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Sobre o filme Moonlight

Introdução ao debate sobre Moonlight

Maria Inês Lamy

No encontro do dia 28 de março de 2016, discutimos no Núcleo A criança no discurso analítico – Curumim – o filme Moonlight[1]. Seguem abaixo os ótimos e instigantes comentários de três participantes do Núcleo: Luciane C. Stern, Andrea Cavalcanti de Freitas e Rodrigo Pedalini Borges Pires. Os textos revelam um pouco do modo de trabalhar do Curumim, trazendo ecos da pesquisa que temos desenvolvido, mas também têm a marca de cada autor e de seus temas de interesse.


                                             Sobre o filme Moonlight                                                    

Luciane C. Stern

Algumas reflexões sobre o filme Moonlight foram realizadas no Núcleo de Pesquisa: “A criança no discurso analítico” – Curumim. Agradeço as coordenadoras e a todo o grupo participante as preciosas contribuições para a elaboração deste texto.

Acompanhamos no filme o desenvolvimento de Chiron em seu percurso pela vida. O filme está dividido em três partes: Chiron menino, Chiron adolescente e Chiron na vida adulta.

Três questões se fizeram presentes em relação ao filme Moonlight em articulação com os textos teóricos por nós estudados: 1- sobre o processo de alienação e separação de Chiron. 2- sobre as duas linhas do grafo do desejo, a passagem do primeiro para o segundo andar. 3- sobre a função e a falta de um psicanalista.

Chiron alienado aos significantes do Outro, apelidado de Little, deixava para o outro um corpo que podia ser espancado, humilhado, escorraçado. Filho de uma mãe viciada em drogas, prostituída, que o negligenciava e de um pai ausente.  Sem referências a um terceiro, Chiron deixava-se levar na posição de ser objeto dejeto do Outro. Sofre bullying dos colegas da escola e seus vínculos são deteriorados. Não conseguia fazer furo no Outro que funcionava de forma avassaladora no encontro com ele.

Sem hiância entre ele e a mãe, Chiron não questionava o que se esperava dele.  No filme a mãe fala a Chiron – “Você  é meu único e eu sou sua”. Em outra parte do filme, a mãe exige-lhe dinheiro para comprar drogas e Chiron, mesmo se opondo num primeiro momento, acaba por ceder e entrega o dinheiro que a mãe impôs. Há, ainda, um terceiro momento em que a mãe totalmente drogada lhe diz para dormir fora aquela noite, pois ela estava esperando uma pessoa, ao que ele obedece sem pestanejar e sem perceber o delírio materno. Ao retornar pela manhã do dia seguinte, a mãe o repreende por ele ter passado a noite fora sem avisá-la. Sem enigma, Chiron não produz uma resposta de cunho fantasmático no qual possa sustentar seu desejo ao se alienar ao desejo do Outro.

Juan, um traficante de drogas que se identifica com a vulnerabilidade do menino Chiron, lhe diz: “Chega um momento que você tem que decidir quem você será”. Sem uma identidade autêntica onde Chiron pudesse reconhecer-se, sem distância entre ele e o outro, Chiron se identifica aos poucos elementos que fizeram uma representação em sua vida, como uma colagem. Torna-se um adulto, como Juan, um profissional das drogas, traficante, com todos os seus trejeitos. Com o seu único amigo Kevin, por quem foi introduzido na vida sexual, mantém um apego exacerbado que faz com que esta seja a sua única experiência sexual e amorosa, não se deixando tocar por mais ninguém até receber, 10 anos depois, um telefonema por parte de Kevin e, assim, se reencontrarem.

Jacques-Alain Miller nos diz: “Interpretar a criança é extrair o sujeito”[2], extrair o sujeito dos significantes do Outro, desse Ideal de eu que passeia por fora dela, o que dá à criança condições de interrogar: o que o Outro deseja de mim? E a partir daí construir sua própria resposta fantasmática para lidar com o desencaixe inevitável entre o objeto que a criança encarna e o Outro, podendo agora a criança/sujeito sustentar o seu desejo.

Há um momento do filme em que Chiron, depois de sofrer abusos por parte dos colegas que o atormentavam e ordenavam que Kevin o agredisse, se revolta e joga uma cadeira em cima de um colega de turma, que era o chefe da gangue. Esse foi um momento catártico de Chiron ou foi um momento em que ele pode se apresentar e dizer a que veio? Um debate entre os colegas do Curumim se processou, sem que houvesse consenso. Em particular, não creio que houve a extração da posição de objeto que pudesse fazer mover o circuito pulsional e assim fazer aparecer o desejo a partir do vazio que ele circunscreve.

