LOUCURAS E AMORES NA PSICANÁLISE

Adilson Valentim – Turma 2015

Apaixonado. Foi assim que me senti quanto a Jornada desse ano. Nos dois dias que estive por lá, o que pude ver e ouvir foi um encontro de pessoas absolutamente envolvidas com a Psicanálise. Cada um em seu momento distinto, dentro do qual localiza-se neste saber. Que tantas vezes se coloca como um não saber para que assim se mova. Com pontos de interrogação bastante presentes.

Ao chegar, deparei-me com jovens envolvidos com a venda de livros. De alguma forma, senti-me tocado com o engajamento. Imaginei a hora em que eles haviam chegado lá, para deixar tudo tão arrumado.  Já tinha café. Ao subir as escadas, encontro o auditório especialmente bonito. O mesmo auditório semanalmente frequentado, que de alguma forma já é de casa, estava arrumado e aconchegante. Pensei: isso é fruto do Desejo. Alguém desejou isso.

O que se fazia presente era uma mistura dos que já estão na Escola há mais tempo e dos que estão chegando. Mas, tudo se misturava. Era uma coisa só.

As mesas começaram a apresentar seus trabalhos. E fui percebendo algo que para mim é uma marca que muito aprecio na Escola. Que é a forma natural e tranquila com que não se levam a sério. Quando digo isso, não estou me referindo a outra coisa senão à naturalidade com que se colocam, muitas vezes, na posição de não saber. E começar uma apresentação sem saber onde ela terminará, apenas sabendo que o desejo os levou até ali e que o não saber fará o resto. O Testemunho de Passe de Maria Josefina Fuentes, apresentado na primeira noite, é um destaque a esse respeito.

Talvez o que faça tal postura acontecer seja o acolhimento generoso sempre presente na Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Rio.

No fim da primeira noite, eu já estava encantado, cativado e apaixonado. E ao descer as escadas me deparo com gente. Parecia que a festa programada para o dia seguinte já estava acontecendo. E fiquei. Naquele momento não tinha mais como não ir na festa de encerramento da Jornada, também de encerramento do ano. Era impossível não ir. Na manhã do dia seguinte foi a primeira coisa que fiz ao chegar, inscrevi-me para a festa.

Araceli Fuentes fez-se presente como convidada. E junto dela o tempo todo duas intérpretes absolutamente focadas, cada uma a seu modo, confirmaram a cena que já estava estabelecida no dia anterior.

A pose para a foto das equipes que trabalharam expressava alegria e satisfação. Que foto bonita!

No fim, foi deixar o Supereu em algum lugar,  não sei onde,  e ir à Festa.

Loucura Amor é na Psicanálise

Por Rodrigo Pedalini – Turma 2017

Perdoem-me pelo pobre mas inevitável jogo de significantes que intitula o texto que abaixo se incorpora.

Convidado a escrever em eco ao que vi e ouvi das XXV Jornadas Clínicas da Escola Brasileira de Psicanálise Seção Rio e do Instituto de Clínica Psicanalítica do Rio de Janeiro (10 e 11 de novembro de 2017), estou aqui olhando para o folder de programação da Jornada, para seu logotipo e pensando que a palavra Amor,escrita entre Loucura e Psicanálise, provocou em mim algumas elucubrações. Primeiro que, assim como inscrito, o amor foi o ponto central da Jornada. Eram sorrisos, agradecimentos, elogios, pontuações, declarações e demonstrações diversas de amor. Do amor que impulsionou o trabalho, a produção e a perseverança de cada um dos participantes até então. Era como se todo o amor acumulado, motor do trabalho realizado durante meses, estivesse sendo declarado apaixonado nesses dois dias. Recebemos até mesmo um generoso presente, com o relato do que foi passado da Analista de Escola Maria Josefina Fuentes. Foi, no entanto, quando falou Pepita que nos ficou claro que o que se passava naquele momento era, mais que um relato, uma declaração de amor à psicanálise e à Escola.

“Traduttore — Traditore!”

