Sobre a Conversação com Hélène Deltombe no Colóquio da EBP-Rio e do ICP-RJ

Por: Ana Maria Lima (Turma 2015 ) 

A conversação clínica com Hélène Deltombe durante o Colóquio da EBP-Rio e do ICP-RJ Despertar do adolescente: do gozo ao desejo, trouxe ainda mais profundidade a reflexão sobre a direção no tratamento nos dois casos já trazidos para o ICP, surgiram mais detalhes e cenas da clínica. O que podemos dizer que continuou mais marcante foi a destreza da psicanalista em conduzir o tratamento pela clínica do real do gozo, sem perder a dimensão das estruturas edipianas clássicas, ali presentes e registradas,  mas com o tratamento orientado para os significantes de gozo.

Foram discutidos dois casos da prática de Hélène Deltombe com adolescentes. Nos deteremos em alguns breves comentários sobre eles.

A psicanalista se atém ao tratamento do gozo, da vontade de “felicidade”, para a paciente, o gozo absoluto, tendo no horizonte a pulsão de morte. Fazendo emergir o enigma do sintoma em contraponto à fantasia de gozo a qual ela tudo se submete, a paciente se vê as voltas com o desejo de saber, fazendo conexões entre suas produções artísticas e sua subjetividade. Logo: “A força da experiência analítica a colocou na dimensão dos traços significantes de sua existência, lhe abrindo a via de uma expressão artística que tocava seu gozo”. A paciente passa a poder produzir um laço social com sua arte, assentindo com a não relação sexual, e colocando-se mais no movimento de conquista de saber do que da demanda de felicidade anterior.

No outro caso, o paciente começa, a partir da análise, a desconsistir a importância do grupo com quem se identificava e compartilhava um ódio segregatório, proveniente de uma relação parental muito influente na sua formação, que se ressentia do gozo do outro. A partir do olhar da psicanalista é possível chegar ao significante marca do seu ódio, que também marca seu estranho familiar. Ele pode então aproximar-se de sua história de uma forma diferente. O desejo de saber se dá pela satisfação obtida com a descoberta de uma nova língua e pela curiosidade de suas origens.

Nos dois casos, é possível acompanhar a virada do gozo ao desejo, que se dá pela via do significante, pela constituição de um enigma do sintoma, e o desejo de saber, que abre portas para outros meios de satisfação que incluem uma certa conciliação com a não relação sexual e a impossibilidade do gozo absoluto fora da morte.

 

Sobre o Colóquio da EBP-Rio e ICP-RJ

Sobre o Colóquio da EBP-Rio e ICP-RJ:
Despertar do adolescente: do gozo ao desejo

 Por: Thereza De Felice (Turma 2015)

Levantarei nesse breve comentário sobre o Colóquio da EBP-Rio e ICP-RJ, que aconteceu nos últimos dias 23 e 24 de setembro, algumas questões que se colocaram nos trabalhos apresentados e pareceram ter um destino interessante na conferência final de Hélène Deltombe. O fio condutor do Colóquio foi a pergunta: como se vai do gozo ao desejo na adolescência?

O par “violência e delicadeza” na clínica abriu uma questão que se reiterou ao longo do dia, sobre o que marcaria a delicadeza na clínica com adolescentes. O tempo pareceu ser um indicador importante. A escuta do tempo do sujeito, que não é o tempo eterno, mas o tempo do momento, do corte, já é a orientação clínica que tomamos com Lacan. Na adolescência, contudo, esse tempo se mostra mais radicalmente fugaz e sutil em suas aberturas, constantemente obturado pelo Outro, exigindo do analista uma escuta especialmente atenta a essas sutilezas, para poder fazer vacilarem as defesas e abrir uma brecha onde apareça algo da singularidade.

E o que é isso que aparece na adolescência e causa tantas questões e estranhamento, para o adolescente e para aqueles que o rodeiam? O que é isso que exige uma delicadeza a mais? A ideia geral que pareceu se sustentar ao longo do colóquio foi de que o adolescente dá testemunho do desencontro sexual. O adolescente faz sintoma a partir do despertar do gozo opaco que ocorre nesse momento, e isso denuncia sintomaticamente no Outro o impossível de qualquer complementariedade existir.

Assim, é o real que se coloca em jogo para o adolescente, o real da puberdade, segundo Deltombe – momento da diferenciação sexual, escolha de objeto, reconfiguração do narcisismo e desencadeamento do imaginário e simbólico. O adolescente está frente às novas demandas do Outro, para as quais as soluções imaginárias infantis não se sustentam mais. É preciso que ele invente um modo próprio de fazer laço social, com seus próprios recursos – por exemplo, às identificações àqueles que atravessam o mesmo momento. Em suma, o encontro com o real convoca o adolescente a um novo processo de simbolização.

Trata-se, com isso, de pensarmos o que nós, analistas, podemos fazer diante desse processo. A aposta de Deltombe é na oferta do recurso da fala. Uma análise deve se interessar pelo nó que se faz – ou se fez – na adolescência, “enfrentar o desconhecido e criar o inédito”. Ela propõe que, com o declínio paterno, a função paterna na passagem da relação imaginária mãe-criança ao consentimento da castração pode ser substituída pela função significante; “a linguagem no lugar do pai”, ela nos diz.

É a fala enquanto veículo significante que tem o peso da separação e pode operar no real que se coloca na adolescência. Tomar os sintomas como um chamado a que se escute um sofrimento, escuta essa que convoca a uma localização no desejo do Outro, é a alternativa que a análise pode oferecer, por exemplo, às classificações do sintoma pela faixa etária. Deltombe coloca o dispositivo analítico como aquilo que pode permitir que os significantes apareçam em uma lógica que diz respeito ao gozo. Ela articula o desejo do analista a um interesse pelo gozo, na via da fala.

Do gozo ao desejo, da escuta da linguagem em articulação com a posição de gozo com vistas ao objeto que orienta o desejo, essa é a direção do analista. Soma-se a isso, na adolescência, fazer falar um sintoma que se produz no encontro com o impossível da relação e pede uma reconfiguração simbólica importante, a invenção de recursos próprios e a distinção primordial de uma singularidade.

Notícias do Núcleo de Psicanálise e Direito

Leonardo Lopes Miranda

            No primeiro semestre deste ano o Núcleo de Pesquisa de Psicanálise e Direito teve como proposta prosseguir com o tema trabalhado no ano passado em que encerramos com os textos de Laurent e de Miller sobre o Racismo. Assim, Cristina Duba sugeriu pesquisarmos nos escritos de Lacan e de seus comentadores o percurso sobre a temática da segregação discutida no âmbito da psicanálise.  A princípio nos orientamos pelos textos de Lacan, Miller, Laurent, M-H Brousse e Romildo do Rego Barros.  Iniciamos os estudos com as leitura do texto de Lacan “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da escola” (LACAN, 1967) que foi apresentado por Cristina Duba e Cristina Lutterbach com a contribuição de Rodrigo Abecassis. Neste encontro foi discutido sobre o princípio de igualdade suposta pelo Direito e seus efeitos de segregação.

           Posteriormente, em outro encontro apresentei o texto  “Televisão” (LACAN, 1973), extraindo deste a resposta de Lacan à questão levantada por Miller sobre a escalada do  racismo. Prosseguimos a nossa pesquisa trabalhando o texto de Romildo do Rego Barros intitulado “A pequena diferença, entre pele e espinho” (BARROS, 1998). Nos encontros em que discutimos esse texto contamos com a contribuição de Arthur Chicralla que nos brindou com a sua pesquisa sobre a expressão “narcisismo das pequenas diferenças”, utilizada por Freud pela primeira vez em “Tabu da virgindade” (1918 [1917]). Arthur nos apresentou os trechos em que Freud menciona essa expressão em outros dois textos. Segundo Arthur, em “Psicologia das massas e análise do eu” (1921),  Freud fala do fenômeno, mas sem citar a expressão. Arthur supõe que este trecho comporta tanto o narcisismo das pequenas diferenças quanto a questão do racismo/segregação. Arthur também acrescenta que a expressão retorna quando Freud trabalha o tema da agressividade em “O mal-estar na civilização” (1930 [1929]). Ele ressalta que  neste texto a expressão “narcisismo das pequenas diferenças” representa tanto uma satisfação à inclinação agressiva, quanto um fortalecimento  da coesão do grupo.

