O debate promovido pelo Núcleo de Psicanálise e Direito do ICP/EBP-RJ no dia 5 de junho de 2018, a meu ver, instalou um marco inaugural no que tange à implicação dos psicanalistas de nossa comunidade nas consequências inerentes à situação política brasileira atual, ao demonstrar com precisão a queda do Estado Democrático de Direito no Brasil da Lava Jato. A convocação do psicanalista à altura do seu tempo por Lacan nos exige como condição a leitura da dimensão histórica contemporânea, inclusive a especificidade de nosso país, eu acrescentaria; dimensão que só os psicanalistas brasileiros poderiam ler, já que estão confrontados com a responsabilidade por uma prática inserida numa terra de tradição escravocrata e colonizada. Tal condição nos parece partir, nesse caso, da leitura das consequências subjetivas gravíssimas a que um estado de exceção instalado no laço social nos leva – ponto a partir do qual uma vez escutado, não se pode recuar. A experiência desse debate, coordenado por Cristina Duba, é comparável àquela experiência que ocorre de tempos em tempos numa análise; quando algo que já foi falado de várias formas finalmente é escutado de uma maneira tão singular que nada do que vem depois poderá permanecer como estava.
Os princípios do direito penal foram expostos a partir de sua estrutura, desvelando o nó essencial da tragédia brasileira, dando elementos suficientes à nossa comunidade e a tantas pessoas de fora da Escola que lá estavam, para se posicionar diante de uma leitura crítica das consequências devastadoras da hipertrofia jurídico-penal para o campo subjetivo em seus registros simbólico, imaginário e real.
A análise inteligente, precisa e rigorosa do Jurista e psicanalista Agostinho Ramalho Marques Neto delimitou a definição e a demonstração do que caracteriza o Estado Democrático de Direito: há limites rígidos ao exercício do juiz e do judiciário que, se ultrapassados, apontam para a queda do direito constitucional e com ele as garantias de proteção de todo réu, de todo aquele que é acusado. Vale lembrar aqui que, para a psicanálise e para o direito, de sua posição o sujeito é sempre responsável, como enfatiza Renata Costa-Moura, e quando a valência deste axioma cai para o direito, ela cai também como condição da operação analítica. A questão trazida por Romildo toca, justamente, no ponto de conjunção e disjunção entre a lei positiva do direito e a lei do desejo; nesse sentido Marques Neto traz à tona o conceito de letra, lembrando que a letra da lei coincide com a letra do desejo.
Afastando-se de uma perspectiva punitivista, o pesquisador em direito constitucional Agostinho Ramalho parte da pergunta-chave de seu argumento: “o que vale mais numa democracia, deixar impune um culpado ou condenar um inocente?” O psicanalista Agostinho mostra a tendência humana por responder que o melhor seria condenar um inocente. Há qualquer coisa nos seres falantes que os leva a um clamor pelo castigo, pela vingança, pela punição de seu semelhante. É exatamente por isso que existe o direito, para dar contornos, limites ao direito de punir como prerrogativa do Estado, barrar a tendência sanguinária dos homens e estabelecer determinados princípios que protegem qualquer condenado. O primeiro deles é o princípio da presunção de inocência, que reitera as garantias do processo penal democrático, a preservação do bem jurídico da liberdade até o trânsito em julgado em processo penal condenatório e, até lá, do amplo direito de defesa do cidadão. Quem deve provar a culpa do réu é o acusador e não o contrário, nunca caberá ao acusado provar sua inocência, pois esta já seria garantida como presunção a todo cidadão. A inocência é condição prévia no direito. Para o segundo caso, temos o exemplo da Inquisição. Já se partia de uma certeza, a convicção da culpa. Os meios pelos quais se conseguia prová-la ou não eram pouco importantes. As práticas de tortura também funcionam assim, o sujeito dirá o que o torturador quer ouvir para comprovar sua convicção prévia.
Como experiente professor de direito, Agostinho examinou não os limites à atuação do juiz em abstrato, mas sim, e unicamente, dentro dos moldes de uma democracia. “Não se trata apenas de um Estado de Direito no sentido de regido por leis. Qualquer Estado totalitário é regido pelas leis (de exceção, mas nem por isso menos “leis”) que ele próprio estabelece. Tanto Creonte, o tirano de Tebas, quanto Hitler, o Führer da Alemanha nazista, não teriam maiores dificuldades em proclamar seus Estados como “de direito”. Afinal, as atrocidades que cometem sempre podem ser interpretadas como não proibidas pelo direito vigente, e nesse sentido não deixam de revestir-se de um caráter de legalidade. (Leia mais no artigo completo de Marques Neto: http://emporiododireito.com.br/leitura/limites-a-atuacao-do-juiz-por-agostinho-ramalho-marques-neto)
Portanto, o que caracteriza o Estado Democrático de Direito é um limite rígido à atuação do juiz ao julgar uma sentença. A presunção de inocência é uma clausula pétrea na Constituição brasileira, isso implica dizer que, se negligenciada, o limite rígido está eliminado. Agostinho, o jurista, exemplifica o processo de Luiz Inácio Lula da Silva, processado pelo estado e julgado pelo Juiz Sergio Moro, como um processo paradigmático do ultrapassamento dos limites rígidos, justamente a começar pela presunção de inocência. Um réu é condenado sem provas e as delações que são premiadas não estão baseadas em qualquer materialidade do fato. Ocorre que não se trata de um caso isolado. O psicanalista Agostinho traz sua escuta dos elementos discursivos da presidente da suprema corte do país, Carmem Lúcia, ao afirmar: “nós vamos combater a corrupção!”. Qualquer pessoa pode querer combater a corrupção, menos o juiz em seu exercício, já que a função inquisitória e principalmente a função policial não são a sua; a imparcialidade é uma condição para que exerça sua função de subsunção do caso à luz da lei. Nesse ato falho – ato falho porque disse mais do que gostaria ou poderia enquanto juíza – ela mostra que não exerce o lugar necessário à imparcialidade do juiz, já que é uma combatente. Comparada ao árbitro famoso de um jogo que apitava, embora torcesse para um dos times. Ao sair a bola na lateral ele grita: “Bola nossa!” Ou seja, quando um juiz no exercício de sua função rompe com a imparcialidade, não há mais juiz.
Romildo considera que o texto de nosso palestrante deve se tornar um clássico do núcleo de psicanálise e direito do ICP-RJ e indica a leitura a toda a Escola Brasileira de Psicanálise. Renata lembrou a afirmação de Lacan, quando assevera que “deve renunciar à prática da psicanálise todo analista que não conseguir alcançar, em seu horizonte, a subjetividade de sua época”, concluindo que não podemos prescindir da escuta e do discurso analítico. Por fim, Marie Hélène Brousse foi lembrada quando aponta que “em primeiro lugar eles [os analistas] devem tomar partido, têm de se engajar e, em segundo, fazer com que a psicanálise seja possível, e continue sendo. Isso obriga os analistas a se questionarem sobre a organização da sociedade”[1]. Afinal, neste contexto a omissão assume valor de ato.
Mariana Mollica
Participante do Núcleo de Psicanálise e Direito do ICP-RJ
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[1]BROUSSE, M-H. O inconsciente é a política”. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 2003.( p. 55-56)