Arthur Chicralla
O enfraquecimento do Nome-do-Pai acarreta efeitos de desorientação para os adolescentes de hoje em dia. Essa é uma das considerações de J.-A. Miller[1] no artigo “Em direção à adolescência”. Esse enfraquecimento do Nome-do-Pai não significa seu desaparecimento: o que se observa na contemporaneidade é o declínio do patriarcado como principal forma de transmissão do saber e das maneiras de fazer. O discurso da ciência faz deslocar a primazia que a função do pai tivera outrora, destituindo e desgastando registros da tradição que organizavam, entre outros, a família e a sexualidade.
Há, porém, como aponta Miller, uma tradição que não se abalou pelo discurso da ciência: o islã. Mais do que isso, o islã chega ao “mercado” do Ocidente, de forma acessível e atrai a aderência de adolescentes e jovens, pois representa o discurso que melhor organiza o laço social sobre a não relação sexual. Ao contrário do cristianismo e do judaísmo, o islã o não foi riscado pelo discurso da ciência e estabelece na sua lógica as coordenadas de como deve ser um homem, uma mulher, um pai, uma mãe, etc.. O islã seria até uma boia de salvação recomendável, comenta o autor, para os jovens à deriva devido a referências simbólicas frágeis, se não fossem seus desvios, como por exemplo, o fundamentalismo do Estado Islâmico.
O problema do corpo do Outro é o último item deste artigo de Miller e traz uma questão importante sobre a formação de grupo neste contexto: se o laço entre os membros não se dá a partir de uma ilusão de um gozo do corpo do Outro. Para introduzir tal questão, Miller apresenta uma ruptura de perspectiva da Psicanálise de Freud a Lacan. Em “Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, Freud[2] estabelece uma transição do gozo autoerótico à satisfação copulatória, que gera uma ilusão de que se goza do corpo do Outro. Com Lacan, o gozo se situa tão somente do lado do próprio sujeito – goza-se do próprio corpo ou de suas fantasias. A questão de Miller é sobre grupos que possivelmente se formam, não por uma identificação de seus membros ao ideal do eu, mas pela ilusão de um gozo comum que dá corpo ao Outro.
Neste sentido, o islã, e mais precisamente o Estado Islâmico, possui grande êxito neste tipo de grupo corporificado a partir do gozo do Outro. Para Miller, estabelece-se uma nova aliança entre identificação e pulsão, que não segue a lógica por exemplo do cristianismo, no qual há a dialética constituinte pai-filho que insere a Lei e um sujeito dividido. No Estado Islâmico a inscrição do sujeito se dá por outra via: não há fascinação pela causa perdida. Enquanto no cristianismo a pulsão de morte encaminha para a castração do próprio sujeito, no Estado Islâmico a pulsão de morte está a serviço da morte do Outro, o que conduz Miller a nomear esse desvio de narcisismo da causa triunfante.
Tal discussão retoma um trabalho anterior de Miller[3] que trata da questão do racismo – tema também levantado por Lacan[4]. Raça neste sentido corresponde ao efeito do discurso para circunscrever aquele que goza de um modo diferente do sujeito, ou seja, extrapola a questão imaginária da etnia, religião, nacionalidade, etc.. O racismo é o ódio ao modo de gozar do Outro. Porém, tem que se destacar que gozo do Outro possui relação êxtima com o sujeito, isso quer dizer que no próprio gozo do sujeito há uma parte de inassimilável, de alteridade.
En el racismo, por ejemplo, se trata precisamente de la relación com un Otro como tal, un Otro pensado en su diferencia. Y no parece que todos los discursos generales y universales sobre el todos somos hombres tengan alguna eficacia en esta cuestión. Porque en el racismo se trata de un odio que se dirige precisamente hacia lo que funda la alteridad del Otro, hacia el goce del Otro. Me parece que esto se ve a través de la experiencia analítica. Ninguna decisión es suficiente para borrar el racismo, dado que este se funda en este punto de la extimidad de Otro. No se trata solo de agresividad imaginaria, que se dirige al semejante. El racismo es lo que se puede imaginar del goce del Otro, es el odio a la forma particular, propia, que tiene el Otro de gozar. Se puede pensar que el racismo existe porque el vecino islámico hace demasiado ruido con sus fiestas, pero lo que está verdaderamente en juego es que obtiene su goce de un modo distinto que nosotros. Quizá la televisión le interesa menos y prefiere gritar un poco.[5]
Engendrar o laço social num corpo fraterno que busca situar o gozo do Outro num campo externo e nomeável, para extirpá-lo, é um fenômeno contemporâneo bastante notável.
