droga, tem essa particularidade de não necessitar que haja um movimento daquele em direção ao objeto de consumo. Não é preciso ir ao bar ou à boca-de-fumo. Não é preciso fazer uma ligação. É como se o objeto em jogo fosse mesmo uma parte do corpo para esse sujeito, sua carteira de identidade, seus óculos, algo muito necessário para a convivência em sociedade. O objeto de consumo está ali, no corpo.

Mas, se vemos uma crescente de sujeitos totalmente aprisionados por seus celulares, fazendo deles um uso, digamos, nocivo, exagerado, perdendo-se horas do dia com seus caça-níqueis de bolso, é porque outra gente, muito estratégica, desenvolveu o sistema para que funcionasse assim. De outra forma: não é o pequeno-grande computador de bolso, o objeto que vicia. São os programas que nele são instalados. E os programas nele instalados, o software, são linguagem. Somos todos capturados por uma linguagem, ou, mais uma vez, inseridos em uma linguagem. Só que dessa vez, o produto dessa operação não é a castração. Ou é, mas sempre com a promessa de possibilidade de recuperação do objeto perdido (que é indissociável da possibilidade de decepção, ou de não recuperação, posto tratar-se de dar cara de possível ao que é impossível). “Prometo que pode ser que você recupere o que lhe foi retirado”, que contém subliminarmente a sentença: “e prometo que pode ser que não”. É sempre pelo “gozo de menos”, pela possibilidade de decepção, pela velocidade acelerada com que os vídeos são editados de modo a causarem a sensação de que a qualquer momento uma grande verdade será revelada, pela multiplicidade de objetos oferecidos. É o que fixa o sujeito numa repetição tão automática quanto os robôs criados pela mesma tecnologia.

E achamos tudo isso o máximo, ao menos no início. Encontramos velhos amigos, ganhamos biscoitos em fotos, “joinhas” em homenagens póstumas. Todo mundo lembra seu aniversário, elogiam seus filhos e tudo se passa como se estivéssemos em The Good Place*. Consentimos com nossa inserção nessa linguagem e nossa entrada nesse mundo, porque nos foi mostrado tratar-se de um Good Place. Tudo muito bem, tudo muito bonito, o que me faz lembrar do que Lacan diz em seu Seminário, no livro 7, sobre a Função do Belo, como último anteparo antes da Coisa. “… que o belo tem por efeito suspender, rebaixar, desarmar, diria eu, o desejo. A manifestação do belo intimida, proíbe o desejo”. Talvez possamos, por analogia, considerar que a estratégia da tecnologia tenha sido a de colocar o belo como anteparo, para que não víssemos “a Coisa”, para que nos retirasse o lugar do desejo, e mais: como a serpente que nos seduz a morder a maçã.

Isso tudo parece mesmo uma coisa de outro mundo. O metamundo, o Metaverso. Colocadas as coisas assim, topologicamente, entrando em cenas dois lugares, poderíamos considerar que apenas o exílio seria a “solução” para o mal-estar genérica e recentemente nomeado de “o dilema das redes”? E nesse caso, quanto seria exigido de um sujeito, para que ele possa elaborar o trabalho de luto inevitável do que deixou para trás?

The Good Place é uma série de televisão de comédia fantasiosa americana criada por Michael Schur. uma utopia altamente seletiva semelhante ao Paraíso projetada e administrada pelo “arquiteto” Michael. (wikipedia)

 

Referências bibliográficas:

  • DESSAL, Gustavo. “La alienación digital. Apuntes al debate crítico sobre los dispositivos móviles”.
  • LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 17 – o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.

 

 

[1] Participante do Núcleo de pesquisa em Toxicomania e Alcoolismo

 

NOVIDADES NO BLOG!

CONVERSAÇÃO CLÍNICA DOS NÚCLEOS E UNIDADE DE PESQUISA DO ICP RJ

Estamos chegando ao fim de 2021 e este foi um ano de muito trabalho e ricas interlocuções. Uma delas aconteceu no dia 07 de julho quando foi realizada a Conversação clínica dos Núcleos e Unidade de pesquisa do ICP RJ em torno do da pergunta: O que o caso da jovem homossexual ainda nos ensina? A dinâmica da conversação propiciou que os participantes dos núcleos e unidade de pesquisa pudessem fazer circular as questões que atravessaram suas discussões a partir do texto clássico de Freud “Sobre a psicogênese de um caso de homossexualidade feminina” (FREUD, 1920) que nos relança de forma instigante aos impasses e desafios da clínica psicanalítica na atualidade.

Os textos estão publicados nos referidos núcleos e unidade de pesquisa deste blog. Convidamos a todos a acessarem e lerem essas interessantes produções.

Conversação clínica: O que o caso da jovem homossexual ainda nos ensina?

Algumas observações sobre o desejo do analista e o manejo da transferência no tratamento das toxicomanias a partir do caso da jovem homossexual[1]

 

O que nos ensina o caso da jovem homossexual de Freud sobre o tratamento das toxicomanias? Essa é a questão central que foi produzida pelo Núcleo de pesquisa sobre toxicomanias e alcoolismo.

A partir das discussões do Núcleo de pesquisa, alguns questionamentos foram levantados como possíveis aproximações entre o caso e a clínica com as toxicomanias. Fundamentalmente, nossas leituras nos guiaram em direção à reflexões sobre o manejo da transferência, o desejo do analista e a passagem ao ato. Essas noções nos pareceram relevantes nas articulações clínicas que são parte integrante das discussões no núcleo de pesquisa.

Ao tomarmos o caso da Jovem homossexual como parte de nosso objeto de investigação, revelou-se a questão sobre a demanda de tratamento, que parece tangenciar o cotidiano de trabalho de alguns participantes do Núcleo. Notamos que, comumente, o movimento de busca por tratamento das toxicomanias é promovido, não pelos próprios usuários, mas por aqueles que se dispõem a cuidar desses sujeitos. Analogamente ao caso da Jovem, nos tratamentos das drogadições a demanda também não surge do próprio sujeito, mas de seus pais, que gostariam que ela fosse curada de sua “inversão”. O que decorre disso, como sabemos, é a produção dos sonhos da jovem, dirigida à Freud, que os toma como não verdadeiros. Serge Cottet[2] (1989, p.50) nos relata com precisão essa passagem do caso:

“O fato de que Freud seja o analista não o distingue, por um significante novo, de um pai “suposto” que almeja desviá-la de sua perversão. Freud, contudo, percebe com justeza que ela sonha para seu analista, supondo neste o mesmo desejo que tem seu pai. A partir dessa técnica de interpretação, tem-se fundamentos para fazer a seguinte pergunta: que papel desempenha Freud?”

Nos tratamentos das toxicomanias, notamos algo próximo a uma demanda que se apresenta como “mentirosa”, como foi apresentada no caso freudiano. Isso se evidencia por algumas razões que a clínica nos mostra. Inicialmente, essa demanda se verifica, possivelmente, porque há um discurso corrente, estabelecido culturalmente no tratamento das toxicomanias, que correlaciona a cura à abstinência. Nesse sentido, há sujeitos que se apropriam disso como um discurso de mestria, como tentativa de aproximação do Outro, como o esboço de uma demanda ao Outro.

O que mais nos ensina o caso da Jovem? Para Lacan, no Seminário 10, há um momento fundamental que circunscreve a questão freudiana sobre a paixão pela verdade. No ponto em que Freud não se engana sobre as “mentiras” da jovem, é exatamente ali, segundo Lacan, que “trata-se justamente do que cria a aparência de uma ausência de qualquer relação transferencial”[3]. Digamos que mesmo certo de que não se enganava, em sua interpretação, Freud estava numa relação transferencial, segundo Lacan.

