Marcia Müller Garcez

Temos esmiuçado o texto de Jacques-Alain Miller (2015) ‘Em direção à adolescência’ na Unidade de Pesquisa Clínica e Política do Ato, além de articulá-lo com outras leituras. O texto é uma proposta de Miller como orientação de trabalho para a Jornada do Instituto Psicanalítico da Criança, mas acaba por abarcar e contagiar toda a nossa comunidade psicanalítica, incluindo o próximo Encontro Brasileiro, intitulado ‘Adolescência, a idade do desejo’.
Um recorte do referido texto e que foi trabalhado por mim, em nossas discussões, diz respeito à procrastinação na adolescência. Após discorrer sobre a adolescência enquanto uma construção e toda a controvérsia que a sua definição implica, Miller circunscreve o campo da psicanálise e o que este já se ocupa em relação à adolescência logo de partida, a saber: a saída da infância; a diferença dos sexos; e a imiscuição do adulto na criança. Partimos então, para o que ele vai apontar como novo na adolescência, e consequentemente para a psicanálise, e que decorre de uma mutação na ordem simbólica. Esse novo apontado por Miller implica: uma procrastinação; uma autoerótica do saber; uma realidade imoral; uma socialização sintomática; e um Outro tirânico. Esses cinco aspectos são articuláveis entre si e optei por destacar o discurso da atualidade, a relação de consumo e o elemento pressa – que parece paradoxal à procrastinação. Se pensarmos a pressa a partir da dinâmica do discurso capitalista, proposto por Lacan, podemos seguir as pistas deste paradoxo pressa x procrastinação. Cabe então, fazer uma passagem rápida pela ideia dos discursos em Lacan.

Os quatro discursos
O primeiro dos discursos a ser explorado por Lacan (1992 [1969-70]) foi o do mestre, apoiado na teoria de Hegel, a partir da dialética do senhor e do escravo. O senhor dirige-se ao escravo, pois é ele quem detém o saber. Ele é essencial para a articulação dos demais e é considerado também como o discurso do inconsciente, pois o comanda, tratando de buscar um saber que escamoteie a verdade do sujeito e renuncie ao resto. Se fizermos um quarto de giro no discurso do mestre, vamos encontrar o discurso da histérica. A problemática apontada por Lacan é que o saber não-todo que o discurso do inconsciente ou do mestre tenta encobrir é justamente aquilo que escapa, o que pode produzir a causa de desejo fazendo com que o funcionamento falhe. É o discurso histérico que fará a passagem da resposta cristalizada do discurso do mestre para a abertura à pergunta sobre o desejo. Uma passagem do enunciado à enunciação.
Ao fazermos mais um quarto de giro nesses esquemas construídos por Lacan, passamos do discurso da histérica, para o discurso do analista, que denota o que ocorre na atividade clínica. Ele muito nos interessa pelo fato de representar o avesso do discurso do mestre, sendo o que pode oferecer uma barreira ao discurso contemporâneo.
O quarto discurso proposto por Lacan, o universitário, situa o saber como agente, como um pretenso saber todo, que produz sujeitos, cuja divisão é desconsiderada. O aluno como objeto a é um produto, sendo aquele que nada sabe e para o qual o saber se dirige.

Discurso Capitalista e procrastinação
Após ter elaborado a teoria dos discursos, Lacan formula a quinta modalidade, uma variação do discurso do mestre conhecida como discurso contemporâneo ou do mestre moderno: o discurso capitalista. Primeiramente, ainda enquanto teoriza sobre os quatro discursos, ao final do Seminário 17, Lacan situa o discurso universitário como o do mestre moderno (p.195). Em 1972, numa conferência em Milão ele o nomeia de capitalista e apresenta seu esquema. A grande novidade desse discurso é que todos os elementos são articulados apresentando uma nova dinâmica, a partir de uma organização – ou reorganização – das flechas.

Observando o movimento das flechas, percebemos a dinâmica capitalista que denota a relação direta do sujeito contemporâneo com os objetos de consumo, em um acesso imediato. Notamos também que, em relação ao discurso do mestre, a variação se encontra na inversão do lugar do agente e da verdade. O sujeito ($) com suas faltas, dividido, demanda ao significante-mestre (S1) que imediatamente se dirige ao saber (S2), o qual produz os objetos a serem ofertados ao sujeito recomeçando o ciclo, produzindo uma infinitização.
Esses objetos são os gadgets que vemos pululando na contemporaneidade. Se acompanharmos as flechas, vemos um movimento infinito, tal como o afirma Aflalo (2008): “produz-se, então, um trajeto de ida e volta em torno de um gozo perdido” (p. 83). Com este último discurso apresentado, esbarramos no grande paradoxo da lógica capitalista na atualidade: diante da oferta incessante do mestre moderno, algo precisa ser produzido, a fim de suprir a falta, com uma pressa para que a angústia não possa emergir; ao mesmo tempo, o excesso de produção e seu transbordamento de gozo acarretam dificuldades discursivas, que podem ser testemunhadas nas precariedades simbólicas, típicas do século XXI. É uma nova modalidade de discurso que não apresenta apenas uma variação do discurso original – do mestre ou do inconsciente – no intuito de evitação do real, mas demonstra uma organização de ofertas e demandas aceleradas e que na adolescência podemos fazer a leitura como um “prolongamento da adolescência” apontado por Miller (2015).
É essa mesma velocidade que indica o outro ponto tratado como novo no texto ‘Em direção à adolescência’, que é a autoerótica do saber. O saber não é mais o objeto do Outro, não há mais negociação, o saber está no bolso e de imediato, nessa mesma lógica de consumir e consumir-se. Não há mais relação com o Outro que passa a ser tirânico, e esse leque resulta na socialização sintomática. Todos esses aspectos que indicam o que é novo na adolescência – e para a psicanálise na relação com ela – parecem partir da procrastinação que se dá na contrapartida da pressa que escamoteia o real de uma passagem para o que seria uma vida adulta.

Referências:
AFLALO, Agnès. Discurso capitalista. In: Scilicet: os objetos a na experiência psicanalítica, AMP, Rio de Janeiro: Contra Capa, p. 83-86, 2008.

LACAN, Jacques. O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992 [1969-70].

MILLER, Jacques-Alain. Em direção à adolescência. Minas com Lacan, 2015. Disponível em: http://minascomlacan.com.br/blog/em-direcao-a-adolescencia/