            Cristina Duba comenta o percurso de Arthur sobre o “narcisismo das pequenas diferenças” em Freud ressaltando a instabilidade que essa noção aponta e que justamente indica a zona cinzenta entre o eu e o Outro. Por um lado,  a diferença pequena, real, que sustenta uma diferença imaginária, totalizada, narcísica, em tensão com o que fica fora. E nos propõe uma questão: como pensar a relação entre essa agressividade da tensão imaginária, narcísica e a segregação como o fracasso dessa fronteira, visando o extermínio, a violência que se funda no fracasso da fronteira?

            Maria Lídia Alencar também comenta essa contribuição de Cristina Duba, dizendo que isso a remeteu ao homicídio, duplamente segregativo,  racista e homofóbico, do Diego, estudante de Letras, da UFRJ, negro e homossexual, em que a morte violenta em circunstâncias obscuras aponta para um gozo sexual, não admitido, que resvala pra passagem ao ato.

            No próximo semestre vamos prosseguir a nossa pesquisa, com a contribuição de Arthur Chicralla, Cristina Frederico e Mônica Rolo, em torno dos textos de Freud, Miller e Laurent, a partir das questões suscitadas pelo texto de Romildo. A partir desta pesquisa Mônica Rolo  também propôs a leitura do livro Colóquio de la Extimidad  (2011) de Laurent sobre racismo onde ele fala da questão do universal do mercado comum em Lacan e o universal da ciência em Miller.

Bibliografia

BARROS, R.R. “A pequena diferença, entre pele e espinho” Em: Ágora, Estudo em Teoria Psicanalítica. ano 1, n. 1, jul.-dez. Rio de Janeiro. UFRJ. 1998.

FREUD, S. (1918 [1917]) “Tabu da virgindade” Em:______.Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. v.XI Rio de Janeiro: Imago, 2006.

__________. (1921) “Psicologia de Grupo e a Análise do Ego” Em:______.Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. v.XVIII Rio de Janeiro: Imago, 2006.

__________. (1930[1929]) “O mal-estar na civilização”. Em:______.Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. v.XXI Rio de Janeiro: Imago, 2006.

LACAN, J.   _________. (1967) “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola”. Em: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor. 2003.

_________. (1973) “Televisão”. Em: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor. 2003.

LAURENT, E. Coloquio de la Extimidad, Buenos Aires, EOL. Grama. 2011.

 

 

 

 

 

 

 

Travessias da adolescência

Luciane C. Stern

O texto abaixo surgiu a partir de algumas reflexões e discussões realizadas no Núcleo de Pesquisa: “A criança no discurso analítico” – Curumim. Agradeço as coordenadoras e a todos os componentes as contribuições enriquecedoras.

Na adolescência o sujeito sai do universo simbólico da família e se abre ao mundo. A adolescência é um momento de escansão, de abertura da infância para um novo campo de possibilidades. Imputa-se ao adolescente encontrar um novo lugar na sociedade, um novo traçado para a sua existência e uma nova diretriz em relação aos seus objetos amorosos. Cada adolescente deve buscar uma causa que dê sentido a sua existência, conciliando com os impasses do seu desejo.

Inaugurando distâncias e proximidades possíveis entre o eu e o outro, o adolescente é convidado a circunscrever novos lugares. Enfim, cabe ao adolescente encontrar o seu jeito de estar na vida.  Uma vida que vá além das antigas fronteiras.

Ao encarar o desconhecido, o adolescente utiliza-se do que tem à sua disposição, que são suas experiências infantis. Estas são retomadas num contexto modificado, fornecendo-nos, no entanto, indícios de como o sujeito adolescente buscará a satisfação adequada às novas exigências – momento propício para que velhas questões do sujeito apareçam de forma intensa, causando as crises adolescentes.

Metamorfoses anatômicas e fisiológicas acontecem com a chegada da puberdade. Essas transformações que operam no corpo dos adolescentes, à sua revelia, não os deixam impunes. Nesse momento de transição, os adolescentes são chamados a fazerem uma distinção fundamental na esfera sexual, e se perguntam sobre a diferença entre o que é ser um homem e o que é ser uma mulher. Os referenciais identificatórios do sujeito são colocados à prova e o narcisismo se reconfigura.

Na infância não havia essa distinção significante, na medida em que, entre os meninos e as meninas, havia somente uma identidade possível – ambos eram o falo – a identificação com o mais fundamental dos símbolos.

A criança não tem à sua disposição o ato, ficando em suspenso a solução do seu drama fálico. Já na adolescência, com o ato a seu dispor, o adolescente passa a se perguntar: o que fazer a partir dessa nova posição com o outro sexo? Esse é o novo que se introduz na adolescência, quando o gozo sexual se destaca do corpo, das satisfações sexuais da infância e dos objetos pulsionais autoeróticos, para se introduzir na relação entre os dois sexos.

Entra em cena um novo estatuto de objeto que permitirá ao adolescente encontrar um objeto no exterior, um objeto que não seja mais o objeto edipiano do passado. O adolescente resultará de uma desidentificação com a imagem infantil, ao apresentar-se como homem ou mulher a seu modo singular.

Para a teoria lacaniana, o adolescente é aquele que passa da posição infantil de desejado ou não desejado para a posição de desejante. Assumir a posição de desejante equivale a assumir a posição de falta de a, como menos a. A falta-a-ser é tocada. Se o adolescente se assume como desejante, assume-se também como falta de objeto.

O encontro com o outro sexo impõe ao sujeito a constatação de que não há relação sexual. E o encontro com o real da não relação sexual impõe ao sujeito uma virada subjetiva, pois por mais prazeroso que possa a ser o encontro com o outro sexo, ele será sempre um encontro faltoso, insatisfatório, que deixará um resto inassimilável para o sujeito.

O adolescente estará frente à impossibilidade de complementaridade entre ele e o Outro. Nem ele pode completar o Outro, nem o Outro pode vir a completá-lo, não há totalidade possível. Não há a sua cara metade, a outra metade da laranja, a tampa da panelinha. Há o mal-estar próprio do desencontro com o sexo, com a quebra da ilusão de que a falta pode ser preenchida.

Ao sujeito adolescente caberá assumir sua castração e seus efeitos, deixando cair um imperativo idealizado. A subjetivação da castração exige a renúncia da expectativa de um gozo suposto absoluto, as satisfações serão sempre parciais.

É na ruptura, no hiato, no que há de indeterminado, que irá irromper o desejo. Jacques Lacan, no Seminário 6, “O desejo e sua Interpretação”, Zahar Ed. R.J. 2016, aborda a questão do objeto do desejo via significante, mas, também, o faz pelo viés da relação ao objeto.

Em seu famoso grafo, o desejo, além do fator metonímico de falta-a–ser, implica o objeto, o objeto da fantasia. O desejo se fixa numa fantasia e não a um objeto, pois, como já foi dito, não há relação complementar. Assim, o objeto vem a se colocar naquilo que falta pela via do significante.

Lacan postula que o sujeito não goza do corpo do Outro, que só há gozo do corpo próprio ou gozo de sua fantasia. O eros humano filia-se numa relação com uma imagem que não é outra coisa, senão a imagem do corpo próprio. É o narcisismo que oferece ao sujeito o suporte, a via de solução para o problema do desejo.