A partir dessa citação outra questão se impõe. É possível dizer que Freud teria sido enganado, não pela jovem, com seus sonhos mentirosos, mas por sua paixão pela verdade? Freud teria passado ao ato, ao interromper o tratamento, pouco tempo depois de comunicar à jovem seu julgamento sobre os sonhos? Lacan, no mesmo seminário, ao retomar a questão sobre a mentira sintomática da jovem, afirma que a passagem ao ato de Freud ocorreu quando “sem ver o que o atrapalha, ele se emociona, como certamente o mostra, diante dessa ameaça à fidelidade do inconsciente. E então, passa ao ato”[4]. O que poderíamos extrair dessa passagem como ensinamento para a questão sobre o desejo do analista?

Lacan, no Seminário 10, situa a questão sobre a verdade mentirosa do sintoma e retoma sua afirmação de que a verdade possui estrutura de ficção. O que nos ajuda a pensar sobre o lugar ocupado por aqueles que se dispõem a tratar dos usuários em serviços especializados para álcool e drogas, os chamados CAPS AD. Tendo em vista a dificuldade inerente aos usuários de drogas em estabelecer uma demanda de tratamento e um laço transferencial, as toxicomanias se situariam como um anti-amor, como nos diz Miller no texto A teoria do parceiro.

Alguns praticantes da clínica com toxicômanos e alcoolistas, atravessados pela psicanálise, relatam questões importantes sobre as dificuldades encontradas no manejo da transferência, que em muitas situações, não é levada em conta nos centros de tratamento. O uso de discursos validados pela saúde mental, muitas vezes corroboram uma mestria sobre o sujeito, para não lidar com o que se apresenta como uma demanda. Nesse sentido, podemos retomar a observação de Lacan no Seminário 10, sobre a transferência com Freud. Acolher a “mentira” do toxicômano pode colaborar com o estabelecimento da transferência.

Resumidamente, é necessário acreditar que para além da fala típica dos usuários, como as promessas de abstinência, há a possibilidade de que um desejo se enuncie. Na clínica com as toxicomanias e no que pudemos depreender do caso da jovem homossexual, não há transferência ao saber suficiente para que o sujeito sustente uma pergunta a seu sintoma e o transforme em enigma. Há toda uma tentativa de preencher a fratura estrutural. Cabe ao analista aqui, dirigido por sua ética, não se deixar adormecer e escutar o sujeito em suas coordenadas significantes. Estar atento à verdade que o sintoma porta é o indicativo para que algo do desejo do analista esteja presente.

[1] Trabalho realizado pelos participantes do Núcelo de pesquisa sobre toxicomanias e alcoolismo. São eles: Clarice Cabral, Deborah Souza, Luisa Brand, Luiza Sarrat, Maurícia dos Reis Leandro, Rodrigo Abecassis(Coord. Adj.), Sarita Gelbert( Coord.), Viviane Tinoco e Wagner Erlange.

[2] Cottet, S. Freud e o desejo do analista, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, RJ, 1989. p. 50.

[3] Lacan,J. O seminário livro 10: a angústia, Riode Janeiro: Jorge Zahar Ed.,2005.p.143.

[4] Idem, p144.

Conversação clínica: O que o caso da jovem homossexual ainda nos ensina?

Os atos no caso da Jovem homossexual

Atos

No Seminário da Angústia, Lacan propõe que no caso da Jovem homossexual houve um acting out e depois uma passagem ao ato. Gostaríamos de explorar essa construção em dois tempos para levantar a hipótese de que as passagens ao ato possam ser, em sua maioria, precedidas de um ou mais actings. Assim, poderemos temperar o caráter disruptivo da passagem ao ato e fazer uso dos actings, não só para pensá-los como solução para a angústia, mas também como um sinal e até mesmo como um mecanismo para evitar a passagem ao ato.

O modo de agieren do acting passa por um “colocar em cena” a relação do sujeito com o objeto, um descortinar da fantasia dirigida ao Outro. Por isso, entende-se o acting como um pedido de socorro, uma demanda atuada. Lacan valoriza esse aspecto ao fazer a distinção entre o acting e o sintoma. Sua indicação é clara: o sintoma é gozo, não pede por interpretação; o acting, ao contrário, demanda uma interpretação; ele é encenado para ser interpretado. Se entendermos assim, podemos identificar um acting no passeio próximo ao escritório do pai como sendo um “dar a ver” do comportamento da Jovem na sua relação com a dama.

É bem verdade dizer que a passagem ao ato, assim como em todo e qualquer sintoma, também se mostra como Outro; entretanto, não seria propriamente uma exigência de sua natureza clamar por interpretação. O acting out, por sua vez, clama por interpretação, uma vez que ele compreende um apelo ao Outro. Mas seria isto possível? De que maneira?

Acting out

Para Lacan, a relação profunda e necessária com o objeto a é a principal característica do acting out. Em essência, todo acting out diria respeito a alguma coisa que se mostra na conduta do sujeito. Para ele a exibição dos passeios, nos quais, se por um lado, a Jovem não faz esforços para esconder a relação, por outro não economiza mentiras dirigidas ao pai, como se quisesse que ele soubesse que ela o enganava. Poderíamos interpretar que todo o seu comportamento de cortejo à dama de reputação duvidosa, exibido aos olhos de todos, configura um acting out.

O que podemos construir sobre o contexto no qual o acting out se dá? Lacan segue a vertente edípica de Freud e aponta que, nesse caso, há um desejo frustrado. Vejamos o caminho proposto por Freud. A Jovem, enredada na trama edípica, deseja um filho do pai, uma das formas possíveis a uma mulher, segundo Freud, de acesso à feminilidade – forma simbólica de ter o falo pela via do filho (uma frustração imaginária de um objeto real). Para Lacan essa fantasia não se sustentou. No caso da Jovem, quem teve o filho do pai foi a mãe. Freud justifica o comportamento da Jovem para com a dama como uma forma masculina de fazer a corte a uma mulher. Para além de uma identificação masculina, o que vemos é uma identificação imaginária com o falo que é encenada pela via do amor. A posição do amante é aquela de quem não tem, mas, como o amor é dar o que não se tem, a Jovem se oferece à dama nessa posição do ter. “Em outras palavras, coloca-se naquilo que ela não tem, o falo, e, para mostrar que o tem, ela o dá.”[1] Portanto, ela contorna seu desejo deste modo demonstrativo.

O acting acontece quando a dama denuncia a farsa fálica da Jovem como podemos ler no diálogo abaixo:

“A dama: Nesse caso, ma chère, é realmente melhor que você me poupe de suas manifestações de amor pela metade. Tudo isso só estraga o meu humor.

A Jovem: Leonie, por favor, gosto tanto de estar com você, sempre! Queria ficar a seu lado dia e noite e todos devem saber disso, mas…

A dama: É exatamente esse “mas” o motivo pelo qual é melhor que de agora em diante não sejamos mais vistas juntas. Corra e passe bem!”[2]

Ninguém tem o falo, alguns portam um órgão que imaginariamente se confunde com ele. Em relação ao falo, estamos todos e sempre no campo do engodo, da falácia do falo, pois como significante ele está no lugar daquilo que não há.

O fantasma fundamental é a última resposta do sujeito ao desejo do Outro que o solicita, que o provoca, em posição de causa de desejo e de gozo. Nesta situação, em que a angústia domina o sujeito, ele responde com a causa de seu próprio desejo.