Faltou a Chiron um analista que ele pudesse usar como um instrumental de preensão de si mesmo.  Produzir, a partir deste encontro, uma hiância entre ele e o que se esperava dele. Um analista poderia incidir com um corte entre um significante elementar, insensato (Little) e o gozo amalgamado a ele, capturando o sujeito neste código e fazendo-o emergir. Um analista que pudesse acompanhá-lo de uma cena a outra. Da criança Chiron tomada no jogo do enunciado à criança Chiron do jogo da enunciação. 

Enfim, um analista que pudesse extrair o sujeito, que fizesse um desencaixe, um intervalo entre o sujeito e os significantes do Outro, resgatando a função que tem o objeto de fazer furo no Outro. Assim, apareceria o sujeito dividido Chiron, o sujeito e seus objetos, o que introduziria o desejo no circuito da demanda, reconectando Chiron com sua dimensão de objeto de desejo antes encoberto.


                                               Comentário sobre uma cena

Andréa Cavalcanti de Freitas

      Há uma cena encantadora no filme Moonlight que é basicamente feita de imagem e som, sem palavras, mas que parece coroar em poesia o desfecho da trajetória de um sujeito em sua busca em se situar singularmente no mundo. Trata-se do momento em que Chiron, o personagem principal, aparece dirigindo seu carro por uma estrada, agora mais velho e transformado num homem forte, com uma aparência imponente pela maneira como está vestido, e dirigindo. Chiron apresenta-se como se vestido de grande virilidade…. No entanto há um detalhe no fundo da cena: ecoa a música “Cucurrucucu Paloma” na voz de Caetano Veloso evidenciando um desencontro instigante. O contraste que se revela aí é a imagem endurecida do personagem emoldurada por uma música delicada, sensível, que fala de uma fragilidade, de uma tristeza, de uma dor…. 

     Isto nos remete imediatamente ao início do filme que mostra Chiron como uma criança frágil e paralisada frente a uma realidade social e familiar avassaladora. Neste tempo Chiron era chamado de “Little”. Já nessa cena Chiron está transformado numa imagem completamente diferente, forte, assumindo um novo nome, “Black”. É interessante observar que essa nova estampa é muito similar à imagem de Juan, personagem mais velho que, durante a infância de Chiron, a partir de um encontro acidental, passa a ser uma referência, dando acolhimento e atenção em muitas passagens fundamentais em sua vida. E também o nome “Black” era como um amigo, com quem possui uma história amorosa, gostava de brincar de chamá-lo quando eram adolescentes.

     De todo modo, há essa passagem de “Little” a “Black” na trajetória do personagem, e esta cena do carro condensa como numa captura de um instante, como uma fotografia, estes dois significantes, pois o som ao fundo atravessa a cena trazendo à tona a fragilidade aparentemente esquecida.

   A partir do texto de Miller “Interpretar a Criança”[3] como poderíamos ler essa passagem? Poderíamos pensar aí como um momento de transformação efeito de uma interpretação do sujeito? O que propiciou essa transformação? Segundo Miller, a interpretação ocorre quando a mensagem ganha valor de transformação. Mas que mensagem ganhou esse estatuto?

   E, quando no item ‘A criança entre o enunciado e a enunciação’ Miller aponta o grafo do desejo de Lacan e diz que a criança estaria tomada “no jogo entre enunciado e enunciação”, e que a distinção entre o ‘eu’ do enunciado e o ‘eu’ da enunciação ainda não se estruturou, poderíamos pensar que essa diferenciação se deu nessa passagem de Chiron de “Little” para “ Black”? Fica uma dúvida a esse respeito porque a música faz lembrar ao espectador que talvez o “Black” que aparece na tela não parece tão convincente assim, algo se descompassa.

   Ou talvez o que a cena poderia indicar é que fazer essa passagem, ou melhor, realizar a subida para o andar de cima do grafo, não apagaria necessariamente a marca anterior do sujeito. Ou seja, “Little” e “Black” parecem se entrelaçar, são construções necessárias e estruturantes para Chiron.

