Categoria: Lógica do contemporâneo

Relatório do período 2012-2015

De agosto de 2012 a dezembro de 2015, o Núcleo sobre a Lógica do Contemporâneo, Psicanálise e Cultura, investigou pontos cruciais da clínica psicanalítica nos dias atuais. Foi importante marcar que o psicanalista só adquire legitimidade em sua prática se ele considerar a subjetividade de sua época. Esta questão foi discutida tomando como eixo “o declínio social da imago paterna” [1], tal como prognosticou Lacan em 1938, bem como a ênfase do sujeito no lugar de gozo e as intervenções no real do corpo.

A pesquisa do Núcleo iniciou a partir da discussão do livro Los 4 discursos y el Otro de la modernidad, de Marie-Hélène Brousse[2]. A autora se remete ao mais além do Édipo desenvolvido por Lacan em O seminário 17 e às consequências deste conceito ao abordar o lugar da psicanálise no discurso do mestre contemporâneo. Lacan ensinou que o discurso do mestre organiza o discurso do inconsciente, já que em ambos o agente é o S1, por isso mesmo são discursos que se equivalem. Aconteceram mudanças ao longo do ensino de Lacan, pois a partir de O seminário 17 a interpretação não se efetua mais a partir do pai edipiano, e sim a partir do S1, definido mais tarde, em O Seminário 23, como o nome do sinthoma. Lacan interpreta o discurso do mestre contemporâneo a partir dos discursos do capitalismo e da ciência.

Brousse elucidou que a psicanálise sustenta o para além do Édipo porque se antes fornecia uma resposta ao todo produzido pela universalidade da lei do Outro, na atualidade, ao contrário, estamos numa época onde O Outro não existe, e o que fascina é o não-todo. Nessa direção ela propôs superpor as fórmulas: saber fazer com seu sintoma e saber fazer com sua imagem. Sua tese é de que não estamos mais no tempo da tragédia, e sim no tempo de ironia e irrisão, uma comédia que transcreve a ruptura com o Outro que não existe.

Marie-Hélène Brousse se valeu de obras literárias para mostrar uma leitura do pai na contemporaneidade, distinta da leitura edípica. Focalizou o não-todo do Nome-do-Pai e assinalou a pluralidade dos nomes. Por exemplo, o livro A Dália Negra, de James Ellroy, fala da decomposição de um corpo feminino em um crime. O autor revela um estilo literário típico em destroçar a língua nos cortes das frases, fazendo com se possa acompanhar a diferença entre o enunciado e o movimento da enunciação, mas sem que se possa constatar a atribuição subjetiva.

Outro exemplo de Brousse[3] é o livro de Thomas Bernhard, Mestres Antigos, que se caracteriza por um estilo musical, pois constrói um escrito como se fosse uma fuga de Bach: pode-se encontrar na mesma página muitas vezes uma mesma palavra, mas com um deslocamento de sentido, como se seguisse um movimento musical de fuga[4].

Finalmente, para mostrar as consequências do Outro da modernidade, Brousse exemplificou o Outro através da pintura de Francis Bacon (1909-1992) retratando o Papa Inocêncio X sentado numa cadeira, pintura original de Diego Velásquez datada de 1650. Nela, o corpo se apresenta como um retrato com padrões e limites, enquanto nos esboços de Bacon aparece como figuras sem moldura, sem padronização, sem limites, expressando o horror.

 Seguindo a nossa pesquisa trabalhamos a conferência de Jacques-Alain Miller (2004) “Uma fantasia” [5], que aborda a cultura após o declínio do significante Nome-do-Pai. Amparado no Lacan de “Radiofonia”, assinalou que ascensão do objeto a liga-se ao imperativo de gozo imposto pelo discurso capitalista e à queda dos ideais que sustentavam a crença no Pai. Por isso a “fantasia” de Miller foi a de propor o discurso do psicanalista “como estrutura do discurso hipermoderno da civilização”, pois “o discurso da civilização hipermoderna tem a estrutura do discurso do analista”, uma vez que ambas – a civilização e a psicanálise –, já não tem mais uma relação de avesso/direito, “essa relação é, antes, da ordem da convergência” [6].