Também e além, ocorre-me que estar com Lacan é estar no campo de uma outra linguagem. Participar como ouvinte das referidas Jornadas Clinicas foi, em dado momento e talvez com algum exagero figurativo, como participar do Oitavo Congresso da Academia Sueca de Letras, sem tradução simultânea. Foi dar-me conta que “aprender” Lacan (e aqui uso esse significante com a absoluta certeza de sua insuficiência no que se refere ao ensino de Lacan) é aprender uma outra língua e, ainda que não queira entrar aqui no campo teórico do Outro com sua linguagem, é dar-me conta de que não há tradução capaz de traduzir Lacan (tivemos até mesmo um momento de tradução de espanhol para espanhol! – os ouvidos atentos puderam perceber).

Mas… quem sabe o amor. O Amor é capaz de traduzir (e trair) a Loucura de Lacan em Psicanálise. Aí se faz transmissão.

Nota: Para quem não notou, Freud esteve lá e quis deixar presentes também: Os chistes – um de seus exemplos marca a segunda parte desse texto- estavam presentes em todas as mesas e eixos, e posso dizer que pude rir bastante (mesmo antes de beber). O ato falho Barcelona-Madri estava ótimo! O sonho, talvez o tenha acabado de relatar.

Ecos da Jornada

Por Leonardo Lacerda – Turma 2017

A palavra arte é a tradução latina para a palavra techné. Τεχνη em grego, ou simplesmente techné, significava para os gregos fazer aparecer, ποιησις, poíesis, o que faz com que algo passe do não ser para o ser, ou seja, remete à noção de desvelamento, revelação, produção da “verdade”, e dá origem a palavra poesia. Assim, como não pensar na dimensão poética do trabalho do analista, tanto na sua atuação prática como na teórica? O sintagma usual “práxis lacaniana”, nesse sentido, remeteria a um modo de  agir do analista que aponta para uma ação simplificada, que pouco tem a ver com o que nos foi apresentado nesses dois dias da XXV Jornada intitulada “Loucuras e amores na psicanálise”. O que vimos, nesses dois dias de intensos trabalhos, foi a elevação de dois significantes tão banais, cimentados a uma semântica pelo seu uso ordinário, a uma outra condição, um outro patamar. Como do mármore bruto Michelangelo produziu Davi, também dos termos “amor” e “loucura” pode-se extrair, a partir do trabalho poético dos conferentes e dos audientes e das ferramentas teóricas que a psicanálise de orientação lacaniana nos fornece, a não-toda potência desses significantes. Portanto, o trabalho sobre esses dois termos, por tudo que produziu nesses dois dias de jornada, não pode ser pensado senão como um trabalho artístico, poético, no seu sentido mais originário. E se nos obrigamos a escrever aqui o que fica para nós, do acontecimento que foi a Jornada, a resposta não poderia ser diferente da seguinte: a psicanálise é, sem dúvida, uma potência onde não se vislumbra seu esgotamento e a relevância desse dispositivo para nós, habitados de uma forma ou de outra pela linguagem, lançados no incontornável mal-estar produzido pela tensão entre a loucura e o amor, afirma-se na sua capacidade desmedida de dar respostas (e, sim, com estatuto poético) e amparo, aos sofrimentos  que nos acometem nesses tempos tão difíceis.

Nas ondas de “Corpo Elétrico”

Por Cecília Moraes participante do núcleo de psicose e saúde mental

Como atividade preparatória para as XXV Jornadas Clínicas, tivemos a exibição do filme “Corpo Elétrico”, seguida por um debate pulsante, que contou com a presença do diretor, Marcelo Caetano, de Marcus André Vieira e de Paulo Vidal, em mesa coordenada por Andréa Reis.

Como dar notícias desse encontro? Escolhi fazê-lo partindo do efeito que teve em mim o filme.

“Corpo elétrico” me comoveu bastante. Num momento em que se observa, cada vez mais, a segregação como modo proeminente de se lidar com a alteridade, com aquilo que resta de inassimilável no Outro, um filme que traz a convivência entre as mais diferentes pessoas sem que apareçam grandes conflitos, nem violência, comove. E o faz ainda mais porquanto o ambiente que as reúnem é um lugar que se imaginaria, em princípio, pouco fértil às trocas: uma fábrica de roupas, onde operários passam longas horas do seu dia debruçados sobre máquinas realizando movimentos repetitivos e solitários. No entanto, o que se assiste na tela desconstrói essa idéia. Não só as trocas ocorrem (como poderia ser diferente?), como ainda se dão muito harmonicamente entre os diversos personagens. Gays, heteros, mulheres, homens, negros, brancos, um evangélico, um estrangeiro… todos convivem sem entrar em colisão.