      Enfim, de qualquer modo, a projeção desta cena propicia ao espectador se deparar com esse contraste, trazendo este enigma: Chiron transforma-se em quem? E será que de fato se transformou?

Cucurrucucu Paloma

Dizem que pelas noites
Não conseguia nem mesmo chorar
Dizem que não comia
Não conseguia nem mesmo beber
Juram que o próprio céu
Se estremecia ao ouvir seu pranto
Como sofria por ela
Que até em sua morte ele a foi chamando

Ai, ai, ai, ai, ai
Cantava
Ai, ai, ai, ai, ai
Gemia
Ai, ai, ai, ai, ai
Cantava
De paixão mortal, morria

Uma pomba triste
Cedo da manhã se põe a cantar
Na casinha solitária
Com as portinhas duplas
Juram que essa pomba
Não é outra coisa senão sua alma
Que todavia espera
Que retorne a infeliz
Cucurrucucu
Pomba
Cucurrucucu
Não chores
As pedras jamais
Pomba
Que podem saber
De amores

Composição: Tomas Mendez


Sobre o amor em Moonlight

Rodrigo Pedalini Borges Pires

O que se segue é fruto de elaborações provocadas pela discussão envolvendo o filme “Moonlight”, ocorrida durante encontro do Núcleo Curumim.

A hipótese que levantei, levando em consideração uma pontuação feita durante o encontro, foi a de que o amor teria tido papel tão importante na vida de Chiron que talvez pudesse ser considerado ainda mais relevante que sua identificação com Juan, que vinha até então sendo o principal coadjuvante na referida discussão.

Para isso, argumentei que alguém, que havia apanhado a vida inteira calado sem nunca revidar nenhum tipo de agressão e limitando-se a fugir acuado, havia pela primeira vez respondido à agressão (com a “cadeirada” que inicialmente foi considerada pelo grupo como uma passagem ao ato mas que retomarei adiante sob outro ponto de vista), por um motivo: porque pela primeira vez fora agredido pelo homem que amava.

 Disse também que, enquanto apanhava de Kevin e também pela primeira vez, não se deixou bater, acuado e sem reação. Levantou-se quantas vezes foram possíveis para seu corpo franzino, olhando altivo de cima para baixo, diretamente nos olhos de Kevin e recusando-se a ficar no chão, o que evitaria que apanhasse mais e, principalmente, evitaria que Kevin voltasse a golpeá-lo. É como se o objeto Chiron se tivesse feito sujeito e adquirido coragem para enfrentar o agressor. Considerei que tal enfrentamento tenha sido uma forma de enunciar e declarar seu amor. Daí minha idéia de que ali se fez sujeito, e de que todo esse movimento de coragem, de enfrentamento que comunica (que emite uma mensagem), surgindo de onde só se via objeto, só foram possíveis por causa do amor. O fato de que Chiron nunca mais deixou-se tocar por ninguém também foi por mim levado em consideração para seguir por esse caminho.

Real, Simbólico e Imaginário

Procurei na biografia do diretor e roteirista alguma referência à psicanálise e não encontrei, mas parece não ter sido à toa que sua divisão do filme se deu em três partes:

1. Little

Chiron colocara-se na vida sempre como resto, como objeto. Quase não falava, não emitia opinião, não havia desejo, fugia. Assim tem início o filme, cuja primeira parte foi nomeada como “Little”, um bom nome para se dar a esse lugar de objeto. Levando isso em consideração, optei por relacionar (simbolicamente) essa parte do filme com o Real lacaniano.

É, no entanto, ainda na primeira parte que surge Juan, traficante local, o “bom bandido” como dito durante a reunião. Ali parecia surgir alguma possibilidade de entrada no simbólico. Chiron não teve pai e sua mãe é usuária abusiva e dependente de crack, objeto ao qual se dedica como preferido em relação a Chiron, preterido. 

Juan surge ao vê-lo correndo em mais uma de suas fugas, identifica-se com o garoto e resolve dedicar-se a ele. Começa por tentar fazê-lo falar, lhe dá a palavra, coisa que o menino recusa, o que faz com que Juan recorra à namorada, Teresa. Se o que faltou na história foi um psicanalista, como dito durante a reunião, talvez esse lugar tenha sido de certa forma ocupado por Teresa, que lhe deu um lugar na fala. Juan por sua vez lhe serviu de referência. Serviu de modelo do que é ser um homem. É a Juan que Chiron pergunta o significado da palavra “fag”, assim como é ao pai que se recorre para se entender o sentido da vida. Houve uma identificação bastante grande de Chiron a ele mas que, ou porque era tarde demais no que se refere à formação de uma estrutura psíquica, ou porque também Juan falhou nesse lugar de pai, quando é descoberto como sendo o traficante que vende drogas à sua mãe, não passou de uma identificação que permaneceu no campo do Imaginário, forte o suficiente, no entanto, para sustentar toda a terceira parte do filme. 