No texto “A direção do tratamento” (In: Escritos. Jorge Zahar Ed., 1998, pp. 636-639, R.J), Lacan fala sobre a função do significante falo na busca do desejo e exemplifica a estrutura do desejo com um fragmento clínico. Trata-se de um senhor de idade madura que se vê impotente frente a amante. Este exemplo apesar de não ser de um sujeito adolescente, nos é muito útil para pensarmos também as travessias da adolescência.

“…Em síntese, ele é impotente com a amante e, pensando em se valer de suas descobertas sobre a função do terceiro potencial no casal, propõe-lhe que ela durma com outro homem, para ver no que dá”.

“… Não há de surpreender que (a amante), sem delongas, ou seja, na mesma noite, tem o seguinte sonho, que relata incontinenti ao despeitado: “Ela tem um falo e sente-lhe a forma sob suas roupas, o que não a impede de ter também uma vagina e, acima de tudo, de desejar que esse falo a penetre”.

“Nosso paciente, ao ouvir isso, recupera no ato seus recursos e o demonstra brilhantemente à sua sagaz companheira”.

Lacan se questiona qual interpretação isso indica, pois a sonhadora não é complacente com o amante, não atende ao seu pedido e afasta de seu roteiro qualquer coadjuvante. Lacan não analisa o sonho da amante, mas o efeito dele no seu paciente.

Para Lacan a verdade embutida no sonho é: “que a recusa da castração, se há algo que com ela se pareça, é, antes de tudo, uma recusa da castração do Outro (da mãe, em primeiro lugar)”. “…Que o desejo inconsciente é o desejo do Outro – uma vez que o sonho é feito para satisfazer o desejo do paciente para – além de sua demanda, como é sugerido pelo fato de ele ter sucesso (frente sua impotência)”.

“… Essa é a ocasião de fazer o paciente apreender a função de significante que o falo tem em seu desejo. Pois é como tal que o falo opera no sonho, para fazê-lo recuperar o uso do órgão que ele representa.” “… liberando o seu desejo antes aprisionado”.

Não bastou a amante o fato de ter tido o sonho, há o fato de ela ter lhe contado. Nesse discurso ela se apresenta como tendo um falo, mas não é por isso que lhe é restituído seu valor erótico. Como diz Lacan: “ter um falo não basta para lhe restituir uma posição de objeto que a aproprie a uma fantasia a partir da qual nosso paciente, como obsessivo, possa manter seu desejo num impossível que preserve suas condições de metonímia. Estas regem, em suas escolhas, um jogo de evasão que a análise perturbou, mas que a mulher restaura, aqui, por uma astúcia cuja rudeza oculta um refinamento que é a conta certa para ilustrar a ciência inclusa no inconsciente”.

“…Isso porque, para nosso paciente, de nada serve ter esse falo, já que seu desejo é sê-lo. E o desejo da mulher, aqui, cede-o ao seu, mostrando-lhe o que ela não tem”.

Ou seja, a amante apresentou-se no sonho como convém: com a vagina, o falo e com o desejo de que esse falo a penetrasse, o que é da ordem do impossível. A amante fez, assim, aparecer sua própria falta-a-ser, revelando por meio do sonho que ter esse falo não fez com que desejasse menos nosso paciente. Pelo contrário, realizou com isso um apelo ao Outro enquanto presença sobre um fundo de ausência.

O paciente entendeu a mensagem e a convocação revelada pela amante por intermédio do sonho.  A amante se produziu como objeto, no lugar de mulher, restaurando no paciente, de modo imediato, a potência abalada.

É importante ressaltar que nesse jogo amoroso, nossa sonhadora deu, ainda, outra garantia de peso ao nosso paciente – já que ela tinha um falo, não precisava tomar o dele. Mostrar esse signo como tal, fazendo-o aparecer ali onde ele não pode estar, fez com que esse signo adquirisse seu valor e seu efeito. Essa foi uma garantia forte que não foi desprezada.

“…Acredita-se, portanto, ter tudo completo. Mas nada temos a fazer com isso na interpretação, na qual invocá-la não levaria muito longe, mas recolocaria o paciente no exato ponto em que ele se insinua entre um desejo e o seu desprezo por este: certamente, o menosprezo de sua mãe recalcitrante, a depreciar o desejo demasiado ardente cuja imagem seu pai lhe legou”.

“…O lugar que ele havia assumido no jogo da destruição exercida por um de seus pais sobre o desejo do outro. Ele adivinha a impotência em que se encontra de desejar sem destruir o Outro e, com isso, destruir seu próprio desejo, na medida em que ele é desejo do Outro”.

Foi, também, no intuito de proteger o Outro e simultaneamente se proteger que fez com que seu desejo ficasse encarcerado. Foi o sonho da amante que exibindo-se de modo certeiro, diferenciado da figura materna e das relações parentais, que tornou possível o paciente recuperar o uso do órgão que o falo representa.

No capítulo 1 do seminário 6, “Construção do Grafo”, Lacan teoriza sobre o lugar do falo e da castração. O inconsciente sempre coloca o sujeito a uma distância de seu ser, nunca reencontrado. O objeto está para sempre perdido e o desejo é o modo que o sujeito possui de atingir seu ser, visto que o desejo é a metonímia do ser. O $ enquanto falta busca seu complemento na imagem fálica, pois sempre há de faltar um significante, o falo – advindo da ameaça de castração.

O sexo apareceu aqui como um fato artificial, como um fato de semblant, mas um semblant confiável e verdadeiro porque envolveu uma satisfação. Daniel Roy, em seu texto “Proteção da adolescência” in Opção Lacaniana n.72, março de 2016,  Ed.Eolie, S.P, diz:

“….Na relação entre os sexos, quanto mais é do semblant, mais é pra valer, quanto mais se faz de contas, mais isso se torna verdade. Quer seja do semblant ou de verdade, uma vez que a partida foi iniciada, você está engajado, quer dizer que você pagou o preço para estar na partida e é isto que se chama desejo” (pag.51).

A maturação é operada a partir do encontro sexual, na própria relação ao objeto. O objeto é o que servirá para a separação do sujeito do Outro. O adolescente se servirá de um objeto externo para se separar do Outro, do objeto a.

Enfim, cabe ao adolescente reabilitar seu corpo movido de uma nova maneira pelas pulsões. A libido não é outra coisa a não ser a energia psíquica do desejo – e a experiência do desejo situa-se primeiramente como desejo do Outro, sendo isso que permitirá ao sujeito situar seu próprio desejo. De fato, diz Lacan, as redistribuições da libido não se dão sem custar a alguns objetos seus postos, mesmo que eles sejam inamovíveis.

 

Lacan com Freud soletrando Hamlet: a tragédia do desejo[1]

Bruna Guaraná

Este presente texto é fruto das discussões empreendidas no Núcleo de Pesquisa Práticas da Letra do Instituto de Clínica Psicanalítica do Rio de Janeiro (ICP). As últimas discussões foram baseadas nas sete lições dedicadas à Hamlet por Lacan. O Práticas da Letra busca valorizar o modo de leitura que inclui, nesse movimento, a escrita. Daí se faz, quando se lê, uma prática da letra, por isso o convite de Lacan para que soletremos Hamlet está de acordo com essa perspectiva. Vamos no caminho de Lacan com Freud que inclui esse modo de leitura.

Lacan, em seu Seminário 6, na primeira lição dedicada à Hamlet, se deixa guiar por Freud e valoriza seu primeiro esboço de percepção sobre Hamlet. Segundo Lacan, os demais comentadores figuram como mera “digressões” ou “floreios”[2]. Salvo Jones quem ele atribui maior importância. O ponto destacado dessa primeira percepção freudiana repousa sobre o que é considerado ser o grande dilema ou “problema” do herói da trama: cumprir a vingança do qual está encarregado pelo fantasma do próprio pai para vingar sua morte. Segundo outros autores, como Goethe e Coleridge, a hesitação de seu ato, que paralisa sua ação, está ligada a um desenvolvimento excessivo da ordem do pensamento.