A moral civilizada mencionada por Freud permitia aos sujeitos desamparados ter uma bússola – pois a moral inibia a transgressão e funcionava como interdição ao gozo, – hoje os sujeitos encontram-se desbussolados.  Nessa direção trabalhamos o Seminário de J.A.Miller, “O Outro que não existe e seus comitês de ética” a partir da pergunta: o que ocorre quando o Outro não existe?

Para concluir trabalhamos o texto de Miller[7] “Progressos da psicanálise bastante lentos”, fundamental para acompanhar as mudanças na teoria de Lacan referente ao gozo, à fantasia e ao sinthoma. Miller esclarece que antes o desejo era criado pelo interdito, tendo origem edipiana, enquanto no contemporâneo o Outro é o próprio corpo[8]. E o gozo não está mais ligado à interdição, ele é um acontecimento de corpo, cujo valor é o de se opor à interdição. O que conta é a satisfação que a pulsão obtém em sua trajetória que não depende do interdito. Tudo se transforma do gozo do Outro para o gozo do corpo.

Encerramos nosso percurso de estudo com a discussão dos textos chaves para o Congresso da AMP, em abril de 2016. Trabalhamos “O corpo falante e o inconsciente no sec.XXI”- argumento de Miller para este congresso e o texto de M. H. Brousse, “Corpos lacanianos: novidades contemporâneas sobre o Estádio do Espelho”. (Revista Opção Lacaniana on line no15)

Outras referências bibliográficas citadas e/ou comentadas:

BROUSSE, M.-H. (2002). O inconsciente é a política. São Paulo: seminário EBP-SP, 2003.

______________.(2012). El Superyó Del Ideal hacia el objeto perspectivas políticas, clínicas y éticas.Córdoba Babel Editorial

CLAUDEL, P. (1908-1916). L’otage, suivi de Le pain dure et Le père humilié. Paris: Gallimard, 1990.

LACAN, J. (1960-1961) O Seminário, livro 8: a transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992.

_________. (20/11/1963).  Nomes-do-Pai. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.

_________. (1969-1970). O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992.

_________. (1974-1975). “RSI”. Seminário 22, não publicado, tradução desconhecida.

_________. (1975-1976). O seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.

Miller, Jacques-Alain.\ colaboração com Éric Laurent: “O Outro que não existe e seus comitês de ética” (1996-97, Paidós, 2005),

[1] LACAN, J. (1938). “Os complexos familiares na formação do indivíduo”. Em: Outros escritos. RJ: Jorge ahar Ed., pp. 66-67.

[2] BROUSSE, M.-H. (2000). Los 4 discursos y el Otro de la modernidad. Cali: Ed. Letra, Grupo de Iinvestigación de Psicoanálisis de Cali.

[3] Ibid, pp. 99-103.

[4] Ibidem, p. 99.

[5] MILLER, J.-A. (2004). “Uma fantasia”. Em: Opção lacaniana n. 42. São Paulo: Eolia, janeiro 2005.

[6] Ibid, p. 9-10.

[7] MILLER, J.-A. (2010-2011). “Progressos da psicanálise bastante lentos”. Em: Opção Lacaniana n.64, dezembro de 2012, pp. 9-67. .

[8] Ibidem, p. 63.

Notícia do Núcleo de pesquisa

No encontro do dia 05 de outubro, o Núcleo se reuniu em torno da conferência “Falar com seu corpo”, de Jacques-Alain Miller (Opção Lacaniana nº 66, agosto 2013). A partir das constatações de que “a saúde mental não existe” e de que “cada um tem seu grão de loucura”, Miller nos fala da posição singular do analista frente ao discurso comum, o discurso de massa. O caráter ficcional do termo “saúde mental” reaparece quando se tenta, por exemplo, numa pretensa objetividade, expor um caso clínico como se fosse o de um paciente, sem levar em conta o laço transferencial com aquele que o escuta. O analista, diferentemente, está implicado no caso, sua presença produz efeitos, ele está “dentro do quadro” clínico, precisa pintar a si mesmo dentro deste quadro assim como Velázquez representa a si mesmo com o pincel na mão em sua tela “As meninas”.