O espectador, como foi dito no debate, fica à espera de que algo irá destruir essa harmonia, aniquilá-la. Mas mesmo quando há uma fagulha de desentendimento, logo ela se dissipa, e a harmonia é reestabelecida.

O filme é só amor. Amor que flui por todos os lados e que desagua sem barreiras.

Não seria uma utopia? – algum comentário trouxe em seu bojo a questão. O diretor prefere falar em “heterotopia”, uma noção de Foucault, que ele resume como sendo um espaço heterogêneo dentro do real (aqui entendido como realidade), mas que é ao mesmo tempo uma fissura no real. Na perspectiva de Marcelo Caetano, trata-se de uma realidade improvável, porém não impossível.

Para a psicanálise, no entanto, não há como se pensar relações sem conflitos. A inexistência da relação sexual para o ser falante implica um desencaixe fundamental, um descompasso inerente às relações humanas. O mal-entendido está no berço da linguagem. E, se por um lado isso traz muitas perturbações no trato com o outro, é também o que nos permite continuar dirigindo a palavra ao Outro. Ou seja, é justamente o que nos permite fazer laço social, estar no discurso.

Os personagens do filme não estão fora do laço social. Mas talvez eles retratem um pouco a forma como o sujeito contemporâneo se engaja nas relações sociais hoje. São laços mais efêmeros, circunstanciais, líquidos. O que não quer dizer, porém, que não possam ser intensos. Elias, personagem central do filme, representa bem esse sujeito. O diretor disse que se inspirou no observador do poema de Walt Whitman, “Eu canto o corpo elétrico”, para este personagem. Assim como o observador, refletiu Marcelo Caetano, Elias vive a margem e transita por todos os lugares. Ele não está em lugar nenhum, concluiu. Talvez por isso Elias não consiga dizer onde se vê em 5 anos, quando o perguntam. Ele parece viver o presente sem muitos vínculos com o passado (só com um ex-namorado, que parece fazer uma função importante para ele) e sem pensar muito no futuro. Essa quase deriva, porém, não o angustia. Ou, pelo menos, não vemos uma angustia ali evidente. Tampouco grandes dúvidas ou dilemas.

No debate, Marcos André lembrou que, hoje, acontece de nos depararmos na clínica com sujeitos que, tal como Elias, não apresentam grandes angústias, ou grandes dilemas. Ainda assim, alguém só chega no consultório de um psicanalista quando existe algum tipo de mal-estar.  Se não é mais tanto a dúvida ou o dilema aquilo que leva os sujeitos a buscarem uma análise, o que é então? Como, em tempos de amores líquidos, o mal-estar se apresenta? E, como é possível pensarmos as ressonâncias disso para a transferência? É no singular do caso a caso que poderemos responder a estas questões e, certamente, as XXV Jornadas Clinicas, cujo tema foi Loucuras e Amores em Psicanálise, tiveram muito a nos dizer sobre isso.

Conversação ICP jornada 2017

Boa tarde a todos.

É com alegria que faço nesse momento a abertura da Conversação do Instituto de Clínica Psicanalítica do RJ e, exercendo minha função de diretora geral, gostaria de dizer algumas palavras sobre como chegamos até aqui.

Antes de tudo, gostaria de agradecer aos 3 diretores que me antecederam; Romildo, Marcos André  e Rosário e parabenizá-los por suas respectivas coordenações que, com firmeza e delicadeza, colocando seu desejo a trabalho, fizeram com que a conversação do ICP, que abre as jornadas da seção Rio, tomasse seu lugar, fazendo desse evento um marco importante da produção dos núcleos de pesquisa.   Agradeço às coordenadoras da jornada Angela  Batista  e  Andrea Reis, Maria Silvia Hanna e à Comissão Científica. Agradeço também a Angela Bernardes e a toda a diretoria da seção Rio e ainda à atual diretoria do ICP, composta por Gloria Maron, Cristina Duba, Tatiane Grova e Ronaldo Fabião. Obrigada aos coordenadores e participantes dos Núcleos de Pesquisa e a Araceli Fuentes, nossa convidada, por sua disponibilidade em participar desta Conversação.