Segundo Lacan, os outros autores alegam que Shakespeare pretendeu representar um herói ou personagem central doentio, histérico e indeciso. Contudo, o que é apontado por Freud e seguido por Lacan é que Hamlet não se mostra incapaz de agir, já que mata um homem (Polônio) atrás de uma porta em uma conversa com sua mãe e envia os seus dois velhos amigos Rosencrantz e Guildenstern para a morte que lhes estava destinada após o trairem. Porém, o que impede Hamlet de executar a tarefa é de outra natureza e reside, segundo a citação de Lacan à Freud, na natureza em si da própria tarefa. O que significa ou condensa essa ação?

Há de se convir que é a natureza dessa tarefa. Hamlet pode agir, mas não conseguiria se vingar de um homem que matou seu pai e tomou o lugar dele junto a sua mãe, de um homem que realizou os desejos de sua infância. O horror que deveria impeli-lo à vingança é substituído por remorsos, por escrúpulos de consciência. Acabo de traduzir em termos conscientes o que permanece inconsciente na alma do herói…. (Lacan J. 1959, p.259 Apud Freud, S.)

A tradução em termos conscientes do que é da ordem inconsciente realizada por Freud situa para Lacan, com enorme precisão, o lugar de Hamlet na trama edipiana. O destaque conferido ao termo “escrúpulos de consciência” se deve ao fato de ser sob essa aparência que sentimentos inconscientes e recalcados mostram sua cara. Segundo Lacan, é o que pode se expressar de forma consciente, e que se apresenta ao mesmo tempo inconsciente na alma do herói.

A partir disso, o que seria interessante, segundo Lacan, nos perguntarmos é de que forma os “escrúpulos de consciência” se articulam ao inconsciente?  É o que Ella Sharpe, citada por Lacan, o demonstra a partir das associações livres ou relatos de sonhos de seus pacientes. E também é o que aparece a partir do comentário de Lacan, logo nos primeiros capítulo desse Seminário 6,  do relato de Freud a respeito do sonho do pai morto. O famoso dito “Ele não sabia que estava morto” da análise desse sonho, onde a imagem do pai encarna o próprio inconsciente do sujeito – e também seu próprio anseio inconsciente de morte contra seu pai.

Por isso, os sonhos edipianos, a análise, as tragédias e fabulações colocam ou trazem para a cena o desejo inconsciente e também sua articulação com a consciência ou as suas formas de aparições. Cito:

Freud, com efeito, insistiu muito no fato de que os sonhos edipianos são como as irrupções desses desejos inconscientes, que são como que sua fonte fundamental e que sempre reaparecem. Quanto ao Édipo de Sófocles ou aqueles da tragédia grega, eles são como a elaboração, a fabulação do que sempre surge desses desejos inconscientes. É assim que as coisas são, textualmente, articuladas por Freud, que nos diz que, em Hamlet, esses mesmos desejos da criança estão recalcados e só ficamos sabendo da sua existência, assim como nas neuroses, por seus efeitos inibidores. (Ibid, p. 258) [grifos nossos]

Mais uma vez, confirmamos só termos acesso aos nossos desejos inconscientes através de seus efeitos. É por isso que, os “escrúpulos de consciência” são tão explorados por Lacan, entendidos como efeito do verdadeiro desejo inconsciente não sabido de Hamlet. Dessa forma, correlacionamos que os sonhos edipianos ou a história encenada pela tragédia grega são reflexos dos desejos inconscientes, sua fonte “fundamental”.

Com essa introdução, localizamos o que interessa a Lacan com Freud: “ler” em toda a trama escrita por Shakespeare, em mínimos detalhes, desenvolvimentos, percalços e falas, como se articulam os “efeitos” do desejo inconsciente. Para isso é que Lacan nos convida a “soletrar” Hamlet (Ibid, p. 261).

Antes de tudo, veremos na conduta de Hamlet o que quer dizer esse desejo inconsciente. Sabemos que os “escrúpulos de consciência” são sua representação na consciência, mas e o que mais? Segundo Lacan, algo não vai bem no desejo de Hamlet. O “barômetro” da posição de Hamlet em relação ao desejo se presentifica na sua relação com a Ofélia:

Freud nos indica e vemos aparecer na peça, em correlação com o drama propriamente dito, um horror à feminilidade como tal, cujos termos são articulados, no sentido mais próprio da palavra, pelo próprio Hamlet, quando ele expõe aos olhos de Ofélia todas as possibilidades de degradação, variação e corrupção ligadas ao desenvolvimento da própria vida da mulher quando esta se entrega a todos os atos que, pouco a pouco, fazem dela uma mãe- em nome do que Hamlet a rejeita, e o faz de uma maneira que parecer ser a mais sarcástica e cruel. (Ibid, p. 267) [grifos nossos]

A sua inicial relação com a Ofélia sofre uma alteração drástica desde a morte do seu pai. Hamlet se torna posteriormente hostil, sarcástico e cruel com Ofélia. O horror à feminilidade encarnada por Ofélia, correlata ao que sua própria mãe representa, resulta de um quase rechaço à posição feminina de objeto. Existe uma relação, segundo Lacan, entre a sua posição no desejo e o que a feminilidade lhe apresenta.

Porém, a relação do desejo de Hamlet também gira em torno do seu ato. Hamlet tem um ato a executar e tudo o mais depende disso. E o que ele faz? Procrastina, deixa para depois. É aí que vamos com Lacan à pergunta no início do texto: qual é a natureza desse ato ou “o que significa o ato que lhe é proposto?” (Ibid, p. 268).

Nesse ponto, Lacan faz questão, apoiado em Freud, de deixar claro que esse ato nada tem a ver com o ato edipiano, o desejo de matar o pai inconsciente. Tal, como seria no Édipo, onde o herói quer escapar desse desejo (destino) e não sabe que ele determina toda a sua vida, mesmo que ele o evite. É por querer conscientemente escapar de seu destino (desejo) que Édipo realiza exatamente a profecia sem sabê-lo, o que o leva ao seu trágico final. A tragédia de Édipo é a da primazia do destino ou desejo inconsciente justamente por ele agir de forma não sabida.  Enquanto a tragédia de Hamlet é, segundo Lacan, a “tragédia do desejo” (Ibid, p. 272).

Pois, diferente de Édipo, Hamlet já sabe de antemão sobre o desejo inconsciente que lhe é revelado de forma peculiar pela aparição do espectro de seu pai. O que lhe outorga de antemão a culpa dos pecados não expiados do seu pai e a sua própria culpa ou “escrúpulos de consciência” pela realização por seu padrasto de seu mais profundo desejo inconsciente. Lacan alude a esse ponto dessa forma: “Para ele, é insuportável ser. Bem antes do começo do drama, ele conhece o crime de existir.” (Ibid, p. 268) [grifos nossos]. O desejo inconsciente de matar o pai, do qual o Édipo tenta escapar, já foi realizado em Hamlet. Alguém, que poderia ter sido ele próprio, já matou o seu pai e assumiu o seu lugar.

O “crime de existir” faz Hamlet se colocar diante de uma escolha:

Ser ou não ser – eis a questão. Será mais nobre sofrer na alma. Pedradas e flechadas do destino feroz. Ou pegar em armas contra o mar de angústias – E, combatendo-o, dar-lhe fim? Morrer; dormir; Só isso. E com o sono – dizem – extinguir. Dores do coração e as mil mazelas naturais.

A que a carne é sujeita; eis uma consumação. Ardentemente desejável. Morrer – dormir – Dormir! Talvez sonhar. Aí está o obstáculo! (Shakespeare, W. Trad. Millôr Fernandes)

O que é interpretado por Lacan ser a questão colocada por Hamlet “ser ou não ser”, tem como consequência uma posição que ele tem que assumir diante do que o fantasma de seu pai lhe apresenta quando relata a causa de sua morte: “Abatido em plena floração de meus pecados”. (Ibid, p.25)

O fantasma de seu pai lhe revela que ao momento de sua morte pela mão do irmão, foi surpreendido na “flor de seus pecados” e morreu em pecado. Por esse mesmo motivo seu espírito é condenado a pairar e a vagar pela noite sem encontrar paz até que seus pecados cometidos em vida sejam expurgados.