“Litlle”, parte i.,  fica com o Real, nu e cru, e uma tentativa frustrada de simbolização.

2. Chiron

O nu é vestido de preto, cor de sua pele, o que pode ser considerada como a maneira mais concreta de se nomear alguém: se ele é preto, então seu nome é Preto (Black).          A cor da pele (lembrando que Chiron era um entre muitos outros negros do bairro), o que se vê como sua imagem, vira nome. Novamente torno a pensar no papel do Imaginário e do fracasso do simbólico nessa parte do filme. Seu nome dá nome a essa parte do filme, mas é nesse capítulo que Chiron é nomeado pela sua imagem mais concreta, menos simbolizada. Podemos pensar o título como um fracasso na nomeação e portanto de inscrição na ordem simbólica, já que o diretor escolhe “Chiron” para nomear o trecho do filme em que ele recebe o apelido “Black” – que virá a escolher na terceira parte como nome. “Preto no branco” segundo dicionarioinformal.com.br “é deixar as coisas claras e que todos os envolvidos entendam seu real teor, sem linguagem figurativa ou algo do gênero”. O apelido Black é dado por Kevin.

O cru é cozinhado por Kevin (que aliás mais tarde vai efetivamente tornar-se cozinheiro).  Vai, como uma histérica, furando Chiron, apontando-lhe as faltas e assim provocando algum desejo, aquecendo o que estava cru, seduzindo sem no entanto ser lá muito claro quanto ao que quer. Kevin sempre esteve nesse lugar, desde a cena no campo de futebol quando aponta em Chiron sua falha, sua fraqueza e lhe diz que deve ser forte. Se observarmos a relação dos dois a partir da divisão masculino x feminino, se poderia dizer que Kevin esteve mais para o lado feminino e Chiron, do masculino. As atitudes mais fálicas de Chiron sempre estiveram, ao que me parece, motivadas pelo amor: apanhar sem medo, agredir com uma cadeira e tornar-se o dono da boca.

Furando e seduzindo Chiron, Kevin talvez tenha lhe dado suporte para algum descolamento e o resultado dessa operação parece ter sido o amor. Chiron passa a amar quem lhe dá um lugar de sujeito, quem lhe provoca algum desejo. Não sei se poderia ir além e pensar que Kevin fez como faz uma mãe diante do espelho e aponta: aquele é você. A partir de sua imagem no espelho-Kevin, ou na função especular que Kevin tem para Chiron, que é igual mas é diferente, Chiron constrói alteridade: Eu sou esse que Kevin aponta. Eu não sou Kevin, eu sou esse que Kevin aponta. Se Kevin diz que sou Black, então sou Black.

Pelo apelido que ele recebe nessa parte do filme e por conta desse ensaio em torno do esquema óptico, relaciono essa parte do filme ao Imaginário.

3. Black

De um lugar de objeto, e um fracasso de inscrição no simbólico, Chiron agarra-se no Imaginário para se construir. Veste-se como Juan, fantasia-se literalmente de traficante, desenvolve músculos, recobre-se de ouro. Teve recursos imaginários em Juan que possibilitaram sua sobrevivência, mas só lhe fez sentido sobreviver por conta do amor a Kevin. Um amor que teve uma função tão fundamentalmente sustentadora para ele que não se deixou tocar por mais ninguém, até reencontrá-lo anos mais tarde. Como se substituí-lo por outro fosse fazê-lo desmoronar, como se fosse algo da ordem do impossível. Ninguém foi capaz de substituir esse lugar, o que nos faz pensar que Chiron não existiu sem Kevin e só existiu por causa dele. Se Juan foi sua referência imaginária de homem, Kevin tornou possível a operação de transformação de Little em “Chiron-Juan” (Black). É Kevin quem, na segunda parte do filme, lhe dá o apelido de Black, que agora Chiron escolhe como seu nome.