O  ambiente de pesquisa, centrado na clínica, é o que define a pesquisa em psicanálise e o que se desenrola nos núcleos. A clínica psicanalítica, definida por Lacan como o impossível de suportar, comporta em sua prática um real, que vai produzir angústia, reenviando o sujeito às suas questões e à sua formação.

 Essa atividade de pesquisa clínica pretende demonstrar, através da apresentação e discussão de casos clínicos, como extrair da experiência do inconsciente e do trabalho de cada paciente, um saber, onde o real aparece disperso, sem sentido. Dito de outra forma, é um modo de trabalho onde se articulam o saber dos conceitos e o que pode ser depositado e apreendido na experiência. Essa pesquisa se sustenta  como uma  aposta, pois o real é inapreensível em termos de sentido, e a linguagem é insuficiente para conceituá-lo. Os casos clínicos que são discutidos nos Núcleos chegam de questões que atravessam vários dispositivos tais como o da saúde mental, da justiça, da infância, das toxicomanias e da violência, entre outros. Algumas das questões que norteiam a pesquisa dizem respeito ao modo como se dá o acolhimento do sujeito em  sofrimento psíquico, na radical e muitas vezes mortífera relação com a linguagem e o corpo e ainda onde conseguir um rearranjo, como  levar o sujeito a encontrar uma ancoragem sintomática, estando nos mais diversos dispositivos clínicos, levando em conta as soluções singulares encontradas por cada um. Muitas vezes são  sinais mínimos, sutis, outros mais barulhentos que podem ser lidos à luz da psicanálise e que também nos ensinam sobre o manejo clínico da  subjetividade da nossa época.

Para que a psicanálise não perca sua radicalidade é importante que o trabalho no Núcleo não aperte o nó entre saber e sentido. É preciso que essa articulação se desfaleça e que “o melhor da psicanálise se mantenha”, como nos orienta Lacan no Seminário 18. Isso  quer dizer  um saber que  se articula, mas que contém nele mesmo um ponto ilegível.  Esse ponto inapreensível é o que define o que é a psicanálise, que não é simples falta de saber, mas um osso, um caroço.

Nos Núcleos estão presentes analistas, membros da Escola, AMEs e também analistas praticantes e alunos, pessoas com percursos diversos, em momentos muito diferentes em sua relação com a Escola e com a sua formação, mas onde todos, com sua particularidade, têm um lugar. Lugar para dar de si, usando os textos e conceitos, para seguir a pesquisa clínica a partir dele, sem apagar o impossível de suportar. Que as formulações teóricas, surgidas a partir de um caso clínico, coloquem o sujeito confrontado com o seu ato, não para horrorizá-lo, mas pelo contrário, para que ele possa articulá-lo no a posteriori, num dos modos de fazer com o real da clínica. É numa análise que o sujeito se compromete e se responsabiliza por seu ato, mas o trabalho no Núcleo pode  criar condições, para que seus participantes possam, do ponto em que estão, compartilhar seus impasses e suas articulações, colocando   em andamento um modo de tratar o real.

A dimensão clínica da prática da psicanálise tem como referência de pesquisa a extração de um saber a partir, não da generalização, mas do caso a caso. Tomar cada caso como único é o que possibilita ao analista sustentar a idéia da construção do caso clínico como método de pesquisa. Este método é próprio da psicanálise e vai produzir um saber particular.

Essa dimensão, a da orientação teórica feita na articulação clínica, é um ponto político importante no que diz respeito ao trabalho realizado nos núcleos.  Uma das funções dos coordenadores dos Núcleos deve ser a de garantir e sustentar a orientação lacaniana do Campo Freudiano. Digo isto porque para que a produção de um saber, a partir da prática clínica, não se perca da radicalidade da teoria psicanalítica, ela não poderá estar dissociada do lugar e dos princípios onde é feita essa construção.