Trazendo o problema para a realidade brasileira, destaco a aderência de jovens às facções criminosas ligadas ao tráfico de drogas, principalmente nas grandes cidades. Sérgio Laia[6] faz uma importante comparação entre os jovens jihadistas franceses e os “meninos do tráfico” no Brasil. Focarei aqui apenas nas proximidades dos grupos para articular adolescência com a temática do racismo. Em ambos os grupos citados, há um enlaçamento da juventude em torno de corpos que se constituem como irmandade e se colocam em oposição a outros corpos. Cria-se uma união dos membros que se escora por uma função de fraternidade ou família, onde se impera a vontade de gozo mortífero. É pelo gozo, pelo modo de satisfação, que operam essas conexões e não pelas referências simbólico-identificatórias, daí o ponto que converge à questão da segregação.
O racismo, então, se apresenta quando nosso desvairado modo de satisfação procura se orientar rejeitando as formas diferentes (ou mesmo desconhecidas) de o Outro se satisfazer. Por exemplo, em nome do que gozamos como o Bem ou a Democracia (à la Bush ou, de modo menos truculento, Obama), países islâmicos são puramente identificados como o Mal e destruídos; visando garantir nosso gozo da ‘segurança pública’, as ‘Comunidades’ são invadidas para o ‘combate ao tráfico’.[7]
A adolescência, portanto, ganha relevo nesta discussão por ser esse momento lógico em que o sujeito é impelido a buscar Outros corpos para sua satisfação sexual e identificação. Segundo Laia, o desvario desses sujeitos tende a tomar proporções cada vez mais intensas, já que, atualmente, por consequência dos efeitos da globalização, as coordenadas do Outro não possuem contornos tão palpáveis.
Para finalizar, cito Éric Laurent[8], que ao falar sobre o tema, nos adverte da ineficácia de reduzir o fenômeno a uma questão de ideal. O gozo é o eixo que perpassa esses grupos e qualquer tentativa supostamente especializada, para tratar esses jovens, baseada num viés moralista ou de ideologia tende ao fracasso. A experiência de gozo é o que deve reverberar quando se tem a oportunidade de ouvir esses sujeitos, sendo a fala instrumento precioso no dispositivo ético.
Por essa razão, os falsos debates construídos em torno de retirar esses jovens dessa via de perdição, no sentido de tentar desradicalizá-los e falar-lhes de outro ideal de vida parecem falhar, precisamente, quanto à experiência de gozo fundamental. De fato, seria muito mais pela via da arte, pelas paixão dos grupos de arte, ou seja, a paixão de falarem juntos, vivida não com um tipo de fala à maneira dos protestantes, dos alcoólicos anônimos ou confessando seus pecados etc. Não. Vivida como paixão de poder exteriorizar, digamos, extrair do corpo todas essas palavras, toda essa angústia de viver que os precipitou nesse tipo de solução. Ao contrário, é a fala como arma de combate que deve ser praticada. É uma fala que também deve ser carregada de emoções e afetos, tal como são essas experiências de vida narco.[9]
[1] MILLER, J.-A. “Em direção à adolescência.” Em: Opção Lacaniana, Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n.72, março de 2016, São Paulo: edições Eólia, p. 20-30.
[2] FREUD, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905). Em: ______ Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Ed. Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1980.
[3] MILLER, J.-A. Extimidad. Buenos Aires. Paidós, 2010.
[4] Ver LACAN, J. Televisão. Em: _______ Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.
[5] MILLER, J.-A. op. cit. p.221
[6] LAIA, S. Os jovens daqui e os do Estado Islâmico: proximidades e diferenças. Em: CALDAS, H. BEMFICA, A. e BOECHAT, C. (orgs.) Errâncias, adolescência e outras estações. Belo Horizonte: Editora EBP, 2016. p. 147-155.
[7] Ibid. p. 149.
[8] LAURENT, É. A fala não é um semblante: entrevista com Éric Laurent, por Marcus André Vieira. Em: CORREIO – São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise – n.79, 2016. p. 37-41.
[9] Ibid. p. 41.