Comecei minha elaboração partindo da importância ou da relevância do amor na vida de Chiron, em sua construção. Agora me pergunto se algo da ordem de uma lealdade canina, mais rudimentar que o amor, ainda pode ser considerado amor e, se sim, que tipo de amor é esse. Mas o que me parece claro é que quando Kevin aparece como objeto amoroso, Chiron se “faliciza”: mantém-se de pé enquanto apanha, devolve a agressão, vai preso, adquire músculos e vira dono da boca, como Juan. 

Pai nem tanto e arremedo de simbólico: essa parte do filme represento como uma saída possível de um sujeito diante da ausência de um pai, uma saída possível diante do fracasso do Simbólico, fazendo uso dos recursos que lhe restam com o Imaginário. O laço do pacote que se tornou.

Passagem ao ato ou acting out?

Passou-se algum tempo entre a agressão sofrida e a agressão proferida, o que nos faz pensar que houve alguma elaboração nesse meio tempo. Chiron acorda, molha o rosto em água gelada, passa a impressão de estar elaborando. Além disso, como dito, o fato deu-se em sala de aula, diante de outros alunos e diante de Kevin. Mas minha linha de raciocínio, que partiu do amor, levou-me a pensar que o que se passa nessa cena (que é considerada uma tentativa de homicídio) é um correlato de um crime passional, já que Chiron sentiu-se traído por Kevin e tentou matar quem fê-lo trair, como um marido traído em relação ao amante, e aí a discussão passaria a ser se um crime passional é uma atuação ou uma passagem ao ato. Como minha hipótese é de que a agressão que o levou à cadeia teve motivação passional, tendo a pensar que se trata de uma atuação, com endereçamento e motivação passional.

[1] Moonlight, 2016, dirigido por Barry Jenkins, ganhador do Oscar de melhor filme em 2017.

[2] Miller, J.- A. “Interpretar a criança”. Em: Opção Lacaniana 72, março de 2016, p.17.

[3] Miller, J.-A., “Interpretar a criança”, ob. cit.

Sobre a Unidade de Pesquisa Clínica e Política do ato

Por: Leonardo Miranda

Este texto é fruto das discussões realizadas na Unidade de pesquisa Clínica e Política do Ato, tendo como proposta para esse ano de 2016 pensar o tema da adolescência. Através das apresentações de Fred Chamma e André Spinillo da terceira parte dos “Três ensaios sobre assexualidade” (FREUD, 1905) introduzimos a discussão sobre as questões que envolvem a puberdade seguindo a indicação do texto de Miller “Em direção à adolescência” (MILLER, 2016). Ainda na primeira parte do texto de Miller nos deparamos com a seguinte frase que nos convocou à pesquisa: “É   também   o   momento   de   se   levar   em consideração,   dentre   os   objetos   do   desejo,   o   que   Lacan   isolou   como   o   corpo   do Outro”. Neste momento, visando um aprofundamento desta parte destacada, Heloisa Caldas propôs que Ondina Machado apresentasse os trechos de sua tese intitulada”A clínica do sinthoma e o sujeito contemporâneo” (A tese toda está em www.ebp.org.br) onde trata sobre o corpo do Outro, como o trecho a seguir:

“Sujeito do significante e sujeito do gozo são as duas vertentes da insígnia. Essa duplicidade, todavia, pode ser aplicada também ao conceito de Outro. Este Outro é o lugar do significante. Mas Lacan também o define como corpo enquanto deserto de gozo.” (ONDINA, p.76)

Ondina comenta que o corpo para a psicanálise é uma substância de gozo. O corpo para psicanálise não é corpo enquanto não incide nele o significante. Sempre tem um dito que fixa o modo de gozo. Como é um dito que incide sobre o corpo? A gente não lida com o corpo antropológico, nem com o ontológico, nem com o corpo biológico, o corpo com o qual lidamos é uma substância gozante. Ele não é uma abstração, não está no mundo das ideias, mas também não é um corpo como matéria, como organismo, tampouco é o corpo da existência, do devir. Ele não é corporal, mas também não é incorpóreo, é  o corpo como o lugar do Outro porque nele (corpo) que está a marca do significante (incorporal). O corpo é uma substância gozante porque é atravessado pelo significante. É neste sentido que o corpo é sempre o lugar do Outro, lugar de um dizer.