Por isso, para Lacan: “Trata-se, para o filho, de encontrar o lugar ocupado pelo pecado do Outro, o pecado não pago pelo Outro.” (Lacan, J. 1959, p.269) Ao contrário de Édipo que paga pelo crime que não sabia que cometeu aqui Hamlet apesar de sabê-lo ainda não pagou pelo crime de existir. Por isso mesmo se trata a si próprio como um covarde:

Sou então um covarde? Quem me chama canalha? Me arrebenta a cabeça, me puxa pelo nariz, E me enfia a mentira pela goela até o fundo dos pulmões? Hein, quem me faz isso? (Shakespeare, W. p. 48)

A covardia atribuída à paralisação da sua ação pela sua dúvida é o que posteriormente se deslinda através dos tortuosos caminhos pelos quais Hamlet precisa passar para vingar a morte do pai. Para finalmente matar seu padrasto sabemos, ao final da trama, esse feito só poder se realizar a preço de sua própria vida:

Hamlet não pode nem pagar no lugar do pai, nem deixar a dívida em aberto. No final das contas, tem de fazer com que seja paga, mas nas condições em que está colocado, o golpe passa através dele mesmo. (Ibid)

A necessidade de que a morte ou eliminação de Claúdio passe através dele mesmo é apontada por Lacan como um desfecho que é reflexo de uma problemática ligada à castração.

É justamente porque faltou alguma coisa na situação original, inicial, do drama de Hamlet – enquanto distinta daquela da história de Édipo -, a saber, a castração, que, no interior da peça, as coisas se apresentam como um lento caminhar em zigue-zague, um lento parto, por vias tortuosas, da castração necessária. (Ibid, p. 270)

É por essa mesma problemática que Lacan se interessa pelo drama de Hamlet como algo que possa servir para reforçar uma espécie de elaboração do complexo de castração e ter no horizonte de que maneira isso se articularia concretamente na análise, ao longo de seu percurso. (Lacan, J. 1959, p. 257)

Bibliografia

BLOOM, Harold. Hamlet: Poema ilimitado. Tradução de José Roberto O’Shea. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004.

COLERIDGE, Samuel T. A balada do velho marinheiro e outros poemas. Exilados dos livros. Disponibilizado por Le Livros, em: https://poiesisufpr.files.wordpress.com/2015/06/a-balada-do-velho-marinheiro-samuel-taylor-coleridge.pdf

JONES, Ernest. (1949) Hamlet e o Complexo de Édipo. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar, 1970.

LACAN, J. (1958-59) O seminário, livro 6: o desejo e sua interpretação. Rio de Janeiro: Zahar, 2016.

ROSA, Márcia. Ella também sabia sem Lacan aquilo que ele ensinava! Em: http://www.revistaderivasanaliticas.com.br/index.php/ella

SHARPE, Ella Freeman. (1937) Análise dos sonhos. Um manual prático para psicanalistas. Imago Editora, 1971.

SHAKESPEARE, William. Hamlet. Tradução: Millôr Fernandes. Texto disponibilizado em: www2.uol.com.br/millor/

TCHEKHOV, Anton. A Gaivota. Tradução e Pós-fácio: Rubens Figueiredo. Cosac & Naify, 2004.

[1] Esse texto é consequência das discussões que têm tido lugar no Núcleo de Pesquisa Práticas da Letra, coordenado por Ana Lucia Lutterbach Holck e Ana Tereza Groisman, empenhado na leitura do conjunto das lições de Lacan do Seminário 6 sobre Hamlet.

[2] Lacan agrupa em três vertentes os esforços de crítica dirigidos à Hamlet. Nas duas primeiras vertentes estão Goethe e Colerigde e na terceira à qual ele atribui maior importância, quem “introduz a posição analítica” é Jones. ( Lacan, J. 1959, p. 276)

Falar lalíngua do corpo

Na próxima terça feira (02/08) o Núcleo de Pesquisa em Psicanálise e Medicina do ICP-RJ debaterá a terceira aula do seminário dado por Eric Laurent na ECF em Paris no ano de 2015, que foi recentemente publicado em português no livro “O avesso da biopolitica”. Laurent faz um percurso que vai desde o “momento Radiofonia”, no qual a concepção estruturalista do corpo como mortificado pelo significante, se transforma numa outra relação entre a estrutura e o corpo, na qual “o simbólico toma corpo”. No Seminário 23, Lacan se propõe a pensar a incidência de lalíngua não apenas sobre os órgãos do corpo, incluindo os próprios fluidos corporais em sua elaboração. Neste terceiro capítulo, Laurent trabalha sobretudo a sustentação do sintoma pelo próprio gozo do corpo, tomando como referência principal o Seminário 24 (L’insu que sait de l’une-bévue s’aille à mourre).

*O núcleo de psicanálise e medicina acontece todas as primeiras e terceiras terças do mês, às 20:30h.

Hamlet: obra-de-arte e quintessência do pó

Flavia Trocoli

Alguém já disse que são tantos Hamlets quanto são os seus leitores. Então, vou limitar-me a ler Hamlet através de seus leitores. Essas indicações de leitura, que apresento hoje aqui[1] de maneira mais topicalizada do que argumentativa, se organizarão através da ênfase em um eixo problemático, a saber: a relação disjuntiva entre pensamento e ação, questão exaustivamente trabalhada desde o romantismo alemão até Harold Bloom.

A tragédia grega – estrutura da ação trágica: dando destaque ao fato de que a tragédia grega surge ao mesmo tempo que o Direito, Vernant e Vidal-Naquet, em Mito e tragédia na Grécia Antiga, propõem que a tragédia grega sustenta-se em uma estrutura ternária em que se enlaçam a estética, a política e a psicologia. Diferente da epopéia em que a ação dos homens estava ligada aos deuses e às suas qualidades, a ação trágica é o núcleo da tragédia, o herói é agente e paciente da ação, é engendrado pela ação.

Drama de Hamlet – pensamento sem ação: mais de 20 séculos depois, enquanto Racine ainda se esmerava em seguir o modelo grego, Shakespeare reinventará, por assim dizer, o trágico através de Hamlet, o herói que justamente procrastina sua ação. Hamlet pensa e não age. Depois da saída do fantasma, Hamlet diz: “Só o teu mandamento permaneça nas páginas do livro do meu cérebro.” Ainda nessa direção podemos ler a enigmática frase – “The time is out of joint”- não apenas como um diagnóstico do seu tempo (o do terror), mas como um entre, como uma disjunção entre o pensamento e a ação. Tempo do drama da sucessão que não deixa de ser tempo, também, do luto. O Rei e a Rainha dizem a Hamlet que ele precisa tocar a vida. Ele reivindica o luto denunciando o tempo, sem luto, da morte do pai e do casamento da mãe com o tio: as carnes do enterro foram servidas no casamento.

A representação – cena sobre a cena: muitos críticos dirão que Hamlet é um drama sobre a representação teatral, dessa perspectiva Hamlet é um personagem trágico em busca da ação e que duvida dela. Em ruptura com Édipo Rei, Hamlet dramatiza a perda da unidade da tragédia clássica. Não sabe sobre o ser e não sabe sobre o fazer. Seu drama é ontológico e ético: parecer, fazer ou não fazer, ser e não-ser. O que resistirá à destruição absoluta, à voragem do nada? A própria força do verso, a astúcia da linguagem de Hamlet. O pensamento ilimitado diante da finitude da vida: somos obra-de-arte e quintessência do pó.

BLOOM, Harold. Hamlet – poema ilimitado. Tradução: José Roberto O´ Shea. Inclui texto integral de “Hamlet” traduzido por Anna Amélia de Queiroz Carneiro deMendonça. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004.