Essa fantasia pode estar integrada por significantes, mas se inscreve no imaginário: nesse roteiro o sujeito lida com seu objeto pulsional em uma posição que o elide (fading). Na sua fantasia fundamental o sujeito consente ao seu ser de objeto.

A Jovem homossexual, por exemplo, se comporta como um legítimo cavalheiro diante de sua amada dama, apesar de não exatamente sê-lo. Ela banca ter o que não tem. O seu desejo passa a ser mostrar-se como um outro para assim se designar. É uma “mostração velada”, mas não velada em si. “O essencial do que é mostrado é esse resto, é sua queda, é o que sobra nessa história.”[3]

Podemos propor que o lugar de complemento da dama condensava alguma coisa do ser da Jovem, uma sustentação imaginária que, ao ser retirada, a faz cair como objeto e a desliga do Outro. Nesse momento, já estaríamos no segundo tempo do ato apontado por Lacan e que irá levar a Jovem ao encontro com Freud.

Antes, podemos retomar uma das teses apresentadas no início do texto sobre a possiblidade do acting out servir como uma tentativa de evitar a passagem ao ato. Lacan levanta essa possibilidade ao dizer que “(…) na maioria dos casos, a passagem ao ato é cuidadosamente evitada. Só acontece por acaso”.[4] A questão que colocamos em discussão é se no caso da Jovem homossexual, o acting out que antecedeu à passagem ao ato poderia ter servido para evitá-la, ou, se ao contrário, a teria precipitado?

Passagem

“Tudo que é acting out é o oposto da passagem ao ato”[5]. O acting dá a ver, enquanto a passagem ao ato faz o sujeito desaparecer restando apenas como objeto dejeto. Ela não seria apenas uma reação frente à angústia, mas também uma evasão provocada por ela, isso porque diante da emergência do objeto a, que não pode ser imaginarizado nem significantizado, passa-se ao ato: “na passagem ao ato, como verificamos na clínica, não se trata somente de um ato que exclui o sujeito, mas também se trata de uma realização que dissolve a formação narcisista do eu (i (a))”[6]. Ela é uma espécie de dissolução narcísica em um contexto no qual não resta mais ao sujeito nenhuma sustentação no Outro ou nas suas identificações. Na passagem ao ato o sujeito se coloca no limite do discurso ao deixar-se cair como um objeto.

No instante da passagem ao ato, a Jovem homossexual olha para o pai[7] e não encontra o signo de amor, mas de fúria. A antiga decepção, experimentada quando do nascimento do irmão, encontra agora a castração do pai, ou seja, o vazio do olhar do pai. Busca no olhar do Outro uma significação para si e não vê nada. Como consequência temos um episódio de dessubjetivação: a Jovem anda desnorteada pela avenida que a levará ao terminal de trem[8].

Se depara, nesse momento, com a impossibilidade de fazer parceria amorosa com o pai – a barreira do incesto. E a fantasia que, até então, sustentava essa parceria imaginária como defesa do vazio, transborda. Além disso, a parceria com a dama, que veio substituir àquela com o pai, se rompe. A dama a rechaça. À Jovem, resta nada, ela resta como nada.

A passagem ao ato assinala, então, um rechaço a qualquer identificação fabricada pela operação subjetiva. Lacan aponta que é um salto no real, no real pulsional, na medida em que “o sujeito realiza o limite do discurso, que é o objeto a, e o realiza na identificação, se faz objeto a[9]. É por isso que Lacan vai entender a passagem ao ato como um atravessamento selvagem da fantasia. Nessa situação, o sujeito ao invés de se fazer representar entre dois significantes, se identifica ao objeto. Assim, a passagem ao ato se estabelece como um limite da relação do sujeito com o que ele é como a, indicando o rompimento do limite entre a cena e o mundo.

O ato chamado verdadeiro, aquele que tem como modelo o atravessamento do Rubicão por Júlio César, resulta em uma mudança subjetiva. O mesmo não é observado na passagem ao ato. Entretanto, mesmo que nela não se observe uma mudança subjetiva, podemos, por outro lado, dizer que, se vista como uma repetição, não se trata de uma repetição do mesmo, porque a passagem ao ato pode se deslocar. As compulsões nos ensinam que a passagem ao ato pode ser serial, podendo se deslocar para outro objeto enquanto a estrutura se mantém.  No caso, a Jovem homossexual não recolheu nenhum efeito subjetivo como consequência da passagem ao ato. Podemos supor que sua recusa à análise tenha contribuído para isso. A mudança, no entanto, parece que ocorreu no Outro, pois, a tentativa de suicídio produziu alguma mudança na relação da Jovem com o pai[10].

A evasão da cena é algo que Lacan marca ser o que é essencialmente reconhecido na passagem ao ato e o que a diferencia do acting-out. Enquanto no acting out a ênfase está no Outro, na passagem ao ato a ênfase está no objeto. O acting out encena a fantasia; na passagem, o sujeito pula para fora da cena. A alienação que caracteriza a passagem ao ato é o “não penso”, onde se manifesta a presença oculta e acéfala da pulsão. No acting out a alienação se manifesta pelo “não sou”, apontando para um entrelaçamento com o Outro e um Inconsciente posto em ato.

E aí, o que fazer?                                                 

O que um analista pode fazer diante de um acting ou de uma passagem ao ato? Antes de ensaiar alguma resposta, três pontos devem ser levados em consideração.

O primeiro diz respeito à contraposição entre ato, pensamento e saber, distinguindo-o, no entanto, da simples reação motora. Lacan vai usar o cogito cartesiano e invertê-lo. A máxima de Descartes era “penso, logo sou/existo”, na inversão de Lacan fica “onde penso não sou, onde sou não penso”. É o modo de Lacan excluir da psicanálise qualquer racionalismo, instituindo um saber próprio ao inconsciente que é um “saber não sabido”. Não se trata de uma intuição, também não é uma memória, tampouco um saber escondido. Trata-se de um saber que só se sabe no exato momento em que ele se constitui. Por isso, Lacan poderá dizer que no ato não há saber.

O segundo também é uma oposição entre o ato e, agora, a linguagem. Porém, aqui, há uma particularidade: ao mesmo tempo que o ato é mudo[11], ele vem no lugar de um dizer, exatamente no limite do discurso.

Se os dois pontos anteriores são mais reconhecíveis no Seminário 15, o terceiro tem seu auge no Seminário 10. É nele que Lacan situa duas das concepções de ato – passagem e acting – como respostas à angústia. O seminário tem por base a suposição de que certeza e angústia estão irremediavelmente ligadas – “agir é arrancar da angústia sua certeza”[12]. Não se age na dúvida; apenas imbuído de uma certeza inabalável que o sujeito se precipita tanto no acting como na passagem. “A certeza é a essência do ato”, nos diz Miller[13].

Tendo esses três pontos, comecemos pela passagem ao ato.

Dificilmente uma passagem ao ato dá chance para se fazer alguma coisa antes, mas em alguns casos o contato posterior com um analista oferece a possibilidade de alguma abordagem. Pelo que vimos anteriormente sobre a oposição entre ato e saber, torna-se claro que não há interpretação possível para uma passagem ao ato porque ela não porta um saber. Pelo contrário, ela é a “expressão máxima do rechaço ao inconsciente”[14]. O ato falho é o modelo de ato que porta um saber e faz falar o inconsciente, enquanto a passagem ao ato pode até ser considerada um ato “bem-sucedido”, porém não veicula uma mensagem, nem porta um saber. No espaço entre a angústia, que leva à passagem ao ato e o ato em si, não há saber. Sem saber, sem a suposição de um saber suposto ao inconsciente, como interpretar?

