Por Maria do Rosário Collier do Rêgo Barros
Grupo de trabalho: Analícea Calmon, Astréa da Gama e Silva, Bibiana Poggi, Cristina Vidigal, Fátima Sarmento, Fábio Malcher, Jorge Carvalho, Maria Inês Lamy, Maria Elizabeth da Costa Araújo, Valéria Ferranti
“Enquanto tal, a virtualização não é nem boa, nem má, nem neutra (…). Antes de temê-la, condená-la ou lançar-se às cegas a ela, proponho que se faça o esforço de apreender, de pensar, de compreender em toda a sua amplitude a virtualização”. Pierre Lévy[1]
O título desta conversação, “Crianças fascinadas, seduzidas e educadas pela tela”, nos convida a pensar os diferentes efeitos sobre as crianças do encontro com as várias modalidades de telas que lhes são oferecidas na televisão e em seus computadores, celulares, ipads, iphones, etc. Para situar esses efeitos precisamos levar em conta a mutação que a criação desses gadgets produziu na civilização, e em seguida verificar o uso que as crianças têm feito deles, lembrando que isto vai depender em grande parte da maneira que seus interlocutores: pais, professores e até mesmo colegas, encontrarão para acolher e estar presentes na relação delas com a tela.
O analista, por sua vez, será aquele capaz de verificar o uso singular que cada criança faz da tela, e assim localizar como esta entra em jogo na construção da fantasia e do sintoma, ou funciona, em algumas situações, como obstáculo para essa construção. É preciso também não esquecer os casos em que a tela serve como recurso, como mediação para tratar o excesso de presença do Outro[2].
Em 1914 Freud[3] nos apresentou o “quarto da criança” como um espaço onde esta encontra a presença do outro parental e seus objetos pulsionais. Lacadée[4] resgata esta expressão e comenta que no seu quarto a criança cria um espaço, no qual apreende seu corpo como objeto de gozo, mas também pode se apreender como elemento à parte, isolando-se e vivendo seu ser como objeto rejeitado.
No tempo da inexistência do Outro, a criança pode encontrar, no uso dos gadgets que hoje fazem parte do seu quarto, novas formas de recuperação do seu gozo e também a possibilidade de se libertar do excesso do Outro.
Por um outro lado, a fantasia se constrói a partir da emergência de uma questão que não tem resposta nem nas imagens e nem nas representações. Sua construção, para a qual cada um tem que dar de si, vai servir ao mesmo tempo de tela e enquadre para velar e cingir um ponto de real que se apresenta de várias maneiras na relação do sujeito com sua imagem, com o Outro e com seu corpo.
O encontro com a imagem no espelho, como indicou Lacan, é um momento privilegiado de aparecimento de um ponto não especular que convoca a uma construção. É a partir daquilo que não se vê que a imagem, que aparece no espelho, articula o real do objeto perdido com os significantes veiculados pela fala do Outro. O simbólico, nessa operação, atravessa o imaginário e ao mesmo tempo em que faz uma articulação, produz uma escansão entre o que é dito do sujeito e a imagem que dá unidade e consistência ao seu corpo. A imagem atrelada ao significante ganha assim a dimensão de semblante, que ao mesmo tempo indica e vela o real em jogo. A questão que se coloca é como cingir na relação com a tela esse ponto de real, aquilo que não se vê, ao olhar e ser olhado.
A profusão de imagens oferecidas pelas telas termina por constituir um muro[5] que mascara a dimensão do olhar. Ao mascará-la tenta eliminar a hiância estrutural entre olhar e ser olhado, motor do terceiro tempo da pulsão, “fazer-se olhar”. É essa hiância que a fantasia vem circunscrever, permitindo que se possa circular pelas posições de sujeito e de objeto, graças ao impossível que ela vem velar, mas que é ao mesmo tempo o que a sustenta. Será que a fantasia faria assim limite à transparência, ao tudo ver como pretensão do momento atual? Ou será que os avanços tecnológicos da ciência chegarão a volatilizar até mesmo esse recurso da fantasia, que se apoia no que há de mais singular na relação de cada um com seu gozo? Esta relação, como sabemos, se refere à forma como cada um se virou para lidar com o inevitável de uma perda que, de saída, convocou o sujeito à criação de sua realidade psíquica. A maneira como os gadgets vêm encarnar o mais-de-gozar tentando manipular a causa de desejo poderia nos fazer acreditar ser possível eliminar a fantasia. Mas o que está talvez em jogo é uma “decadência ficcional da verdade”[6], obrigando-nos a recorrer ao real como o que não tem estrutura de ficção. Cabe ao analista apontar o real, não permitindo que a verdade seja absorvida pela ficção, resgatando assim o não todo da verdade. Esse é o caminho por onde o analista pode favorecer a transformação do mais-de-gozar em causa de desejo, tão importante hoje nas diversas relações que a criança pode ter com a tela sem se deixar escravizar por ela.
A política do olhar, que reina atualmente, tem a pretensão de transformar o mundo em um todo visível, desconsiderando que existe no campo da visão um nada ver ou um ver nada, como Lacan tão bem desenvolveu em seu Seminário XI, ao diferenciar o olhar como objeto a, da visão. A arte, diferentemente da ideologia da ciência, mostra o que não se vê. Ela resiste, assim como a psicanálise, a essa política do olhar a serviço da vigilância, que se torna cada vez mais generalizada.
Acreditar na transparência é reduzir o sujeito a um homem sem qualidades, a uma cifra a ser usada e manipulada nos cálculos estatísticos.