BRADLEY, A.C. A tragédia: Hamlet, Otelo, Rei Lear, Macbeth. Tradução: Alexandre Rosas. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

DUARTE, Pedro. “A filosofia Romântica do trágico, ou a moderna ironia de Hamlet.” In: Revista Terceira Margem – Dossiê Tragédia e modernidade. Número 27.  2013. http://www.revistaterceiramargem.com.br/index.php/revistaterceiramargem/issue/view/1

FRYE, Northorp. Sobre Shakespeare. Tradução: Simone Lopes de Mello. São Paulo: EDUSP, 1992.

HELIODORA, Barbara. Falando de Shakespeare. São Paulo: Perspectiva, 2004.

KERMODE, Frank. A linguagem de Shakespeare. Tradução: Barbara Heliodora. Rio de Janeiro: Record, 2006.

VERNANT, J-P. & VIDAL-NAQUET., P. Mito e tragédia na Grécia Antiga. São Paulo: Perspectiva.

[1] Essa exposição, que ocorreu em 20/05/2016, serviu de introdução à leitura que o Núcleo Práticas da Letra está realizando das sete lições sobre Hamlet do Seminário 6, de Jacques Lacan.

Nota sobre o Núcleo de Toxicomanias e Alcoolismo

Por Ana Martha Wilson Maia

“Sozinhos e intoxicados” é o tema do II Colóquio TyA que será realizado em São Paulo, por ocasião do próximo Encontro Brasileiro do Campo Freudiano. Seguindo nesta direção, o Núcleo de Toxicomanias e Alcoolismo organizou o Programa de pesquisa para trabalhar em torno dos conceitos/termos de solidão, solitude e parceria.

Iniciamos com dois textos de Miquel Bassols, muito orientadores para delimitarmos o campo “conceitual” da solidão. No primeiro, Bassols (1994) lança a pergunta se podemos estabelecer uma clínica diferencial da solidão, a partir da neurose, da perversão e psicose. Deste texto, concluímos uma solidão generalizada para todo ser falante.

O segundo texto aborda a solidão na experiência de enclausuramento da monja Sor María, do Mosteiro de Santa Catalina, em Buenos Aires. María concedeu uma entrevista inédita a um colega da EOL que foi exibida durante as XXIV Jornadas Anuales da EOL do ano passado, cujo tema foi “Solos y solas”. Bassols (2015) esteve presente e publicou um texto do qual extraímos uma referência conceitual que contribui para pensarmos sobre a zona de extimidade do gozo do Outro, se este existisse, “mais além do falo e de seus véus”(Bassols), sobre “a solidão como meio” e a “certeza” (María), que nos levou a comentar sobre a certeza do gozo obtido pela droga.

Nas palavras de Bassols, “Há outra solidão que não é um meio, mas tampouco não é um fim. Ou, se me permitem dizê-lo assim, há uma solidão que é “um meio sem fim”, um meio infinito, um espaço de solidão que não tem bordas, nem limites.”

Que relação tem o ser falante com este modo de estar na solidão, intoxicado? – é uma das questões que formulamos. Pensando nas adições, sabemos que a sociedade contemporânea oferece múltiplas formas de parcerias e que as toxicomanias, assim como a virtualidade, são uma solidão de época.

Bassols estabelece três formas de abordagem da solidão: a solidão que se auto-abastece na esfera imaginária do eu consigo mesmo; a solidão que se abre ao Outro do simbólico (o sujeito está sozinho com a linguagem, acompanhado com o Outro da linguagem); e a solidão frente a uma falta real, uma solidão sem fim, em que o Outro tem a estrutura de um Toro. Ele diz: “ante o buraco do Outro, há uma solidão irredutível, é a solidão do gozo do Um, sem representação possível”. É a solidão do gozo acéfalo da pulsão sem Outro.

A solidão do gozo do Um é formalizada por Lacan a partir dos anos 70 e atualmente referencia o trabalho do Campo Freudiano sobre o corpo falante. Com o declínio do patriarcado, Lacan destaca a inexistência do Outro e o gozo do Um. A partir daí, podemos pensar a solidão estrutural pela via da relação sexual que não existe. O Um é homólogo à solidão estrutural. Assim, cada um faz uma coisa com esta solidão do Um para viver, o que nos traz a questão do destino que o toxicômano deu a seu gozo solitário.

Gozo do auto-erotismo. Solidão do Um. Autismo nativo. Estamos refinando os conceitos em nossa pesquisa, articulando-os à Teoria do Parceiro (2000), de Miller, como também ao curso El partenaire-síntoma (2008), tendo em vista a parceria do corpo falante com a droga.

BASSOLS, Miquel. (1994) Soledades y estruturas clínicas. Revista Freudiana – Lazos y soledades: toxicoman. ELP. Paidós, nº.12. 1994

BASSOLS, Miquel. (2015) Soledades II. Desescrits. Disponivel em http://miquelbassols.blogspot.com.br

Miller, J-A. Os circuitos do desejo na vida e na análise. Rio de Janeiro: Contra Capa. 2000.

Miller, J-A. El partenaire-síntoma. Buenos Aires: Paidós. 2008.
Pharmakon Digital. Rede TyA do Campo Freudiano. Edição 01. 2015

O que não se vê: crianças fascinadas, seduzidas e educadas pela tela

Por Maria do Rosário Collier do Rêgo Barros

Grupo de trabalho: Analícea Calmon, Astréa da Gama e Silva, Bibiana Poggi, Cristina Vidigal, Fátima Sarmento, Fábio Malcher, Jorge Carvalho, Maria Inês Lamy, Maria Elizabeth da Costa Araújo, Valéria Ferranti

“Enquanto tal, a virtualização não é nem boa, nem má, nem neutra (…). Antes de temê-la, condená-la ou lançar-se às cegas a ela, proponho que se faça o esforço de apreender, de pensar, de compreender em toda a sua amplitude a virtualização”. Pierre Lévy[1]

O título desta conversação, “Crianças fascinadas, seduzidas e educadas pela tela”, nos convida a pensar os diferentes efeitos sobre as crianças do encontro com as várias modalidades de telas que lhes são oferecidas na televisão e em seus computadores, celulares, ipads, iphones, etc. Para situar esses efeitos precisamos levar em conta a mutação que a criação desses gadgets produziu na civilização, e em seguida verificar o uso que as crianças têm feito deles, lembrando que isto vai depender em grande parte da maneira que seus interlocutores: pais, professores e até mesmo colegas, encontrarão para acolher e estar presentes na relação delas com a tela.

O analista, por sua vez, será aquele capaz de verificar o uso singular que cada criança faz da tela, e assim localizar como esta entra em jogo na construção da fantasia e do sintoma, ou funciona, em algumas situações, como obstáculo para essa construção. É preciso também não esquecer os casos em que a tela serve como recurso, como mediação para tratar o excesso de presença do Outro[2].

Em 1914 Freud[3] nos apresentou o “quarto da criança” como um espaço onde esta encontra a presença do outro parental e seus objetos pulsionais. Lacadée[4] resgata esta expressão e comenta que no seu quarto a criança cria um espaço, no qual apreende seu corpo como objeto de gozo, mas também pode se apreender como elemento à parte, isolando-se e vivendo seu ser como objeto rejeitado.

No tempo da inexistência do Outro, a criança pode encontrar, no uso dos gadgets que hoje fazem parte do seu quarto, novas formas de recuperação do seu gozo e também a possibilidade de se libertar do excesso do Outro.

Por um outro lado, a fantasia se constrói a partir da emergência de uma questão que não tem resposta nem nas imagens e nem nas representações. Sua construção, para a qual cada um tem que dar de si, vai servir ao mesmo tempo de tela e enquadre para velar e cingir um ponto de real que se apresenta de várias maneiras na relação do sujeito com sua imagem, com o Outro e com seu corpo.