Ao acolher este trabalho realizado no Núcleo, ocorre uma autorização das elaborações de saber ali ocorridas, ao mesmo tempo em que fica circunscrita à orientação lacaniana, minimizando os efeitos de dissociação das questões clínicas, epistêmicas e políticas do Campo Freudiano. Vamos ter a oportunidade de verificar, ao final dessa conversação, se essa aposta se confirma.

Desejo a todos então um excelente trabalho!

Obrigada.

Paula Borsoi

 

 

Comentário sobre o encontro aberto organizado pelo Núcleo de Psicanálise e Direito: Ecos da guerra

No dia 11 de agosto último tivemos a oportunidade de ouvir, em encontro aberto do Núcleo de Psicanálise e Direito, as contribuições de Romildo do Rêgo Barros sobre as elaborações de Freud e Lacan sobre os acontecimentos das duas grandes guerras que abalaram o século XX e as consequências que a psicanálise pôde extrair desses eventos. Contamos também com a presença de nosso colega de Minas, Antonio Teixeira, que foi o debatedor do evento e trouxe um importante viés histórico e filosófico sobre a questão da violência presente na lei e no Direito, entre outras contribuições fundamentais.

Cristina Duba

Notas sobre o encontro do Núcleo de Psicanálise e Direito com Manoel Motta

Luiza Sarrat Rangel 

Na sexta-feira, 14 de julho, tivemos o encontro com Manoel Motta, que nos falou sobre o caso Landru. Um homem francês com características singulares, que inicialmente comete pequenas escroquerias, antes de se lançar à carreira criminal propriamente dita. Justificava a transgressão à lei como uma forma de cuidar da sua família, e numa sequência de passagens ao ato, com a licença para matar dada pela guerra, torna-se um assassino em série.

Landru se apresenta em relação à psicose de uma maneira singular, portando o semblante de uma normalidade aparente, que seduzia suas vítimas e tornava seus atos inacreditáveis. Escondia o modo como operava os crimes, negava as mortes, embora tenha deixado diversos sinais, algumas anotações e recortes de notícias que levaram ao desfecho da investigação da morte de algumas de suas vítimas por dedução, uma vez que os corpos das mulheres que matou, dos seus animais de estimação, e do filho de uma delas jamais foram encontrados de maneira que houvesse a possibilidade de identificação e reconhecimento.

Dada a singularidade do caso, Manoel Motta destaca que “o real lacaniano é sem lei”, mesmo que o simbólico seja constituído no campo do real a partir da lei. A lei da repetição significante revela o que há de singular na atuação desse sujeito que está associado ao contexto social da época, um real transformado pelo capitalismo, pela ciência e pela técnica. É nesse contexto que se desfaz, para ele, o laço social.

Antes disso era um inventor, chegou a inventar uma bicicleta com seu nome, não teve muito sucesso e depois de um certo tempo começou a enrolar clientes, mudar de lugar, mudar de nome, fazer pequenos roubos, não se inseria nas normas capitalistas ditas normais, empresariais. Ele não tinha uma identidade social muito consistente, mudava de residência constantemente, fazia a família o acompanhar, se apresentava por meio de diversas profissões, usava uma série de máscaras que não funcionavam efetivamente no laço social, e passa ao ato a partir do momento em que a guerra se desencadeia.

Para Romildo do Rêgo Barros, o testemunho material dos resíduos dos corpos das vítimas e dos seus animais é um traço fundamental na história. Romildo chama atenção para uma frase do livro de Michel Silvestre, de que “o psicótico tem imaginário e tem simbólico e é diferente porque essa articulação entre simbólico e imaginário não é fincada no corpo”.

Landru constrói essa junção do simbólico e do imaginário fora do corpo pela série de passagens ao ato, que só toma um sentido se considerado na série, até o ponto que há uma certa monotonia na repetição. Uma certa sombra, indistinção. A série é mais importante do que as características de cada mulher.

Landru vai na direção de construção do dispositivo, uma máquina que funcionasse para sempre a tal ponto que os detalhes do assassinato se tornem secundários. O fundamental é que por causa da esquizofrenia ele construa um dispositivo que funcione até que os resíduos dos corpos de suas vítimas que são indestrutíveis, por exemplo, dentes, apareçam e comecem a falar. De repente, são os objetos dejetos que começam a falar diante do silêncio do criminoso que não confessa seus crimes. Todo crime que alimenta a máquina produz exceções que são os objetos e os resíduos. O que escapa à inteireza imaginária dos corpos? O caso mostra isso bem.