Um dos manejos possíveis, indicado pelo Guy Trobas[15], é fazer o sujeito falar, associar a partir das pegadas que possam existir dos momentos que antecederam a angústia e com as quais o sujeito possa construir uma história ou um contexto que localize o ato em um aparato discursivo. Quando há chance de se fazer alguma coisa antes da passagem ao ato, a tentativa visa criar um espaço que anteceda a angústia ou faça um parêntese entre ela e o ato. O objetivo seria incluir um tempo de compreender e com ele desfazer a superposição do tempo de ver com o de concluir. Como fazer isso? Cada caso fornecerá na transferência, e só nela, as coordenadas possíveis a esse manejo.

No acting temos uma cena que pode ser lida, o que é um perigo. Mesmo sendo uma mensagem endereçada ao Outro, ela sofre do mesmo desconhecimento da passagem ao ato e pode ser tomada em um viés persecutório. Sua opacidade ainda assim deixa à mostra um resto. O acting out é uma cena à qual o sujeito assiste de fora, podendo assim identificar o que acontece com o protagonista. Isso, às vezes, aponta para uma interpretação que não poderá ser da intenção do ato, mas da posição na qual o sujeito sobra como dejeto.

Uma característica importante de todo e qualquer ato é que ele somente se define como tal por suas consequências. No texto “Discurso na Escola Freudiana de Paris”, Lacan comenta sobre o fato de seus colegas titulados como AE e AME terem considerado a “Proposição”, que tratou sobre o passe, um ato. Ele diz: “Será ela um ato? É o que depende de suas consequências, desde as primeiras a se produzir”[16]. E a repercussão delas o confirmou.

Assim, um ato nunca é, sempre foi, porque o que importa não é sua origem, mas aquilo que ele produziu. O ato pega suas coordenadas na estrutura da linguagem na qual o significado do S1 só se define a partir do S2, em retroação. Se por um lado o ato se conjuga no passado, por outro ele “está aberto ao futuro”[17], já que esse é o tempo da consequência. É nesse sentido que temos que guardar certa cautela até decidir se foi um ato.

Construção coletiva:

André Spinillo, Bruna Borges de Araujo Bulhões, Christine de Morais Saturnino, Glaucia Helena Barbosa, Maria Lídia Pessoa, Heloisa Shimabukuro, Leonardo Lopes Miranda, Mariana Tamborindeguy de Oliveira, Ondina Machado e Samantha de Moura Ribeiro.

 

 

[1] Lacan, J. O seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p.138.

[2] Rieder, I.; Voigt, D. Desejos secretos. A história de Sidonie C., a paciente homossexual de Freud. São Paulo: Cia das Letras, 2008, p. 29.

[3] Lacan, J. O seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p. 139.

[4] Lacan, J. O seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009, p. 31.

[5] Lacan, J. O seminário, livro 10: a angústia. Op.cit., p. 136.

[6] Trobas. G. “Tres respuestas del sujeto ante la angustia: inhibición, passaje al acto y acting out”. Revista Logos 1 (NEL- Miami). Buenos Aires: Grama Ediciones, 2003, p. 39.

[7] Aqui existem algumas diferenças entre o relato de Freud e o das autoras de Desejos secretos (op.cit) que entrevistaram a Jovem homossexual um ano antes de sua morte aos 99 anos. Nele, a cena em que a Jovem vê o pai é descrita de maneira que o olhar do pai ganha todo o seu valor: “Do outro lado da rua, em frente, ela viu seu pai (…). Com certeza, o pai a viu e atravessaria prontamente a rua para lhe pedir explicações. Não sabia o que fazer. Desesperada, olhou para Leonie e desta para o pai, e viu como ele acabava de apertar a mão do amigo e despedir-se. Ela precisava agir” (p. 29).

[8] Sobre o encontro com o pai, ela nunca soube exatamente se ele a viu com a dama ou não. Ao descrever a cena em que larga a dama e sai correndo diz que “ao olhar à sua volta, percebeu admirada que o pai não pareceu atentar para sua presença; muito pelo contrário, acabara de embarcar no elétrico que passava nesse momento”. Idem.

[9] Trobas, G. Op.cit., p.39.

[10] Mais uma vez nos servimos do livro Desejos secretos, op.cit.. “não se deflagrou a temida tempestade. (…) os pais se deram por satisfeitos de ter recebido a filha de volta e ainda com vida”, p. 30. Também “além disso, os pais tão cheios de amor e atenciosos como nunca haviam sido!”, p. 32.

[11] Miller, J.-A.. “Jacques Lacan: observações sobre seu conceito de passagem ao ato”. Em: Opção Lacaniana Online, nova série, ano 5, n. 13, março 2014, p. 9. Acesso por: www.opcaolacaniana.com.br

[12] Lacan, J. O Seminário, livro 10, op.cit., p. 88.

[13] Miller, J.-A.. “Jacques Lacan: observações sobre seu conceito de passagem ao ato”. Op. cit., p. 8.

[14] Brodsky, G. Short Story. Os princípios do ato analítico. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2004, p. 74.

[15] Trobas, G..Op.cit., p. 42.

[16] Lacan, J. “Discurso na Escola Freudiana de Paris”. Em: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 265.

[17] Miller, J.-A.. “El acto entre intención y consecuencia”. Em: Política lacaniana. Buenos Aires: Colección Diva, 2002, p. 94.

Conversação clínica: O que o caso da jovem homossexual ainda nos ensina?

Nossa discussão contou com a apresentação de Elisa Werlang, a quem agradecemos a rica contribuição. Não podemos deixar de citar Cida Malveira, pelo trabalho intenso com as transcrições, que ajudou muito no recolhimento das questões abaixo. O que se segue serão os pontos em torno dos quais nosso trabalho com o caso se deu, o que mobilizou os participantes. Não cabe nomeá-los todos aqui, mas agradecemos suas considerações fundamentais na produção desse texto.

Contexto

O caso da jovem homossexual aparece num momento importante para Freud. Trata-se de um caso em que Freud mobiliza a interpretação dos sonhos e a teoria da sexualidade, e o caso mostra a questão da pulsão de morte. A hipótese levantada é que aparece aí algo novo que não tem solução no amor do pai. Que Freud era esse que escreveu sobre esse caso? Ao lê-lo, nos perguntamos: em termos lacanianos, o que estava em jogo para além do pai e do dom no momento da publicação desse caso?

Identificação ao pai?

É marcante no caso o episódio em que o pai dá à mãe um filho, acontecimento que vai delimitar uma virada na posição subjetiva na jovem homossexual. Ela deixa de brincar de ser mãe de bonecas para se identificar à posição viril do pai. O que vai se concretizar quando, mais tarde, vai passar a seguir de maneira devota uma dama, a quem vai lhe dedicar um amor de “fã”, o amor cortês.

Nesse ponto, surgiu uma pergunta sobre a identificação: é possível dizer que a jovem homossexual de fato se identifica a um homem? Fazendo um contraponto ao caso Dora, parece que Dora se identifica ao Sr. K e ao pai, ao amor e ao desejo por uma mulher. Ela passa pelo homem para acessar algo do feminino. Já no caso da jovem homossexual, isso não é claro.

Os esquemas que Lacan apresenta para dar conta do caso no Seminário 4 não nos permitem ficar na leitura freudiana, a da identificação ao pai, identificação à mãe. A questão do feminino vai aparecer como sendo aquilo que justamente pode forçar para entrar neste jogo, o que não funciona.