O encontro com a imagem no espelho, como indicou Lacan, é um momento privilegiado de aparecimento de um ponto não especular que convoca a uma construção. É a partir daquilo que não se vê que a imagem, que aparece no espelho, articula o real do objeto perdido com os significantes veiculados pela fala do Outro. O simbólico, nessa operação, atravessa o imaginário e ao mesmo tempo em que faz uma articulação, produz uma escansão entre o que é dito do sujeito e a imagem que dá unidade e consistência ao seu corpo. A imagem atrelada ao significante ganha assim a dimensão de semblante, que ao mesmo tempo indica e vela o real em jogo. A questão que se coloca é como cingir na relação com a tela esse ponto de real, aquilo que não se vê, ao olhar e ser olhado.

A profusão de imagens oferecidas pelas telas termina por constituir um muro[5] que mascara a dimensão do olhar. Ao mascará-la tenta eliminar a hiância estrutural entre olhar e ser olhado, motor do terceiro tempo da pulsão, “fazer-se olhar”. É essa hiância que a fantasia vem circunscrever, permitindo que se possa circular pelas posições de sujeito e de objeto, graças ao impossível que ela vem velar, mas que é ao mesmo tempo o que a sustenta. Será que a fantasia faria assim limite à transparência, ao tudo ver como pretensão do momento atual? Ou será que os avanços tecnológicos da ciência chegarão a volatilizar até mesmo esse recurso da fantasia, que se apoia no que há de mais singular na relação de cada um com seu gozo? Esta relação, como sabemos, se refere à forma como cada um se virou para lidar com o inevitável de uma perda que, de saída, convocou o sujeito à criação de sua realidade psíquica. A maneira como os gadgets vêm encarnar o mais-de-gozar tentando manipular a causa de desejo poderia nos fazer acreditar ser possível eliminar a fantasia. Mas o que está talvez em jogo é uma “decadência ficcional da verdade”[6], obrigando-nos a recorrer ao real como o que não tem estrutura de ficção. Cabe ao analista apontar o real, não permitindo que a verdade seja absorvida pela ficção, resgatando assim o não todo da verdade. Esse é o caminho por onde o analista pode favorecer a transformação do mais-de-gozar em causa de desejo, tão importante hoje nas diversas relações que a criança pode ter com a tela sem se deixar escravizar por ela.

A política do olhar, que reina atualmente, tem a pretensão de transformar o mundo em um todo visível, desconsiderando que existe no campo da visão um nada ver ou um ver nada, como Lacan tão bem desenvolveu em seu Seminário XI, ao diferenciar o olhar como objeto a, da visão. A arte, diferentemente da ideologia da ciência, mostra o que não se vê. Ela resiste, assim como a psicanálise, a essa política do olhar a serviço da vigilância, que se torna cada vez mais generalizada.

Acreditar na transparência é reduzir o sujeito a um homem sem qualidades, a uma cifra a ser usada e manipulada nos cálculos estatísticos.

As telas são usadas cada vez mais com essa pretensão. Ao olhá-las, acreditando poder ser sujeito desse olhar particularizado, estamos sendo olhados por um olho anônimo que nos transforma em cifras a serviço do mercado de trocas e vendas. Essa pretensão produz, no entanto, um mal estar crescente causado pelo uso da máquina que “reconfigura o mundo e tem efeito de invasão e saturação”[7].

Para nos situarmos nessa conjuntura, será necessário considerar a função do olhar, não como uma atividade do sujeito que olha, mas como objeto, como aquilo que faz mancha no espetáculo do mundo, olha sem olhar-me e me fascina[8]. Ernesto Derezensky, citando Lacan, sublinha que o olhar pode ser signo de um desejo que permanece como uma incógnita. Para Lacan, o olhar poderá tanto sustentar como devastar uma existência[9], dependendo de como ele vai manter sua relação com o vazio nesse ponto mesmo de opacidade do olhar – nada a ver. Quando essa relação se perde, poderá haver uma quebra no enquadre que sustentaria um impossível de ver, e o olhar se transforma em devastação. Quando o olhar aparece na tela, sem que se possa lhe dar o enquadre da fantasia, é preciso lançar mão de outros recursos para evitar ser sugado pelo abismo ilimitado das imagens. Esta é nossa aposta: que mesmo diante da profusão das imagens, será possível sempre ressaltar a relação ao vazio. Caso contrário, o fascínio “pode ter como efeito parar o movimento e literalmente matar a vida”[10].

A questão que nos orienta neste trabalho é a seguinte: como as crianças têm se virado com esse mundo reconfigurado pelas telas que lhes são oferecidas, já simulado pelo cálculo[11], que tem muitas vezes efeitos infernais? Algumas delas sucumbem a esses efeitos, ao ficarem escravas de suas ofertas em programas de televisão e jogos eletrônicos.

Os sintomas das crianças tanto podem ser lidos como formas de resistência (um apelo ao Outro) quanto de desistência (um se entregar sem limites). Mas, nessa última alternativa, de quem seria a desistência: da criança ou do Outro? Mesmo quando elas se entregam aos excessos, fascinadas pelas telas, ainda assim podemos pensar tratar-se de resistência, ao causar tumulto e perturbação em seu entorno. Dessa forma convocam, mesmo sem se darem conta, um bom entendedor para quem poucas palavras ou muitas imagens bastam para trazer de volta o sujeito ao campo da fala e da linguagem, que pode incluir o corpo, devolvendo a ele seu lugar com todo o mal-entendido que lhe é próprio.

Um simples clic no controle remoto é suficiente para conectar as crianças ao mundo das imagens. Estar atento ao uso que cada criança faz dessas imagens e à maneira como ela fala disso é o que vai permitir o corte entre o virtual e o pulsional, dando lugar ao que há de único em suas construções.

Os quatro casos apresentados em nossas discussões preparatórias nos permitiram apreender como essas crianças e adolescentes iam buscar nas imagens da tela algo para lidar com a estranheza de um gozo em seu corpo assim como com o opaco do desejo do Outro que operavam em seu sintoma.

O festival Anima Mundi de 2015 trouxe vários filmes que tratam desse assunto. “O filme do americano Dan Lund, diretor de “Aria for cow”, diz que não quis retratar “as máquinas como vilões”, e sim “a desconexão entre um homem e seu entorno. No filme, um ordenhador imerso nas músicas de seu iPod tira leite de uma vaca praticamente sem se dar conta da presença do animal. A vaca, então, numa contorção narrativa, protagoniza um número musical em que exige respeito do fazendeiro” (Jornal Globo de 6/7/15). A arte resiste, nos oferecendo uma oportunidade para tomar distância da submissão à máquina. E o analista do século XXI não perde essa oportunidade, na medida em que vai privilegiar, na sua escuta e nas suas intervenções, os enigmas produzidos pelos pontos de real que através da tela não se pode ver.

* Texto produzido para uma das Conversações que tiveram lugar no VII Enapol – Encontro Americano de Psicanálise da Orientação Lacaniana, “O Império das imagens”, em São Paulo, ocorrido em setembro de 2015: http://oimperiodasimagens.com.br/pt/.

[1] Lévy, Pierre: O que é o virtual? , Editora 34, São Paulo, 1996

[2] A tela tem sido um recurso importante utilizado por crianças autistas e psicóticas para suportar a presença do Outro e permitir o contato.

[3] Freud, S. Algumas reflexões sobre a psicologia do escolar – 1914, Vol. XIII

[4] Lacadée, P. – A bússola do sim e do não – Cien Digital 16; agosto 2014

[5] Wajcman, Gérard: L’oeil absolu, Éditions Denoël

[6] Miller, J-A: El Otro que no existe y sus comités de ética, Paidós, Buenos Aires, 2005, pg. 15.

[7] Miller, Jacques Alain: “A era do homem sem qualidades in Revue de la Cause freudieene n. 57, pg. 92

[8] Derezensky, Ernesto: “O percurso de um olhar”, na Scilicet Los objetos a en la experiência psicoanalítica, verbete Olhar.