Puberdade não coincide com a adolescência, esta última pode ir mais longe, até mesmo à vida adulta. As metamorfoses do corpo na puberdade convocam o sujeito a se reposicionar diante do Outro. A forma (imagem) do corpo muda e os antigos dizeres sobre si não servem mais para situá-lo no Outro da família, da cultura. Seu corpo ocupa um espaço diferente e à sua fala passam a ser atribuídas consequências inéditas (brincar de médico, masturbação, namoro). O Outro sexo o convoca a manifestar seu desejo com palavras e com o corpo. Aqui o Outro sexo é qualquer corpo que não seja o seu. A mediação entre dois corpos (que só como corpo corporal não existem) é feita pela fantasia, pois é ela que vai conectar o sujeito a seus objetos. O corpo do semelhante não trás problema, é o corpo no qual incidem as marcas do Outro que é o problema, o que se produz quando esse dizer incide no corpo e faz dele Outro para o próprio sujeito.

Prosseguindo com as apresentação do texto de “Em direção à adolescência” (MILLER, 2016) discutimos sobre a diferença entre os sexos na adolescência, tentando pensar as diferenças precoces apontadas por Freud e destacadas por Miller. Levantamos algumas formas atuais de expressão como os blogs, tentando ver o que cada sexo posta pela internet e verificar se ainda valem as ideias de que a menina tende à inibição e ao recalque, demonstrando um amadurecimento precoce, enquanto o menino teria uma tendência a se manter infantil sexualmente. Camila Drubscky conta sobre o caso de uma jovem que não demonstra em nada esta inibição, pelo contrário, se mostra muito desinibida quanto ao sexo. Camila se prontificou a escrever o caso e trazer para discussão.

Paralelamente  foi indicada a leitura  de um caso publicado em um livro organizado por Éric Laurent*, que passou a orientar nossas discussões fazendo um contraponto com o caso mencionado por Camila.

Continuamos a discussão do texto do Miller na parte em que ele trata da imiscuição do adulto na criança. Levantamos a hipótese do adulto funcionar como um ideal para a criança, usando como exemplo a passagem que Miller conta sobre sua neta, que está no “Prólogo para Damásia”**. A menina disse que não acreditava mais nem em coelhinho da Páscoa nem em Papai Noel, mas manteria esta tradição quando tivesse seus filhos. Há um lugar para a criança, mas na perspectiva de tornar-se um adulto. É a partir disso que podemos pensar na imiscuição do adulto na criança, não como exigência, mas como ideal. Assim poderíamos entender a adolescência como tempo para compreender as transformações da puberdade. Traçamos algumas distinções preliminares sobre o ideal do eu e o eu ideal, situando o primeiro na via do simbólico e dirigido ao Outro e o segundo na via imaginária do querer ser, que daria margem à formação das fratrias, tribos, grupos. Este assunto foi aprofundado por  Sandra Landim que nos apresentou suas articulações, retiradas do Esquema R de Lacan, em paralelo com as primeiras leituras do caso clínico “Otra marca posible”*.

Sandra Landim apresentou o esquema R de Lacan, como está no texto “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose” (LACAN, 1959. p. 559) para falar do narcisismo e de como ele faz surgir o ideal do eu e o eu ideal. A partir da apresentação da Sandra discutimos sobre se o ideal hoje ainda orienta escolhas e atos, questão importante para este período da vida e para pensar a passagem ao ato.

Márcia Muller comentou sobre a tendência à procrastinação, levantando questões sobre o mundo atual e a multiplicidade das opções possíveis como facilitadora da procrastinação, a se adiar um momento de concluir da adolescência. Márcia deu também destaque ao modo como os jovens lidam com o saber atualmente, à influência do Google e à expressão de Miller de que “osaber está no bolso”. Ao pular o Outro, como fonte do saber, a teoria do complô ganha relevo respondendo à desidealização do Outro e a forma degradada e nociva que surge quando se evoca o Outro como saber ou como ordem.

Rejane Nunes tratou das mutações na ordem simbólica fazendo alguns paralelos com a Saúde mental. Perguntou-se se o enfraquecimento do simbólico corresponderia ao que se passa na psicose.

Camila Drubscky comentou um momento em que Ondina teria chamado atenção para a importância que a dor tem no processo da tatuagem. Diferente de épocas passadas, atualmente, não se estabelece tanto uma relação entre a figura tatuada e uma historia/cena da vida do sujeito. O que tem aparecido com maior frequência  é  a valorização da dor. Daí a possibilidade  de pensar a tatuagem como uma tentativa de constituir um corpo, fazer corpo quando as bordas do corpo estão imprecisas.