Ao longo dos últimos anos, o discurso do mestre penetrou de maneira profunda a dimensão psi, a dimensão do “mental”, através, por exemplo, do fácil acesso aos psicotrópicos, da expansão da psicoterapia sob um modo autoritário, em se tratando sempre de uma aprendizagem para o controle. Se antes esse domínio escapava em grande parte aos governos, ele é atualmente objeto de regulações e exigências cada vez maiores. Essa progressão acontece paralelamente ao reconhecimento público da psicanálise, recolocando o desafio aos analistas de sustentarem sua posição remodelando sua prática em função do que lhes é requerido a partir do cenário atual sem abrir mão da sua ética.

Para a psicanálise, a única saúde mental que um sujeito é capaz de conseguir advém de certo exílio conquistado do discurso do Outro, advém do sintoma que uma vez esvaziado de seu sentido, nem por isso deixa de existir, mas vive sob uma forma que já não escraviza mais o sujeito. A psicanálise oferece, portanto, para aquele que nela aposta, acesso ao campo onde o mental se esvaece e deixa o real nu.

Lacan uniu com um laço essencial a verdade e a mentira, e apontou o campo que está para além da mentira do mental, a parte mais opaca do que Freud já nomeava como libido. Sendo assim, podemos observar, a partir da leitura de Miller, uma mudança no modo de se tomar o termo “desejo” na obra de Lacan: tomado como o que era irredutível à demanda, tal como pensado nos anos 50, o desejo deixa entrever agora sua face de “sentido”. O desejo, tal como no percurso de uma análise, passa também por uma deflação se apresentando agora como semblante que, como a relação sexual, é outra “verdade mentirosa”. Afirma Miller: “O desejo é o sentido e o semblante da libido, sua mentira mental”.

Outra passagem na obra de Lacan diz respeito à mortificação do corpo pelo significante. A partir do Seminário 20, é possível reconhecer que o significante não só mortifica o corpo, mas que nesta operação que recorta uma parcela de carne, esta última emerge numa palpitação que anima o universo mental. O significante não só mortifica o corpo, mas vivifica o gozo, ele marca o corpo com um vestígio inesquecível, um “acontecimento de corpo”, um advento de gozo que não volta jamais ao zero. Deste modo, como diz Miller, “o corpo não fala, mas serve para falar”. O que a psicanálise oferece para cada um é o horizonte de um saber fazer com esses gozos sem as muletas da fantasia, da tela.

Tatiana Grenha

Resenha do texto “Corpos lacanianos”

Em Granada, setembro de 2009, há exatos seis anos, Marie-Hélène Brousse proferia a conferência intitulada Corpos lacanianos: novidades contemporâneas sobre o Estádio do Espelho, que mantém sua atualidade. Estivemos discutindo esse texto, disponível na Revista Opção Lacaniana on line no 15, com tradução de Elisa Monteiro.

A autora inicia apontando como Lacan, desde os anos 30, procurou apoiar os conceitos psicanalíticos aos postulados científicos. Foi com base na etologia, ciência que estuda o comportamento dos animais, que Jacques Lacan observou também haver uma orientação dos seres falantes de relacionar a imagem ao real, desse modo dando ao imaginário uma base real.

É de 1949 a teoria lacaniana do Estádio do Espelho que estabelece que a unidade do corpo da criança não advém das sensações orgânicas, mas da imagem de si, seja a do espelho ou aquela refletida pelo outro. O organismo, naturalmente caótico, e seu corpo fragmentado necessitam da imagem do corpo para fazer um velamento, uma máscara frente ao real, este impossível de apreensão plena pelo sujeito para realizar sua identificação. Marie-Hélène propõe uma nova leitura do Estádio do Espelho, dizendo da relação necessária entre imagem do corpo e corpo fragmentado, assim como Lacan havia relacionado em matema o significante sobre o significado, a partir de Saussure. Ela adverte que, embora essas variantes sejam separadas, a relação entre estas mesmas partes são absolutamente importantes e, se não harmônica, pode desencadear transtornos subjetivos importantes.