 

Sobre a Jornada de Encerramento da Turma 2014 – parte 3

Comentários de Ana Beatriz Rocha Bernat (Turma 2014) sobre a mesa “Corpo e angústia”

A mesa foi coordenada por Fernando Coutinho e contou com as contribuições de Sarita Gelbert para o debate. Ana Beatriz Rocha Bernat, Maira Dominato Rossi e Monica Marchese Swinerd, apresentaram os trabalhos: “A incidência da escuta do analista na clínica do luto: do buraco ao vazio”; “Um corpo: entre o gozo e o desejo” e “Do corpo doente ao corpo abusado: sobre uma entrada em análise”, respectivamente. A organização da Jornada construiu esta mesa em função dos eixos corpo, medicina e angústia e os trabalhos vieram dar testemunho da clínica orientada pela psicanálise em instituições médicas e seus efeitos para a escuta do sujeito e de seu corpo.

Ficou bastante evidente a potência da escuta psicanalítica para acolher aquilo que resta do discurso médico e manifesta-se sob a forma de angústia no contexto hospitalar. Acolher o sujeito, seja ele o paciente ou a equipe que trata dele, e “instrumentalizar a angústia” seria a grande contribuição destes trabalhos, todos construídos a partir de fragmentos de casos das praticantes no hospital.

Sarita Gelbert iniciou o debate evocando uma Conferência de Lacan intitulada “O lugar da Psicanálise na Medicina”, sublinhou a importância do trabalho do analista com a equipe interdisciplinar que assiste ao paciente, a diferença e mesmo o declínio da função do médico na atualidade, se comparado ao médico sábio de antigamente. Lacan, nesta conferência, sublinha que o corpo goza e encontra-se dividido entre gozo e desejo, que está na forma do médico responder à demanda que lhe é endereçada a justificativa de sua existência. Há uma dimensão ética aí implicada e um trabalho do analista neste contexto dirigido ao gozo e que favorece a instrumentalização da angústia dos sujeitos envolvidos neste contexto.

Do primeiro trabalho, Sarita destacou a relevância do trabalho de luto no contexto da oncologia pediátrica que envolve a tríade câncer, criança e morte e um excesso sem fim. O manejo do caso tornou-se possível a partir do manejo da demanda dentro da equipe e da possibilidade de acolhimento daquele pai enlutado. Trata-se da equipe muitas vezes poder suportar a “transferência negativa” sem a ela responder defensivamente. Houve uma questão sobre a forma de tomarmos o ato deste pai: seriam passagens ao ato ou atuações. E a construção da escuta deste caso que só foi possível a partir de seu acolhimento em um grupo e da tomada daqueles atos, que eram indicativos de um tratamento selvagem dado à angústia por aquele sujeito, como um apelo e pela oferta e sustentação da escuta orientada pela psicanálise em outro contexto (fora do grupo). O encaminhamento do caso dentro da equipe favoreceu a sintomatização de tamanha angústia e a elaboração possível do luto.

Do segundo trabalho, Sarita destacou a relevância da instrumentalização da angústia no caso de uma paciente que se submete a três cirurgias de extração. Apontou na posição da paciente não ter espelho uma interrupção do circuito pulsional que envolve o olhar neste caso. Evocou a definição lacaniana da inibição como “sintoma posto no museu” e levantou a questão: “as cirurgias neste caso não seriam uma passagem ao ato, um encontro com o corpo despedaçado”.

Do terceiro trabalho, sublinhou-se a função do analista “construir fraturas” no discurso médico protocolar e favorecer o ciframento do gozo por parte do sujeito em tratamento psicológico que neste caso, dada a orientação de trabalho da praticante, tornou-se uma demanda de análise. Observou-se ainda neste caso a pregnância do objeto voz e que a incidência da escuta da analista tornou o câncer para esta paciente uma coisa completamente diferente do que era antes deste convite à palavra.