As telas são usadas cada vez mais com essa pretensão. Ao olhá-las, acreditando poder ser sujeito desse olhar particularizado, estamos sendo olhados por um olho anônimo que nos transforma em cifras a serviço do mercado de trocas e vendas. Essa pretensão produz, no entanto, um mal estar crescente causado pelo uso da máquina que “reconfigura o mundo e tem efeito de invasão e saturação”[7].
Para nos situarmos nessa conjuntura, será necessário considerar a função do olhar, não como uma atividade do sujeito que olha, mas como objeto, como aquilo que faz mancha no espetáculo do mundo, olha sem olhar-me e me fascina[8]. Ernesto Derezensky, citando Lacan, sublinha que o olhar pode ser signo de um desejo que permanece como uma incógnita. Para Lacan, o olhar poderá tanto sustentar como devastar uma existência[9], dependendo de como ele vai manter sua relação com o vazio nesse ponto mesmo de opacidade do olhar – nada a ver. Quando essa relação se perde, poderá haver uma quebra no enquadre que sustentaria um impossível de ver, e o olhar se transforma em devastação. Quando o olhar aparece na tela, sem que se possa lhe dar o enquadre da fantasia, é preciso lançar mão de outros recursos para evitar ser sugado pelo abismo ilimitado das imagens. Esta é nossa aposta: que mesmo diante da profusão das imagens, será possível sempre ressaltar a relação ao vazio. Caso contrário, o fascínio “pode ter como efeito parar o movimento e literalmente matar a vida”[10].
A questão que nos orienta neste trabalho é a seguinte: como as crianças têm se virado com esse mundo reconfigurado pelas telas que lhes são oferecidas, já simulado pelo cálculo[11], que tem muitas vezes efeitos infernais? Algumas delas sucumbem a esses efeitos, ao ficarem escravas de suas ofertas em programas de televisão e jogos eletrônicos.
Os sintomas das crianças tanto podem ser lidos como formas de resistência (um apelo ao Outro) quanto de desistência (um se entregar sem limites). Mas, nessa última alternativa, de quem seria a desistência: da criança ou do Outro? Mesmo quando elas se entregam aos excessos, fascinadas pelas telas, ainda assim podemos pensar tratar-se de resistência, ao causar tumulto e perturbação em seu entorno. Dessa forma convocam, mesmo sem se darem conta, um bom entendedor para quem poucas palavras ou muitas imagens bastam para trazer de volta o sujeito ao campo da fala e da linguagem, que pode incluir o corpo, devolvendo a ele seu lugar com todo o mal-entendido que lhe é próprio.
Um simples clic no controle remoto é suficiente para conectar as crianças ao mundo das imagens. Estar atento ao uso que cada criança faz dessas imagens e à maneira como ela fala disso é o que vai permitir o corte entre o virtual e o pulsional, dando lugar ao que há de único em suas construções.
Os quatro casos apresentados em nossas discussões preparatórias nos permitiram apreender como essas crianças e adolescentes iam buscar nas imagens da tela algo para lidar com a estranheza de um gozo em seu corpo assim como com o opaco do desejo do Outro que operavam em seu sintoma.
O festival Anima Mundi de 2015 trouxe vários filmes que tratam desse assunto. “O filme do americano Dan Lund, diretor de “Aria for cow”, diz que não quis retratar “as máquinas como vilões”, e sim “a desconexão entre um homem e seu entorno. No filme, um ordenhador imerso nas músicas de seu iPod tira leite de uma vaca praticamente sem se dar conta da presença do animal. A vaca, então, numa contorção narrativa, protagoniza um número musical em que exige respeito do fazendeiro” (Jornal Globo de 6/7/15). A arte resiste, nos oferecendo uma oportunidade para tomar distância da submissão à máquina. E o analista do século XXI não perde essa oportunidade, na medida em que vai privilegiar, na sua escuta e nas suas intervenções, os enigmas produzidos pelos pontos de real que através da tela não se pode ver.
* Texto produzido para uma das Conversações que tiveram lugar no VII Enapol – Encontro Americano de Psicanálise da Orientação Lacaniana, “O Império das imagens”, em São Paulo, ocorrido em setembro de 2015: http://oimperiodasimagens.com.br/pt/.
[1] Lévy, Pierre: O que é o virtual? , Editora 34, São Paulo, 1996
[2] A tela tem sido um recurso importante utilizado por crianças autistas e psicóticas para suportar a presença do Outro e permitir o contato.
[3] Freud, S. Algumas reflexões sobre a psicologia do escolar – 1914, Vol. XIII
[4] Lacadée, P. – A bússola do sim e do não – Cien Digital 16; agosto 2014
[5] Wajcman, Gérard: L’oeil absolu, Éditions Denoël
[6] Miller, J-A: El Otro que no existe y sus comités de ética, Paidós, Buenos Aires, 2005, pg. 15.
[7] Miller, Jacques Alain: “A era do homem sem qualidades in Revue de la Cause freudieene n. 57, pg. 92
[8] Derezensky, Ernesto: “O percurso de um olhar”, na Scilicet Los objetos a en la experiência psicoanalítica, verbete Olhar.
[9] Lacan, Jacques: Seminário, Livro 16 “De um Outro ao outro”, cap XVI pg. 245 , Jorge Zahar Editor:
[10] Lacan,Jacques: Seminário Livro 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise: , Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1998, pg. 114.
[11] Triclot, M : Philosophie des jeux video, Paris, editions la Découverte, 2011,pg. 50, citado por Giraudel, Agnès in Le corps avec et sans l Autre, Scripta, pg 49.
[12] Lacan, Jacques: Le Séminaire, Livre 16, De um Outro ao outro, capítulo VII (Introdução à aposta de Pascal) e capítulo VIII (O Um e o pequeno a) Zahar Editor, 2008.