No segundo comentário sobre o Estádio do Espelho, é lembrado que a imagem integrada não se produz para a criança sem a linguagem, sem o que Lacan chama o Outro. Desta vez, nos anos 50, para dizer da ilusão produzida pela apropriação da linguagem pela criança e pela estruturação do inconsciente como uma linguagem, Lacan se vale de um modelo ótico: dependendo da lente do espelho (côncava ou plana) a imagem do real resultará de um modo ou de outro, fragmentário ou unificado. Marie-Hélène prossegue: “a dificuldade nesta escritura se refere aos pontos de encontro entre a experiência orgânica e a imagem do corpo.” A autora esclarece que o laço entre a imagem (do corpo) e o organismo (corpo fragmentado) tem a ver com as experiências de gozo, ou seja, relaciona-se com as zonas erógenas: boca, ânus, falo, ouvidos e olhos. Estas zonas, que não são imagens, permitem grampear a imagem com o organismo e também se referem aos objetos a. Esses objetos, se percebidos na imagem do corpo não causam estranheza, mas se se apresentam fora da imagem do corpo causam angústia. Um objeto a tem um sentido fálico, um valor de significante, se unificado no corpo. Se aparece fora dele, perde seu valor fálico e é puro real. Exemplos: membro amputado, olhar, voz, excremento, cabelo.

Hoje, a ciência possibilita tratar o organismo como partes que podem ser separadas, alteradas, trocadas, convertendo-o em objetos de competência econômica. O discurso da ciência modificou o corpo fragmentado e também a sua imagem. Para que esta se estabeleça já não prescinde da visão humana, muitas imagens podem ser obtidas por máquinas. Toda sorte de intervenção poderá ser praticada, de cirurgias plásticas e transplantes a imagens internas do organismo. Os seres falantes necessitam cada vez mais de informações para fazer barreira à angústia, antes aplacada por discursos tradicionalmente constituídos. Marie-Hélène considera que está em curso uma decadência do Ideal do Eu e um desenvolvimento do eu ideal à medida que a ciência avança. O império da linguagem e das imagens parece ceder ao império da escritura científica.

Concluindo, Marie-Hélène Brousse lembra que a arte contemporânea é aliada da psicanálise no discurso que revela mudanças na cultura em decorrência da ciência. Marie-Hélène crê que estamos cada vez mais em uma civilização de objetos a, tal como eles são, vistos pelo espelho côncavo, fragmentados, sem imagem que os unifique e que proporcione um sentido.

Links para as obras mencionadas no texto, que olham criticamente o nosso tempo, de autoria do artista plástico britânico Damien Hirst:

Cecilia Castro

 

Análise do caso Hans Eppendorfer: o crime e a passagem ao ato na tese de M. B. da Motta

 

A tese de Manoel Motta trata da criminalidade à luz da psicanálise lacaniana com os conceitos da teoria freudiana, com o ensino de Lacan e com as elucidações da Orientação Lacaniana de Jacques-Alain Miller. Os três Registros lacanianos, Real, Simbólico e Imaginário, lhe servem de baliza. Analisa com profundidade casos de crimes que se tornaram famosos pela sua repercussão na sociedade da época e pelos estudos que suscitaram no campo da psicanálise.

Delimita, nesse estudo, um campo de investigação próprio, “o estudo da passagem ao ato em sujeitos criminosos”. Os apresenta sobre um novo ângulo: a passagem ao ato como resultado de uma lógica própria. Lógica que supõe três momentos vividos por esses sujeitos criminosos: pensar, ver e concluir em relação ao objeto. Trata-se do objeto real da psicanálise, o objeto a, do ponto de vista de sua de extração do campo da realidade, o que significa um corte da realidade. Da orientação lacaniana, a tese se vale em especial do conceito lacaniano do gozo, do gozo Outro na psicose, da presença do empuxe à mulher, com as consequências clínicas. E, ainda, da noção chave e mais original no ensino de Lacan, a “extração do objeto a do campo da realidade”. O estudo de todos os casos contribui para uma atualização, uma nova compreensão do que se denomina como uma ‘teoria psicanalítica das Psicoses’.

Mirta Zbrun

 

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