Na leitura do caso, de um lado aparece uma questão: o lugar do pai da homossexual seria justamente o lugar de um homem potente, ele era importante na economia do Império Austro-húngaro, um homem muito rico. Lacan coloca: “o que um homem que tudo tem pode amar e desejar?”. Ou seja, como o pai vai fazer para entrar na dialética do dom, signo do amor, que é dar o que não se tem, dar a falta? Ele, que não se apresenta como aquele que dá uma falta, e sim quem dá algo concreto e de valor fálico, um bebê para a mãe. Vemos que a resposta da homossexual está ligada a isso: o lugar que ela vai ocupar como objeto é um certo lugar em resposta a não transmissão do pai daquilo que ele não tem, mas que ela supõe poder ostentá-lo com a construção do amor cortês, o que Lacan dirá ser como mostrar ao pai que é possível amar uma mulher na sua falta. Mas, no caso da sua passagem ao ato, quando ela “cai” na linha do trem, ela ficaria nesse lugar de objeto para barrar a prepotência do pai, assim como para descompletá-lo? A solução poderia ser um para além do pai, uma saída para o feminino?

Para encontrar a dama, a jovem homossexual dissimula, dá várias desculpas, mente para a família, mas ela não mente, não dissimula, diz às claras, faz questão de ostentar quando está com a dama na rua. Ela se oferece a um certo olhar, ao olhar do pai. O pai sabia que ela se dirigia a ele, como vingança, a mãe condescendia porque tirou alguém da competitividade, de certa maneira, estava mais tranquila com a escolha homossexual, competia com a filha para ter a atenção dos homens. Trata-se de uma mãe diferente da do caso Dora, pois a mãe de Dora não se colocava como objeto do desejo de um homem, e Dora não a usa na saída subjetiva.

Transferência

Passamos à transferência para pensar como aparece o amor de transferência com Freud e como ele reage a isso. Freud se engana por não querer se enganar, por não querer bancar o tolo[1]. Essa afirmação está referida ao lugar na transferência em que Freud passa a ser colocado pela jovem homossexual, o que aparece quando ela lhe endereça sonhos cujo conteúdo versa sobre o anseio por um amor de um homem e filhos, ali onde os sonhos prenunciavam a “cura pela inversão” da homossexualidade por meio do tratamento de uma maneira enganadora.

Essa atitude de Freud é criticada por Lacan da seguinte maneira:

Afirmando que lhe é prometido o pior, o que ele [Freud] quer evitar é sentir-se ele mesmo desiludido. Isso quer dizer que está prestes a iludir-se. Pondo-se em guarda contra as ilusões, ele já entrou no jogo. Ele realiza o jogo imaginário. Fá-lo tornar-se real, já que está dentro dele. […] Na medida em que está, e que interpreta precocemente demais, ele faz voltar ao real o desejo da moça, quando era simplesmente um desejo, e não uma intenção [consciente], de enganá-lo.[2]

Freud se engana ao não querer se enganar, pois não se deixa usar como objeto na transferência, não aceita o lugar de enganado que é oferecido a ele pela jovem homossexual, e quando interpreta a transferência, acaba agindo a partir desse incômodo, sem se deixar usar para servir-se disso. Mas, poderíamos pensar aqui também: o que está em jogo no engano que a jovem homossexual procura promover com relação ao pai?

Outro ponto ressaltado foi: o que fez impasse a esse caso? Lacan falar como se tivesse sido um erro de Freud, se podemos dizer assim; Freud identificado com o pai enganado. A leitura que ele faz da mulher é que ela ilude. Então, ele vai se iludir para se desiludir, é algo que no caso Dora já tinha aparecido, no que Freud interpreta como fantasia de vingança de Dora, uma fantasia sádica.

No caso da jovem homossexual, Freud fala de um desejo de vingança do pai, porque havia uma interdição que ela havia feito ao viril. Ele situa uma fantasia masoquista. Isso pode ter a ver com o momento do Seminário 4, em que Lacan tenta esvaziar a imaginarização a que uma análise pode levar. Mas há outra coisa em jogo: se trata do encontro de Freud com a tentativa de suicídio, a possibilidade da jovem homossexual se jogar, dela realmente se colocar no lugar de sacrifício.

Amor platônico e dom

Com relação ao amor platônico que a jovem homossexual dirige à dama, é importante ressaltar que o que Lacan pontua é que esse amor visa a não satisfação sexual e que, por ser da ordem de um “amor ideal”, “institui a falta [não há relação sexual, por exemplo] na relação com o objeto [amado]”[3]. Lacan afirma que o que a jovem homossexual procura mostrar ao pai com relação à falta é que seria possível amar “verdadeiramente” alguém, a dama, em sua falta.

O que coloca a seguinte questão:

O reflexo da decepção fundamental nesse nível, sua passagem ao plano do amor cortês, a saída encontrada pelo sujeito nesse registro amoroso, colocam a questão o que é, na mulher amado para além dela mesma, e isso põe em causa o que é verdadeiramente fundamental em tudo o que se relaciona com o amor na sua realização[4].

 

E aqui o dom:

Essa necessidade de situar o eixo do amor, não no objeto, mas naquilo que ele não tem [naquilo que o objeto resguarda de falta], nos põe, justamente, no coração da relação amorosa e do dom. É este algo que o objeto não tem e que torna necessária a constelação terceira da história deste sujeito.[5]

Fazendo uma articulação ao caso Dora: ela coloca a Sra. K nesse lugar para onde o “x” do desejo do pai incide, aquilo que ele ama para além dela mesma. O enigma do desejo do pai, que escapa, se dirige para a Sra. K, e ela passa a encarnar para a Dora alguém suposto saber sobre o ser de mulher. Para isso, é preciso existir uma montagem, para que esse circuito se estabeleça dessa forma: é preciso haver uma identificação de Dora com o pai pelo que dele aparece como a carência da sua função paterna, a sua falta traduzida nos sintomas somáticos de Dora e por meio de quem ela “ama por procuração”: a Sra. K. Esse aspecto da lógica do dom no Édipo em Freud é um clássico na psicanálise: a figura do pai como aquele que transmite a lógica fálica a partir da sua transmissão de uma falta. Ao final, é a figura paterna destituída que a Dora obtém como saldo: o Sr. K saiu destituído, como aquele que não tem nada com sua mulher e não tem dinheiro, e o próprio Freud, a quem Dora se despede com um sorriso enigmático de Gioconda.

Nossa questão, portanto, abrange na lógica do dom o papel do feminino nesse comércio de trocas. Ali, onde Dora se situava em uma troca silenciosa de presentes preciosos entre seu pai, sua amante e o Sr. K, o que também está presente na sua denúncia quando do desencadeamento de sua neurose, quando ela se diz reduzida a mero objeto “de uma troca odiosa”. Pois, a mulher não é um objeto de troca qualquer nesse circuito em que tudo pode ser arranjado. De que maneira o feminino aí se engaja? Há um impasse e um embaraço próprios ao feminino presentes nessa questão do dom.

[1] “Advertido por uma ou outra ligeira impressão, disse-lhe certo dia que não acreditava naqueles sonhos, que os encarava como falsos ou hipócritas e que ela pretendia enganar-me, tal como habitualmente enganava o pai”. Freud, S. (1920) “A psicogênese de um caso de homossexualismo numa mulher”. In: ESB. RJ: Imago, 1996, p. 204.

[2] Lacan, J. (1956-57) O Seminário, livro 4: a relação de objeto. RJ: Zahar, 1995, p. 109.

