Comentários de Cecilia B. Castro (Turma de 2015) sobre o trabalho “O brincar e o desenho na análise com criança”

A Jornada, organizada em 4 mesas, versou sobre os seguintes eixos principais:

  1. Sobre o analista
  2. A clínica com crianças
  3. Corpo e angústia
  4. Algumas psicoses

Quatorze autores apresentaram seus textos, embasados pela experiência clínica e pelo cotejamento teórico, revisados por orientadores e matizados pela singularidade de cada olhar. Cada mesa contou com um debatedor que soube enriquecer aspectos das leituras dos casos, reconsiderando-os sob novas lentes, suscitando novos efeitos e fazendo circular entre os presentes o desejo de mais, ainda.

Na mesa 2, Andrea Cavalcanti de Freitas apresentou seu trabalho, intitulado: “O brincar e o desenho na análise com criança”. Selecionei este texto para comentar porque me interesso pela interação entre psicanálise e arte, sintoma e fantasia. Pelas palavras de Andrea pude fazer diversas associações importantes à temática do meu interesse, ainda que seu foco principal de investigação recaísse sobre o tema aparentemente específico do brincar infantil.

Logo na abertura, Andrea aponta o texto de Freud de 1904 “Personagens psicopáticos no palco”. Ela recorta do texto que “ser espectador participante seria para o adulto o mesmo que representa o brincar para a criança”. O jogo dramático, a encenação, provocaria prazer, na comédia ou no drama.

Mas, como poderíamos especular por que esse prazer no jogo de cena (e em outras expressões artísticas) ocorreria? O eu (o espectador) se vê como distinto do outro (o ator), mas pode eventualmente rever esta posição, sendo assaltado por uma inquietante estranheza – o que mostra que coexistem nele correntes divergentes. Tal como no Unheimliche, algo fica nas sombras e se mostra, a uma só vez, estranho e familiar. É desta con-fusão que a arte tira partido[1].

Como se estuda na arte, o conhecimento mimético se estabelece através da representação pela imagem, pelo símbolo, assim como a criança imita as ações das pessoas para compreender o que elas significam[2]. Nesse sentido, a incorporação de imagens visuais, em qualquer idade, é um dos modos pelos quais nos apoderamos, pela fantasia, de tudo que não podemos (se bem que o desejemos) possuir na realidade[3].

Andrea segue citando um outro texto de Freud, de 1907, “Escritores criativos e devaneios”, no qual ele afirma que o brincar da criança é determinado por desejos e que nesse ato ela se comporta como um escritor criativo. Como cita Andrea, a obra literária, assim como o devaneio, seria uma continuação ou um substituto do brincar infantil. A partir da leitura de “Além do princípio do prazer”, obra de Freud datada de 1920, Andrea prossegue mencionando a ideia do prazer envolvido no brincar e de como a operação implicada neste ato pode, pela repetição (ou mímesis, imitação), fazer a criança passar da passividade para um papel ativo e transferir uma experiência desagradável e realizar uma substituição. Daí parte o questionamento e pesquisa de Andrea: considerando o brincar infantil no trabalho psicanalítico, como o analista pode interpretar este brincar?

Andrea, então, vai tecendo o enquadramento da abordagem psicanalítica, onde se deve evitar a produção de sentido padronizada, permitindo que a singularidade do sujeito emerja, a seu tempo, sem apressar interpretações prematuras, como bem o fez Freud no caso do menino Hans. Em seguida, a partir de Lacan, Andrea discorre brevemente sobre alguns casos de atendimento a crianças realizados por Anna Freud, Melanie Klein e Rosine Lefort. Lacan sustenta que, sejam de adulto ou de criança, as produções do sujeito não são para serem decifradas ou preenchidas de sentido pelo analista. O que está em jogo não são propriamente os elementos do desenho, da brincadeira ou do relato. Para Lacan, as repetições apontam para o que não está lá e trata-se do objeto a.

É nesta oportunidade que Andrea se vale do texto de Marie-Hélène Brousse “O objeto da arte na época do fim do belo: do objeto ao objeto” onde a autora considera que o artista contemporâneo interpreta objetos comuns e os articula com o objeto a – tal qual este circula na psicanálise. Desse modo, Andrea formula: se há uma aproximação entre o fazer artístico e as invenções do sujeito na psicanálise, entre arte e objeto a, como ler o brincar na análise de crianças?

Sendo a arte contemporânea considerada como sendo da ordem do fora do sentido, mas que, no entanto, algo parece ali se inscrever, Andrea constrói uma ponte com a produção das crianças, que criam sem se preocuparem com coerências ou explicações e que também rompem com o sentido formal, inventando algo de singular, abrindo uma possibilidade de relação com o objeto a.

Brousse, em texto de 2008 “O saber dos artistas”, ampara-se em Lacan para resumir: “a psicanálise não se aplica à arte, é a arte que se aplica à psicanálise”. Antes de iniciar a apresentação de casos clínicos, Andrea conclui: o analista que atende crianças, em analogia do espectador da arte contemporânea, encontra o desafio de experimentar uma ruptura do olhar e deve olhar para além de.

Retomando aspectos teóricos sobre arte, na direção de relacioná-los com o fazer da psicanálise, finalizo comentando, a partir de Theodor Adorno, que toda obra de arte tem uma dimensão de enigma insuperável. Para compreender a arte, é preciso ser familiar a ela e manter sua estranheza, pois a compreensão não dissolve o enigma. Daí é necessário um processo mimético para entendê-la, é preciso imitá-la, ou seja, deixar ressoar o que a obra tem de singular e único em nós. A linguagem da arte só é alcançada com seu silêncio[4]. Acrescento, ainda, que a dualidade possível na compreensão desta frase é benvinda.

[1] RIVERA, Tania. Guimarâes Rosa e a Psicanálise; ensaios sobre imagem e escrita. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. (p.15)

[2] FREITAS, Verlaine. Adorno e a arte contemporânea. 2.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008. (p.12)

[3] FULLER, Peter. Arte e Psicanálise. Lisboa: Dom Quixote, 1983. (p.149)

[4] FREITAS, Verlaine. Adorno e a arte contemporânea. 2.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008. (p.34-36; 46)