[9] Lacan, Jacques: Seminário, Livro 16 “De um Outro ao outro”, cap XVI pg. 245 , Jorge Zahar Editor:

[10] Lacan,Jacques: Seminário Livro 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise: , Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1998, pg. 114.

[11] Triclot, M : Philosophie des jeux video, Paris, editions la Découverte, 2011,pg. 50, citado por Giraudel, Agnès in Le corps avec et sans l Autre, Scripta, pg 49.

[12] Lacan, Jacques: Le Séminaire, Livre 16, De um Outro ao outro, capítulo VII (Introdução à aposta de Pascal) e capítulo VIII (O Um e o pequeno a) Zahar Editor, 2008.

Relatório do período 2012-2015

De agosto de 2012 a dezembro de 2015, o Núcleo sobre a Lógica do Contemporâneo, Psicanálise e Cultura, investigou pontos cruciais da clínica psicanalítica nos dias atuais. Foi importante marcar que o psicanalista só adquire legitimidade em sua prática se ele considerar a subjetividade de sua época. Esta questão foi discutida tomando como eixo “o declínio social da imago paterna” [1], tal como prognosticou Lacan em 1938, bem como a ênfase do sujeito no lugar de gozo e as intervenções no real do corpo.

A pesquisa do Núcleo iniciou a partir da discussão do livro Los 4 discursos y el Otro de la modernidad, de Marie-Hélène Brousse[2]. A autora se remete ao mais além do Édipo desenvolvido por Lacan em O seminário 17 e às consequências deste conceito ao abordar o lugar da psicanálise no discurso do mestre contemporâneo. Lacan ensinou que o discurso do mestre organiza o discurso do inconsciente, já que em ambos o agente é o S1, por isso mesmo são discursos que se equivalem. Aconteceram mudanças ao longo do ensino de Lacan, pois a partir de O seminário 17 a interpretação não se efetua mais a partir do pai edipiano, e sim a partir do S1, definido mais tarde, em O Seminário 23, como o nome do sinthoma. Lacan interpreta o discurso do mestre contemporâneo a partir dos discursos do capitalismo e da ciência.

Brousse elucidou que a psicanálise sustenta o para além do Édipo porque se antes fornecia uma resposta ao todo produzido pela universalidade da lei do Outro, na atualidade, ao contrário, estamos numa época onde O Outro não existe, e o que fascina é o não-todo. Nessa direção ela propôs superpor as fórmulas: saber fazer com seu sintoma e saber fazer com sua imagem. Sua tese é de que não estamos mais no tempo da tragédia, e sim no tempo de ironia e irrisão, uma comédia que transcreve a ruptura com o Outro que não existe.

Marie-Hélène Brousse se valeu de obras literárias para mostrar uma leitura do pai na contemporaneidade, distinta da leitura edípica. Focalizou o não-todo do Nome-do-Pai e assinalou a pluralidade dos nomes. Por exemplo, o livro A Dália Negra, de James Ellroy, fala da decomposição de um corpo feminino em um crime. O autor revela um estilo literário típico em destroçar a língua nos cortes das frases, fazendo com se possa acompanhar a diferença entre o enunciado e o movimento da enunciação, mas sem que se possa constatar a atribuição subjetiva.

Outro exemplo de Brousse[3] é o livro de Thomas Bernhard, Mestres Antigos, que se caracteriza por um estilo musical, pois constrói um escrito como se fosse uma fuga de Bach: pode-se encontrar na mesma página muitas vezes uma mesma palavra, mas com um deslocamento de sentido, como se seguisse um movimento musical de fuga[4].

Finalmente, para mostrar as consequências do Outro da modernidade, Brousse exemplificou o Outro através da pintura de Francis Bacon (1909-1992) retratando o Papa Inocêncio X sentado numa cadeira, pintura original de Diego Velásquez datada de 1650. Nela, o corpo se apresenta como um retrato com padrões e limites, enquanto nos esboços de Bacon aparece como figuras sem moldura, sem padronização, sem limites, expressando o horror.

 Seguindo a nossa pesquisa trabalhamos a conferência de Jacques-Alain Miller (2004) “Uma fantasia” [5], que aborda a cultura após o declínio do significante Nome-do-Pai. Amparado no Lacan de “Radiofonia”, assinalou que ascensão do objeto a liga-se ao imperativo de gozo imposto pelo discurso capitalista e à queda dos ideais que sustentavam a crença no Pai. Por isso a “fantasia” de Miller foi a de propor o discurso do psicanalista “como estrutura do discurso hipermoderno da civilização”, pois “o discurso da civilização hipermoderna tem a estrutura do discurso do analista”, uma vez que ambas – a civilização e a psicanálise –, já não tem mais uma relação de avesso/direito, “essa relação é, antes, da ordem da convergência” [6].

A moral civilizada mencionada por Freud permitia aos sujeitos desamparados ter uma bússola – pois a moral inibia a transgressão e funcionava como interdição ao gozo, – hoje os sujeitos encontram-se desbussolados.  Nessa direção trabalhamos o Seminário de J.A.Miller, “O Outro que não existe e seus comitês de ética” a partir da pergunta: o que ocorre quando o Outro não existe?

Para concluir trabalhamos o texto de Miller[7] “Progressos da psicanálise bastante lentos”, fundamental para acompanhar as mudanças na teoria de Lacan referente ao gozo, à fantasia e ao sinthoma. Miller esclarece que antes o desejo era criado pelo interdito, tendo origem edipiana, enquanto no contemporâneo o Outro é o próprio corpo[8]. E o gozo não está mais ligado à interdição, ele é um acontecimento de corpo, cujo valor é o de se opor à interdição. O que conta é a satisfação que a pulsão obtém em sua trajetória que não depende do interdito. Tudo se transforma do gozo do Outro para o gozo do corpo.

Encerramos nosso percurso de estudo com a discussão dos textos chaves para o Congresso da AMP, em abril de 2016. Trabalhamos “O corpo falante e o inconsciente no sec.XXI”- argumento de Miller para este congresso e o texto de M. H. Brousse, “Corpos lacanianos: novidades contemporâneas sobre o Estádio do Espelho”. (Revista Opção Lacaniana on line no15)

Outras referências bibliográficas citadas e/ou comentadas:

BROUSSE, M.-H. (2002). O inconsciente é a política. São Paulo: seminário EBP-SP, 2003.

______________.(2012). El Superyó Del Ideal hacia el objeto perspectivas políticas, clínicas y éticas.Córdoba Babel Editorial

CLAUDEL, P. (1908-1916). L’otage, suivi de Le pain dure et Le père humilié. Paris: Gallimard, 1990.

LACAN, J. (1960-1961) O Seminário, livro 8: a transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992.

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_________. (1969-1970). O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992.

_________. (1974-1975). “RSI”. Seminário 22, não publicado, tradução desconhecida.

_________. (1975-1976). O seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.

Miller, Jacques-Alain.\ colaboração com Éric Laurent: “O Outro que não existe e seus comitês de ética” (1996-97, Paidós, 2005),

[1] LACAN, J. (1938). “Os complexos familiares na formação do indivíduo”. Em: Outros escritos. RJ: Jorge ahar Ed., pp. 66-67.

[2] BROUSSE, M.-H. (2000). Los 4 discursos y el Otro de la modernidad. Cali: Ed. Letra, Grupo de Iinvestigación de Psicoanálisis de Cali.

[3] Ibid, pp. 99-103.

[4] Ibidem, p. 99.

[5] MILLER, J.-A. (2004). “Uma fantasia”. Em: Opção lacaniana n. 42. São Paulo: Eolia, janeiro 2005.

[6] Ibid, p. 9-10.

[7] MILLER, J.-A. (2010-2011). “Progressos da psicanálise bastante lentos”. Em: Opção Lacaniana n.64, dezembro de 2012, pp. 9-67. .

[8] Ibidem, p. 63.

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