[3] Lacan, op. cit., p. 109.

[4] Op. cit., p. 111.

[5] Op. cit., p. 131.

Conversação clínica: O que o caso da jovem homossexual ainda nos ensina?

O Caso da Jovem Homossexual

 Freud tomou a questão da homossexualidade não como uma questão moral, mas como uma questão clínica que pode ser tratada se o sujeito que o procura vem por estar com um conflito que o faz sofrer.

Assim, ao receber a Jovem homossexual, Freud anota que ela chega bem determinada em relação a sua escolha de objeto e não sofrendo de um conflito interno em relação a sua escolha. Não se trata, então, como dirá Freud, de curar a questão homossexual da Jovem. No entanto, Freud a recebe e se instaura a transferência.

Pesquisa do Núcleo Curumim

 Nos perguntamos qual foi o trabalho que aconteceu sob transferência. E como poderíamos articular as questões suscitadas pela leitura do caso de Freud com a pesquisa do Núcleo?

Decidimos por abordar a leitura do caso de Freud articulado às questões a partir do falo e do modo como a Jovem Homossexual faz um uso do falo para ir apoiar na sua relação com o Outro. Ou seja, como ela foi se arranjando para lidar com suas questões, para se localizar em relação ao desejo do Outro e as suas escolhas de objeto.

Nos perguntamos também, como no âmbito da sua família, ela pode lidar com a experiência de perda do objeto primordial, a mãe, e quais foram os desdobramentos dessa perda. Tentamos, assim, acompanhar quais foram as consequências e os arranjos possíveis para a Jovem Homossexual na sua articulação com o pai na sua dimensão simbólica, imaginária e real.

Outro ponto importante da pesquisa foi como articular a questão do objeto a na relação que a Jovem homossexual estabelece com o Outro. As construções fantasmáticas que ela faz para poder se apoiar – ou seja, como ela se serve do falo para tentar uma montagem de sua fantasia, e como nessas construções articular o objeto a. Qual é a montagem que ela faz de sua fantasia?

 Para tecer essas articulações, nos debruçamos no caso escrito por Freud e na leitura dos Seminários 4 e 10 de Lacan.

 Objeto a e o Falo

Partimos do Seminário 4 e destacamos a leitura do caso da JH como sendo “uma espécie de nó de três andares num processo que vai da frustração ao sintoma como equivalente de um enigma”. Lacan descreve esse processo estruturando as posições subjetivas enquanto termos e lugares que podem sofrer permutações.

Tempo 1

A posição da Jovem homossexual é da condição de filha, ainda na sua puberdade. Temos a primeira estruturação simbólica e imaginária que se dá na forma clássica. A equivalência pênis imaginário-filho instaura o sujeito, como mãe imaginária em relação a esse mais além que é o pai, e que intervém enquanto função simbólica, ou seja, enquanto aquele que pode dar o falo. Segundo Lacan, a potência do pai é inconsciente, estamos depois do declínio do complexo de Édipo e o pai, na condição de que pode dar o filho, é inconsciente.

Tempo 2

Será nesse tempo lógico ou como nos diz Lacan, nesse estágio, que vai se produzir a crise ou o momento “fatal” no qual o pai intervém no real, para dar um filho para a mãe. Ou seja, uma intervenção do pai no real faz com que o filho, com o qual o sujeito estabeleceu uma relação imaginária, passe para filho real. Lacan nos diz que algo se realiza e fica impossível o sujeito continuar instituindo o filho na posição imaginária.

Tempo 3

A intervenção do pai no real, no nível do filho, do qual ela é frustrada, produz uma transformação da equação. Segundo Lacan, se produz uma inversão na qual a relação do sujeito com seu pai, que está na dimensão simbólica, passa para uma dimensão imaginária. Lacan diz que se produz uma projeção da fórmula inconsciente do tempo um, do primeiro equilíbrio, numa relação imaginária com a dama.

Lacan vai dizer que se trata de uma relação perversa entre aspas, no sentido que o sujeito faz uma fixação inconsciente ao desejo de ter um filho do pai e metonimicamente instaura a dama no lugar do objeto amado. Assim, o que sustenta a Jovem homossexual, na sua relação entre as mulheres, é que inconscientemente já estava instituído para JH a presença paterna como sendo para sempre o homem que lhe dará um filho.

O cavaleiro cortês

No Seminário 10, Lacan vai dizer que a análise que Freud faz da Jovem homossexual coloca em evidência que será a partir de um acontecimento enigmático, que é o nascimento de seu irmão, que a jovem homossexual vai se orientar para a homossexualidade sob a forma de um amor demonstrativo como cavalheiro cortês – portanto, de uma forma viril. Nesse acontecimento, a Jovem homossexual se decepciona com o pai, de modo que esse ressentimento e a vingança que a Jovem homossexual tem com o pai tem uma função para ela e, por isso são determinantes na sua relação com o Outro.

  Até o nascimento de seu irmão, a Jovem homossexual estava numa posição de consentir com sua castração de mulher. Assim, ela faz equivaler sua castração de mulher ao sacrifício que o cavalheiro faz para a sua dama – ele sacrifica suas virilidades para dar o que ela não tem, na forma de amor cortês. A inversão desse sacrifício a faz o suporte do que falta no campo do Outro, ou seja, ela se constitui na posição de quem vai dar o que não tem para a dama.

O que Lacan ressalta é que a Jovem homossexual instaura a dama enquanto relação idealizada para tentar recobrir o que da Jovem foi experimentado como rechaçado do seu ser de mulher, e como insuficiente. Desse modo, a Jovem vai tentar fazer coincidir a lei do desejo com a lei do pai, uma vez que ela instaure a dama na posição de falo idealizado. Ou seja, o que ela vai dizer ao pai, segundo Lacan, é que ela se decepcionou com ele, ela vai mostrar a ele como é possível amar alguém que não tem o falo, uma vez que ela sabe que a dama não o tem, e que esse falo idealizado está par além da dama. Enquanto idealizado ele é o falo supremo que faz consistir a Mulher.

Passagem ao ato e objeto olhar

Nessa perspectiva, podemos ler com Lacan, que na cena do suicídio relatada pela Jovem homossexual a Freud, na qual ela se joga da ponte, niederkomnt, encontramos as duas condições que estão em jogo na passagem ao ato. A primeira será quando, ao ser rechaçada pela Dama, a Jovem não encontra recursos subjetivos para responder ao desinteresse da Dama por ela e, por isso se identifica com o objeto dejeto, objeto a, e se deixa cair.

A segunda condição é a confrontação ao desejo do pai e da lei, quando no olhar furioso que o pai lhe dirige, ela é capturada enquanto objeto a. Lacan demonstra, assim, que o momento da passagem ao ato é o momento no qual o objeto se alinha com o falo e o sujeito se deixa cair fora da cena. Desse modo, trata-se, na fórmula da fantasia no momento no qual o sujeito vai se deixar cair fora da cena para poder manter o seu estatuto de sujeito. Lacan destaca, assim, como toda construção subjetiva da Jovem homossexual é determinada pela confrontação ao desejo do pai e a lei do pai.

Perguntas que destacamos a partir de nosso trabalho

 1ª questão:

A Jovem Homossexual – um sujeito a trabalho

Poderíamos pensar na estrutura de psicose para a JH?

Nos perguntamos em que medida a Jovem homossexual faz um uso da transferência, instaurando Freud no lugar de quem toma nota, ou seja, de quem acusa recepção do trabalho que ela faz para manter de pé sua construção fantasmática, uma vez que ela não está dividida subjetivamente.