Trata-se, então, na escuta orientada pela psicanálise na instituição hospitalar, de favorecer o ciframento do gozo e estarmos atentos ao que poderíamos nomear como tratamento selvagem dado ao gozo.

 

Sobre a Jornada de Encerramento da Turma 2014 – parte 2

Comentários de Cecilia B. Castro (Turma de 2015) sobre o trabalho “O brincar e o desenho na análise com criança”

A Jornada, organizada em 4 mesas, versou sobre os seguintes eixos principais:

  1. Sobre o analista
  2. A clínica com crianças
  3. Corpo e angústia
  4. Algumas psicoses

Quatorze autores apresentaram seus textos, embasados pela experiência clínica e pelo cotejamento teórico, revisados por orientadores e matizados pela singularidade de cada olhar. Cada mesa contou com um debatedor que soube enriquecer aspectos das leituras dos casos, reconsiderando-os sob novas lentes, suscitando novos efeitos e fazendo circular entre os presentes o desejo de mais, ainda.

Na mesa 2, Andrea Cavalcanti de Freitas apresentou seu trabalho, intitulado: “O brincar e o desenho na análise com criança”. Selecionei este texto para comentar porque me interesso pela interação entre psicanálise e arte, sintoma e fantasia. Pelas palavras de Andrea pude fazer diversas associações importantes à temática do meu interesse, ainda que seu foco principal de investigação recaísse sobre o tema aparentemente específico do brincar infantil.

Logo na abertura, Andrea aponta o texto de Freud de 1904 “Personagens psicopáticos no palco”. Ela recorta do texto que “ser espectador participante seria para o adulto o mesmo que representa o brincar para a criança”. O jogo dramático, a encenação, provocaria prazer, na comédia ou no drama.

Mas, como poderíamos especular por que esse prazer no jogo de cena (e em outras expressões artísticas) ocorreria? O eu (o espectador) se vê como distinto do outro (o ator), mas pode eventualmente rever esta posição, sendo assaltado por uma inquietante estranheza – o que mostra que coexistem nele correntes divergentes. Tal como no Unheimliche, algo fica nas sombras e se mostra, a uma só vez, estranho e familiar. É desta con-fusão que a arte tira partido[1].

Como se estuda na arte, o conhecimento mimético se estabelece através da representação pela imagem, pelo símbolo, assim como a criança imita as ações das pessoas para compreender o que elas significam[2]. Nesse sentido, a incorporação de imagens visuais, em qualquer idade, é um dos modos pelos quais nos apoderamos, pela fantasia, de tudo que não podemos (se bem que o desejemos) possuir na realidade[3].

Andrea segue citando um outro texto de Freud, de 1907, “Escritores criativos e devaneios”, no qual ele afirma que o brincar da criança é determinado por desejos e que nesse ato ela se comporta como um escritor criativo. Como cita Andrea, a obra literária, assim como o devaneio, seria uma continuação ou um substituto do brincar infantil. A partir da leitura de “Além do princípio do prazer”, obra de Freud datada de 1920, Andrea prossegue mencionando a ideia do prazer envolvido no brincar e de como a operação implicada neste ato pode, pela repetição (ou mímesis, imitação), fazer a criança passar da passividade para um papel ativo e transferir uma experiência desagradável e realizar uma substituição. Daí parte o questionamento e pesquisa de Andrea: considerando o brincar infantil no trabalho psicanalítico, como o analista pode interpretar este brincar?

Andrea, então, vai tecendo o enquadramento da abordagem psicanalítica, onde se deve evitar a produção de sentido padronizada, permitindo que a singularidade do sujeito emerja, a seu tempo, sem apressar interpretações prematuras, como bem o fez Freud no caso do menino Hans. Em seguida, a partir de Lacan, Andrea discorre brevemente sobre alguns casos de atendimento a crianças realizados por Anna Freud, Melanie Klein e Rosine Lefort. Lacan sustenta que, sejam de adulto ou de criança, as produções do sujeito não são para serem decifradas ou preenchidas de sentido pelo analista. O que está em jogo não são propriamente os elementos do desenho, da brincadeira ou do relato. Para Lacan, as repetições apontam para o que não está lá e trata-se do objeto a.

