Rafael Morganti      

O objetivo deste pequeno texto, que irei chamar de convite, tem como proposta principal convidar para uma problematização sobre a psicose ordinária nos Centros de Atenção Psicossocial – CAPS. Alguns apontamentos que farei mais adiante não são produtos somente das minhas reflexões. Algumas ideias foram construídas nos encontros do Núcleo de Saúde mental e psicose.

Inicialmente é necessário analisar a que pé anda a conversa sobre psicose ordinária nos CAPS. No momento, me sinto seguro em afirmar que essa conversa não está nos CAPS. Pelo menos nos dois CAPS onde trabalho e nos espaços institucionais da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) que participo, isso inclui supervisão de território e alguns grupos de trabalho.

Atrelado a essa constatação, não devo me furtar de alguns apontamentos que não construí sozinho. O primeiro é uma análise bem rápida sobre a inserção dos psicanalistas na RAPS no atual momento. Podemos dividir essa análise em três momentos, no primeiro momento da reforma psiquiátrica não houve uma adesão dos psicanalistas, no segundo momento houve uma inserção importante dos psicanalistas na reforma psiquiátrica, me autorizando a afirmar que houve uma contribuição fundamental para os desdobramentos da reforma e atualmente há um esvaziamento significativo na RAPS. É importante frisar que não acredito que a psicanálise deva ser hegemônica na RAPS, mas pensar o debate da psicose ordinária na RAPS com a diminuição dos psicanalistas é algo que convida para entendermos a ausência da conversa sobre psicose ordinária na RAPS.

Com o intuito de trazer para este texto o que consigo observar no trabalho e que tem relação com o que estou me propondo a ofertar, trago algumas observações.

Não é raro em supervisão discutirmos casos que possuem uma maneira de funcionar e de estar na vida totalmente “esquisita”, mas sem a presença de sintomas clássicos da psicose. Vale ressaltar o quanto é recente a aproximação da saúde mental nas pessoas em situação de rua. Os setores que tradicionalmente estiveram e estão presentes são: Segurança pública, assistência social e as religiões.

Paralelo a isso, é comum esses usuários chegarem no serviço já na idade adulta. Me parece interessante trazer para esta conversa que é comum que o próprio paciente e próximos (familiares, amigos) coloque o que estou chamando de “esquisito” no balaio da droga, produzindo consequências de difícil manejo. Mas também, me parece importante olharmos sobre a maneira que essas pessoas elaboram suas questões e vivem as suas vidas – levando em consideração os anos sem acessar um serviço de saúde mental.

Como o debate da psicose ordinária não é um debate coletivo do serviço, com alguma frequência, esses usuários envolvidos em episódios de violência são rotulados com diversos tipos de julgamentos morais, como por exemplo: mal-caráter, maldoso, 171, má índole, vagabundo, fez por querer, cara de pau etc. É primordial afirmar que não são todos os usuários que me remetem a pensar sobre psicose ordinária que se envolvem em episódios de violência.

Entretanto, não há tratamento para julgamento moral. Todavia, o usuário retorna para o CAPS. O que fazer? Como fazer? Como garantir tratamento para este paciente que passa ao ato com certa frequência dentro e fora do serviço e que é julgado moralmente por alguns técnicos? Um jogo de xadrez se estabelece a partir daí.

 Não irei responder essas questões que trago. Opto por deixar como parte do convite que estou fazendo neste pequeno texto e concluo com um pequeno relato de caso.

Relato de caso: Tubarão e a fome

Tubarão chega no serviço no final de uma manhã de supervisão. Muito agressivo e hostil, dirigi insultos à instituição e ao porteiro do CAPS. Dizia: “Estou com fome por causa do CAPS, estou na rua cheirando e sem comer há quatro dias por causa do CAPS e esse porteiro que não deixou eu entrar”, entre outros muitos insultos, inclusive de cunho racista. Pontuo para Tubarão que não era culpa do CAPS, muito menos do porteiro, digo que estava sem comer há quatro dias porque está mal. Não conseguindo parar sequer para comer. Concluo dizendo que teve acesso à comida nesses quatro dias, mas por estar mal, não conseguiu sequer parar para comer. Tubarão cessa os insultos e consegue dizer sobre sua atual situação.

* Esse escrito teve como pano de fundo a roda de conversa promovida pelo Núcleo de Psicose e Saúde Mental no dia 18 de março de 2017 na EBP-Rio sob a coordenação de Paula Borsoi e de Vicente Gaglianone.