Nessa perspectiva, poderíamos tomar esse aviso que ela dá a Freud, de que ela não está disposta a mudar nada, na dimensão de que se tratar de algo que ela constrói continuamente, uma vez que o registro do simbólico não se sustenta muito e que, por isso, não é para mexer?

Lacan nos diz que a Jovem homossexual faz uma montagem na qual o falo idealizado vem para impedir que o sujeito se identifique com o objeto a e, assim, tenta fixar essa montagem pela via da identificação imaginária com o pai, possibilitando que ela instaure uma falta no Outro. Poderíamos tomar essa montagem como uma tentativa de fazer funcionar o simbólico nessa eterna mostração de um falo idealizado ao pai?

Lacan nos diz, no Seminário 10, a respeito da Jovem homossexual, que estamos diante da montagem na qual ela, por não ter sido bem sucedida como objeto causa do desejo do Outro, ou seja, não ter sido amada pelo Outro, passa para uma posição de amante, amante que vai dar o que não tem, instaurando assim, a falta no Outro. Para isso, monta uma cena de contínua mostração de sua devoção à dama, que Lacan vai tomar como um acting out, dizendo que o acting out é a engrenagem da transferência, é a transferência selvagem, a transferência sem análise. Ou seja, o acting out pede interpretação, ele é dirigido ao Outro. Lacan vai dizer que o sintoma comporta um gozo e que não necessariamente pede interpretação, mas que o acting out é a engrenagem da interpretação porque se dirige ao Outro e, por isso, pede a interpretação. Nessa leitura de Lacan, como tomar a questão da interpretação disso que ela mostra ao Outro diante da precariedade do simbólico?

 

2ª questão

 No Seminário 10, Lacan nos coloca que “no caso da jovem homossexual o que está em questão é uma certa promoção do falo no lugar do objeto a”. Podemos pensar com Lacan, no Seminário 6, que o sujeito está presente na fantasia e que o objeto, como objeto do desejo, toma o lugar daquilo de que o sujeito se encontra privado simbolicamente, qual seja, o falo? Essas pontuações nos fazem pensar: nessa estrutura, diante da troca de lugares e funções, chama nossa atenção a jovem sustentada na fantasia conseguir relançar seu desejo, a cada mudança de cenário. Sabemos que a fantasia é o suporte do desejo, então, qual o papel do ressentimento e da vingança na sustentação do desejo? Quando nasce o irmão, momento de sua inversão, trazendo para o imaginário uma situação que era inconsciente, que papel teve a sustentação da fantasia, essa inversão para a “perversão”? Podemos fazer uma leitura dessa inversão, ao terceiro tempo da fantasia?

3ª questão

A contingências envolvidas na passagem ao ato da Jovem homossexual: a recusa do amor cortês por parte da dama e o olhar de reprovação do pai parecem engendrar o que Lacan chama de “promoção do falo como tal ao lugar de a” (Lacan, 1962-63, p. 23). Discutimos no Núcleo questões de estrutura e pudemos detectar que esse alinhamento ou a referida “promoção”, pode estar presente em qualquer estrutura e engendrar a passagem ao ato. Cabe ao analista, diante de tais contingências apostar no simbólico, nos detalhes, no sintoma como forma de tratar essa falta de sustentação que faz o sujeito despencar da cena ou da ficção, identificado com o objeto dejeto.

LACAN Jacques, Le Séminaire. Livre IV, La relation d´objet, Paris, Seuil, 1994.

LACAN Jacques, Le Séminaire. Livre X, L´angoisse, Paris, Seuil, 2004.

Conversação clínica: O que o caso da jovem homossexual ainda nos ensina?

No caso da Jovem Homossexual relatado por Freud (1920/1980)[1] e comentado por Lacan nos Seminários4[2] e 10[3], o amor ao pai e o amor à dama tem lugar privilegiado na leitura dos movimentos desse ser falante,no modo singular de eleição de um objeto de amor, no remanejamento dos elementos na lógica fálica, na identificação ao pai e no modo como amor, desejo e gozo se articulam.  Pelos efeitos, presume-se que tanto o pai como a dama funcionavam como suporte de uma posição subjetiva enigmática (LACAN, 1956-57/1995, p.136) da jovem. A frustração de uma fantasia infantil (esperar receber um filho do pai) produziu um efeito surpreendente, uma inversão do objeto de amor que regrediu à identificação e o deslocamento do investimento de amor para a dama.  Esse arranjo durou algum tempo, pois a privação vivenciada pela jovem diante da recusa da dama em sustentar a cena, fez com que ela não pudesse mais contar com esses recursos imaginários e simbólicos diante do real, o que a teria levado a se jogar em um vazio, numa ponte suspensa sobre a linha férrea, episódio decisivo para seu pai levá-la a Freud.   Com os recursos da época, Lacan (idem, p. 150) interpretou esse episódio a partir da lógica fálica, como uma privação definitiva do objeto. Com isso, privilegiou a palavra niederkommt que remete à queda, parto (uma maneira demonstrativa de se fazer ela mesma a criança que não teve, o falo que lhe foi recusado). Concluiu, dizendo que “o único motor de sua perversão (…) é um amor estável e, particularmente, reforçado pelo pai”. (idem, p. 150).

Perguntamos: Qual é a função do amor à dama, a quem a Jovem se devota de um modo que evoca o amor cortês? Que lugar para amor, desejo e gozo, neste caso, situado por Lacan como um caso de perversão, entre aspas? A título de hipótese, admitimos, com Lacan, que o caso está estruturado a partir do amor ao pai, logo, organiza em torno do falo, dando lugar, a partir de um determinado ponto, a uma “relação perversa”.

Isso equivale a indagar qual a função do amor cortês para a jovem. De acordo com Lacan (LACAN, 1973-74)[4], no amor cortês, o imaginário assume um papel central, é o meio que liga a morte (real) e o gozo suportado na palavra (simbólico), tendo, portanto, sua função de enodamento destacada.

No caso da Jovem Homossexual, o amor tem função de enodamento. Num primeiro momento, vimos que essa função se apoia fundamentalmente no nome-do-pai enquanto elo capaz de nomear e amarrar os registros. É porque faliciza o não ter que a Jovem parece buscar, via Complexo de Édipo, o que não tem. Um elemento imaginário entra, assim, em uma dialética simbólica, enquanto ela se introduz na dimensão do amor. Na primeira apresentação do esquema L, o sujeito se constitui, sem o saber, na posição de mãe imaginária, que tem no lugar do grande Outro o pai simbólico, aquele que responde pelo enigma de sua existência. No imaginário, encontra-se privada do pênis e se dirige a um objeto, a criança a ser recebida do pai, de acordo com uma solução clássica para o Édipo. Esse arranjo tem no pai a presença fundamental, que conjuga desejo e lei.

O surgimento da criança real oferecida à mãe rompe o arranjo. Na segunda disposição dos termos no esquema L, o sujeito se encontra como criança que no eixo simbólico está referida ao pênis simbólico, segundo Lacan, glorificado no lugar do Outro. O pênis simbólico é aquilo que está no amor, em seu plano mais elaborado, para além do sujeito amado, por isso glorificado. Já no eixo imaginário encontram-se agora a jovem identificada ao pai imaginário, aquele que teria para dar, em um polo e, em outro, a dama, aquela que não tem, a quem ela se endereça. Nessa nova disposição, a garantia suprema de que a lei é o desejo do pai absolutiza o falo.

