Ondina Machado – Política do Ato
O trabalho apresentado por Gustavo Dessal no XI Congresso da AMP- Barcelona 2018, “La vida episódica”, trata de um aspecto dos dias atuais que, embora muito ligado ao campo laboral, nos proporciona uma reflexão sobre o supereu que se manifesta sorrateiramente no Outro atual. Dessal fala sobre uma nova normalidade que, a nós psicanalistas, já soa de forma irônica. Situa que este é um sintagma amplamente usado pelo discurso neo-liberal que busca dar um aspecto natural ao que seria motivo de revolta contra as condições atuais de vida. Esta naturalização busca que os cidadãos introjetem normas advindas de decisões políticas como se tivessem “caído do céu”. Com essa expressão, ele quer dizer que as decisões políticas são vendidas como uma fatalidade, que as transformações que provocam em nossas vidas seriam fruto de uma contingência em relação às quais devemos nos conformar e até mesmo as replicar sem manifestar nenhuma oposição. Para convencer-nos prometem o sucesso pessoal e profissional. Ele lista três características “desejáveis” por essa nova normalidade:
A flexibilidade: o ideal do eu seria uma “subjetividade flexível”. Ser flexível é o melhor que um currículo exemplar pode apresentar numa sociedade líquida. Isso se apresenta sob vários aspectos, como por exemplo aceitar que agravos sejam cometidos nas relações de trabalho, tais como o aumento de carga horária, o aviltamento dos salários e a exigência de mobilidade. No mundo neo-liberal, o trabalhador ideal deve estar predisposto a consentir irrestritamente com a demanda do Outro, seja ela a da multitarefa ou da invasão de seu tempo de lazer. São corriqueiras as expectativas de que o trabalhador possa executar uma multiplicidade de tarefas, independente de seu talento ou disposição. As mudanças ou desvios de função são uma realidade para aqueles que estão empregados. A disponibilidade do tempo de lazer é vista como natural e irrecusável diante do acesso fácil que a internet tem sobre nós a qualquer momento ou lugar. Podemos considerar inclusive, que em nosso país, a onda dos chamados ‘concursistas’, aqueles que querem garantir seu futuro por meio de uma estabilidade profissional, gere um número inestimável de pessoas que não conseguem estabelecer com o trabalho uma ligação libidinal, dispostos a exercer funções medíocres mesmo ocupando cargos de certo status. Outra consequência pode ser observada pelo declínio do exercício de profissões chamadas liberais ou autônomas, já que estar à mercê do mercado sem rede de proteção é equivalente, hoje em dia, a uma prática de alto risco. Mais uma consequência seria o prolongamento da permanência de filhos adultos na casa dos pais, pois o alto custo da vida exigiria sacrifícios impensáveis para quem depende das facilidades da vida moderna: TV a cabo, internet, celular, etc.
A adaptação: o desejável é uma identidade mutante e plástica. Para alcançar este ideal jamais devemos nos apoiar na expectativa social ou na ação conjunta cidadã, segundo Dessal, estes são valores “fora de moda” que levam a um exílio social. O Outro neo-liberal espera que o impulso individual se sobreponha ao laço social, às tradições e às identidades. A não-identidade permitiria, nesse mundo pós Aldous Huxley, adaptar-se a condições de vida com prazo de validade cada vez mais curto, uma vida episódica, de errância existencial, laboral e social. O objetivo desse novo paradigma sócio-político é a não-identidade que, segundo o autor, estaria vinculado a uma ideologia que só funciona no binário “o meu e o alheio”, onde o alheio ameaça o meu. A retórica que sustenta essa ideologia faz da globalização uma língua universal, desprovida de história e desvinculada de toda aderência libidinal a seu próprio percurso de vida. É nesse ponto que Dessal denuncia a ascensão do nacionalismo como uma tentativa de compensação identitária para aqueles que não se moldam a essa “espiritualidade algorítmica”.
A funcionalidade: aqui a oferta é de uma vida exitosa, sem monotonia e em constante mutação. Segundo o autor, o sujeito não identificado não é um carente de referentes, ele os pega nos significantes-mestres do discurso liberal que transforma a precariedade em riqueza. É um sujeito que não reconhece nenhuma dívida com o Outro, ele se constitui por fora da alienação aos significantes da tradição tributários do Nome-do-pai. Ele se auto-engendra, ou pelo menos se crê assim. Mas o autor adverte que essa não-identidade é uma identificação ao sintoma do Outro, uma servidão disfarçada de êxito. Ele conclui que se trata de uma vida cujo roteiro é escrito pelo supereu, o casting é escolhido pelo mercado, mas o corpo é o do falasser.
Assim, a retórica neo-liberal faz das constantes mudanças de emprego, de cidade e de profissão um modo de crescimento pessoal, um estímulo à inovação, uma oportunidade de fazer novos laços, sair da rotina e empreender uma vida sempre renovável. Para tal é necessário construir narrativas que deem conta dos movimentos migratórios dos sujeitos mercantilizados. Nesse ponto as TCC (técnicas cognitivo-comportamentais) foram substituídas pelo coaching. Este último se propõe a ajudar pessoas a criarem um argumento capaz de dar sentido às suas vidas errantes. Inspirado nas filosofias orientais, o coaching nada mais é que um mix de algoritmo e mindfulness, uma espécie de vitamina para repor as forças que faltam àqueles que seguem o difundido objetivo da “carreira não linear”.
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CRÉDITOS
Comissão de publicação do ICP-RJ: Cristina Duba (coordenação), Arthur Chicralla, Cecília Moraes, Leonardo Miranda, Luiza Sarrat Rangel, Sandra Landim, Tatiana Grenha e Thereza De Felice