É nesta oportunidade que Andrea se vale do texto de Marie-Hélène Brousse “O objeto da arte na época do fim do belo: do objeto ao objeto” onde a autora considera que o artista contemporâneo interpreta objetos comuns e os articula com o objeto a – tal qual este circula na psicanálise. Desse modo, Andrea formula: se há uma aproximação entre o fazer artístico e as invenções do sujeito na psicanálise, entre arte e objeto a, como ler o brincar na análise de crianças?

Sendo a arte contemporânea considerada como sendo da ordem do fora do sentido, mas que, no entanto, algo parece ali se inscrever, Andrea constrói uma ponte com a produção das crianças, que criam sem se preocuparem com coerências ou explicações e que também rompem com o sentido formal, inventando algo de singular, abrindo uma possibilidade de relação com o objeto a.

Brousse, em texto de 2008 “O saber dos artistas”, ampara-se em Lacan para resumir: “a psicanálise não se aplica à arte, é a arte que se aplica à psicanálise”. Antes de iniciar a apresentação de casos clínicos, Andrea conclui: o analista que atende crianças, em analogia do espectador da arte contemporânea, encontra o desafio de experimentar uma ruptura do olhar e deve olhar para além de.

Retomando aspectos teóricos sobre arte, na direção de relacioná-los com o fazer da psicanálise, finalizo comentando, a partir de Theodor Adorno, que toda obra de arte tem uma dimensão de enigma insuperável. Para compreender a arte, é preciso ser familiar a ela e manter sua estranheza, pois a compreensão não dissolve o enigma. Daí é necessário um processo mimético para entendê-la, é preciso imitá-la, ou seja, deixar ressoar o que a obra tem de singular e único em nós. A linguagem da arte só é alcançada com seu silêncio[4]. Acrescento, ainda, que a dualidade possível na compreensão desta frase é benvinda.

[1] RIVERA, Tania. Guimarâes Rosa e a Psicanálise; ensaios sobre imagem e escrita. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. (p.15)

[2] FREITAS, Verlaine. Adorno e a arte contemporânea. 2.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008. (p.12)

[3] FULLER, Peter. Arte e Psicanálise. Lisboa: Dom Quixote, 1983. (p.149)

[4] FREITAS, Verlaine. Adorno e a arte contemporânea. 2.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008. (p.34-36; 46)

Sobre a Jornada de Encerramento da Turma 2014 – parte 1

Comentários de Mayara Alvarenga Ferra (Turma 2016) sobre o trabalho “Isso ainda é psicanálise?”

Pude participar somente durante o período da manhã da Jornada de Encerramento da turma de 2014. Gostei muito dos trabalhos e dos comentários dos debatedores das mesas. Em específico o trabalho da Andrea V. Marcolan, “Isso ainda é psicanálise? – Sobre a formação do analista e o trabalho em instituição”, justamente pelo comentário do debatedor Rodrigo Lyra – a partir da citação de Freud “A atividade psicanalítica é árdua e exigente; não pode ser manejada como um par de óculos que se põe para ler e se tira para sair a caminhar” – de que a psicanálise não é uma ferramenta, e sim um discurso, o qual o analista é tomado pela psicanálise.

Essa questão me tocou, pois é o que venho encontrando na minha pós-graduação em psicologia hospitalar em que ouço muito o discurso de que a psicanálise é uma técnica que se aplica em um determinado paciente, e que em outro se utilizaria outra abordagem, pois a psicanálise não daria conta. Como se fosse algo que você usa só quando acha necessário, como um par de óculos. Assim como também ouço falar que tenho que atuar como psicóloga hospitalar e que essa área nada tem a ver com a psicanálise, como se desse para destituir, separar as duas coisas. Assim como atuar como psicanalista seria somente no consultório, que na instituição, principalmente no hospital, não daria, pois é necessário uma “intervenção breve”.

Estar orientado pela psicanálise é estar orientado pela ética do desejo, já como dizia Lacan no O Seminário, livro 7. É estar tomado pelo seu discurso, do sujeito do inconsciente, sujeito dividido, pela escuta do inconsciente, pela associação livre. A psicanálise não é uma técnica e sim, uma ética. E é a partir dessa ética que se pode “fazer” psicanálise em qualquer espaço, instituição, não sendo possível se desvestir da mesma.

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