Ela faz de sua castração de mulher o que o cavaleiro faz à dama: sacrifica suas prerrogativas viris, o que leva Lacan a evocar o amor cortês. Em sua devoção à dama, ela “se coloca no que não tem, o falo, e para mostrar que o tem, ela o dá”, comportando-se, segundo Lacan, como um homem que pode sacrificar o que tem.

Lacan afirma que sua reação de tomar a dama como objeto de um amor cortês, sacrificando seus atributos viris (imaginários), mantém, ela própria, através da identificação imaginária ao pai, como “o suporte do que faltava no campo do Outro” (LACAN, 1962-63, p.124). Lacan esclarece que ela se faz a suprema garantia de que a lei é o desejo do pai, “de que existe uma glória do pai, um falo absoluto” (idem).  Lacan chega a afirmar que sua vingança ao pai é a própria lei paterna. Faz do falo um absoluto. Entendemos que essa referência ao falo como absoluto, o grande phiΦ, refere-se à lei que abriga seu desejo, aquela que referencia a falta do sujeito como passível de ser satisfeita pelo pai. E é no lugar do pai que ela ama a Dama como aquela que pode receber o falo.

O encontro com o olhar do pai, com o real, disjunta desejo e lei, trazendo para o centro do nó o real, meio de ligação que franqueia a passagem ao real da função do objeto a, com o qual ela se identificará na tentativa de suicídio. Na cena com o pai, o desejo entra em confronto com a lei do pai que a recrimina, promovendo uma disjunção, que não se confunde com o desencadeamento que romperia os elos. Essa disjunção desmonta o imaginário do amor cortês e acarreta que função do objeto a, entre os três registros, fique confinada ao real, passe ao real. Como, então, conceber topologicamente a disjunção que não é um desenlace?

[1] Freud, S. A psicogênese de um Caso de Homossexualismo numa mulher (1920)   EM: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. 1980.

[2] Lacan, J. O Seminário livro 4. A relação de Objeto. (1956-57). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 1995.

[3] Lacan, J. O Seminário livro 10. A Angustia(1962-63). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 2005

[4] Lacan, J. O Seminário livro 21. Lés non-dupeserrent(1973-1974) (inédito).Aula de 18.12.1973.

Conversação clínica: O que o caso da jovem homossexual ainda nos ensina?

O caso da Jovem Homossexual: uma releitura.

Neste ano estamos trabalhando no núcleo, o caso de Sarah Kane dramaturga inglesa que se suicidou aos 27 anos. A escrita de suas peças, a encenação e todo o sucesso alcançado que atingiram não foram suficientes  para que ela encontrasse uma amarração para sustentar seu corpo. Foi nessa perspectiva que lemos o caso da paciente de Freud.

Gabriela Basz, a partir de Lacan, trabalhando sobre Sarah Kane em seu livro “Cuerpo y Psicosis em la época” (2018) sinaliza que a linguagem na psicose se impõe, uma imposição no corpo que pode chegar a dissolvê-lo. Nesse livro ela traz o entendimento dos fenômenos elementares com os transtornos nos três registros, imaginário, simbólico e real. Os fenômenos elementares não são necessariamente fenômenos de linguagem.

O “deixar cair o corpo” em Joyce seria um exemplo de fenômeno elementar que não é transtorno de linguagem. Desenvolvendo o tema da consistência, a autora traz a linguagem como disruptiva, experiência de uma presença que irrompe e dissolve essa consistência que suporta o corpo.

Daí a necessidade de uma distância desse Outro da linguagem que invade o corpo. Ao mesmo tempo, a importância para o analista em identificar qual o estatuto deste Outro na psicose.

 No caso da Jovem Homossexual (Freud,1920) o encontro com o olhar de reprovação do pai teria tido esse efeito de dissolução da consistência do corpo? Outra hipótese é a ausência do desejo da mãe sobre o bebê feminino, ou seja, a criança não pôde ser o falo da mãe, produzindo um enodamento sem o nome do pai. Assim orientamos a nossa investigação, a partir de uma das posições de sujeito preconizadas por Lacan no seminário 10 no caso da jovem homossexual, que indica a “redução ao objeto real na tentativa de suicido” ( Os poderes da palavra, AMP, 1996).

Lacan, neste momento de seu ensino, estabelece as condições para a passagem ao ato, afirmando que primeiramente é a identificação absoluta do sujeito com o “a”, ao qual ele se reduz. É justamente o que sucede com a moça no momento do encontro. A ausência do desejo da mãe sobre a criança é atualizada a partir desse outro idealizado, desse outro heterogêneo.  A outra condição é o confronto do desejo com a lei (Lacan, pág 125). Neste ponto, diz Lacan, trata-se do confronto do desejo pelo pai, sobre o qual se constrói toda conduta dela, com a lei que se faz presente no olhar do pai. É através disso que ela se sente definitivamente identificada com o “a”, e ao mesmo tempo, rejeitada, afastada, fora da cena (pág 125). A jovem se sente identificada com “a” por causa da retirada do desejo desse outro heterogêneo dela, em outros termos, o desprezo da dama. E isso, somente o abandonar-se, deixar-se cair pode realizar.

Nossa hipótese para discussão, apoia-se nessa questão: qual o estatuto da passagem ao ato na época do tratamento com Freud e nas outras duas tentativas de suicídio relatadas na biografia: tomou remédios e deu um tiro no peito, dois tempos relacionadas a vida amorosa. Foi a incidência do olhar do pai sobre a cena, e também o desprezo da dama, que fizeram com que seu corpo não se sustentasse e ela se jogasse na linha do trem, caída como um dejeto, ao modo de uma passagem ao ato?  Para Freud, a jovem não se apresentava como histérica, não apresentava conflitos que era uma questão requerida pela análise. As interpretações edipianas não ressoavam muito, apesar da transferência.

No texto Habeas Corpus (2018), Miller aponta que o último ensino de Lacan inicia por uma fórmula que ele enuncia assim: “o inconsciente deriva do corpo falante” e destaca três pontos: “o sujeito tem um corpo, o corpo é falante e não é o corpo que fala”. O corpo serve para falar, é um instrumento, a fala passa pelo corpo e o afeta, “sob a forma de fenômenos de ecos e ressonâncias”.

No caso da paciente de Freud a sexualidade se apresenta como invasiva, repugnante, sem o recobrimento da fantasia, como irrupção de algo estranho no real de seu próprio corpo. A tentativa de ser amada está presente, mas o amor se revela como morto, frente a degradação do Outro.

Lacan no Seminário 3 vai dizer que a relação amorosa na psicose, situa o sujeito “fora de si mesmo”. É uma relação amorosa que suprime o sujeito pois se trata de um encontro “com uma alteridade tão estrangeira que mata o sujeito”. Neste sentido, o amor na psicose é um amor morto porque implica “numa heterogeneidade radical do Outro”. O Outro é tão radicalmente heterogêneo, diferente, levando o sujeito a não reconhecê-lo como sendo da mesma natureza. É uma distância defensiva, mas opera também como uma garantia. Essa dimensão leva o sujeito a um apagamento, deixando sua vida de lado. No caso da paciente de Freud, o real da sexualidade aparece em seu corpo, se materializa no desprezo da dama, e na rejeição dos pais em relação a sua posição. Ela não encontra apoio fálico e se deixa cair na linha férrea e “se deixa abandonar” também por Freud.

Na biografia de Sidonie C. (2008)  sobram relatos de uma vida incomum, que se estendeu até o final do século XX.  Muitos amores, seguiu amando, sempre se mantendo com muita distância em relação ao sexo. Diante disto, qual foi o enodamento dos registros feito por esta paciente?

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