 * LAURENT, É. y otros. Cuerpos que buscan escrituras. Buenos Aires: Paidós, 2014. Os textos são: apresentação do caso – “Caso 1- Otra marca posible” e Discussão sobre o caso 2. Caso 1 “El impulso a cortarme” o hacer magia”.

** Freda, Damasia Amadeo de. “Prólogo para Damasia”. In: El adolescente actual. Nociones clínicas. San Martin: Unsam Edita, 2016

Bibliografia:

FREUD S. “As transformações da puberdade” (1905). In: Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, parte III. ESB, volume VII. Acessível por: https://www.passeidireto.com/arquivo/4156685/freud—ensaio-iii—as-transformacoes-da-puberdade-1905

LACAN, J. De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998

LACAN, J. (1974/2003) “Prefácio a ‘O despertar da primavera’”. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, pp.557-559.

MILLER, J.-A. Em direção à adolescência. Acessível por: http://minascomlacan.com.br/blog/em-direcao-a-adolescencia/

Rumo à adolescência

Desde o segundo semestre de 2015, o Curumim se lançou ao trabalho de pesquisa sobre a adolescência, tema de todos os Núcleos de Psicanálise com Crianças da NR Cereda, auxiliado pelo texto de Jacques-Alain Miller que encerra a III Jornada do Instituto da Criança, cujo título é: “Em direção à adolescência”.

Nesse texto Miller retoma as bases desde Freud, sobre a puberdade, o que é ainda vigente, indo até o novo recolhido entre vários autores que nos apontam para os desafios que temos que enfrentar, pois os novos adolescentes são frutos desses desafios.

As bases

A adolescência é uma construção feita de significantes e de real; o real em jogo nela se articula com o apoio dos semblantes. O semblante compreende imaginário e simbólico.

Momentos cruciais:

  • Na puberdade, que é a saída da infância, ocorre o encontro com um objeto de desejo novo: o corpo do Outro.
  • É uma escansão sexual, ou seja, é o tempo de compreender o que foi antecipado na infância, “as predisposições, reconhecíveis desde a infância, à posição feminina ou à masculina”.
  • O ponto de basta e a conclusão no momento em que o desejo se reconfigura pelos ideais. É quando algo de fora, do adulto, se introduz no jovem. Lacan fala da “imisção ou imiscuição” do adulto no adolescente.

O novo

  • A procrastinação: diante dos muitos objetos possíveis através do mundo virtual, o sujeito adia ao infinito o encontro com o impossível.
  • O auto-erotismo no jogo com o saber, sem passar por estratégias com o desejo do Outro: como o conhecimento é acessível através da internet, não há aposta com a bolsa ou a vida, uma vez que a vida está no bolso.
  • Realidade imoral: quando o adolescente precisa largar a mão dos pais para se tornar adulto, muitas vezes não encontra um Outro e, se o encontra, este tem a face tirânica, degradada ou nociva como o Outro do complô.
  • Há um déficit de respeito, os adolescentes dizem: “quero ser respeitado”. Mas quem é o Outro que o respeitaria? Retorna o que Miller chama de demanda vazia: “Como seria bom ser respeitado por alguém que respeitássemos”.
  • E, finalmente, porque as mutações na ordem simbólica são tão agudas, o pai deixou um vazio, a tradição religiosa ou a dos chamados “bons costumes” se perderam, é que sobrou espaço para uma tradição muito demarcada como a islâmica. Sem pai, sem perdão, só vingar, só vencer.

Mas não esqueçamos das três palavras necessárias que nos aponta Lacan em “A Juventude de Gide”: a palavra que interdita, a palavra que protege e a que humaniza (e autoriza) o gozo, o desejo, para enlaçá-los com o amor.

Cleide Maschietto e Isabel Bogéa Borges

Comentários sobre o Eixo 1 da Manhã Clínica das XXIV Jornadas Clínicas da EBP-Rio e do ICP-RJ

A primeira mesa, com o título ‘O ilegível do sintoma e a opacidade do gozo’, apresenta questões da clínica nas dimensões da voz, som, escrita e leitura. Voz/som que provoca acontecimento de corpo, o mal estar do corpo, um corpo que padece além da dimensão biológica. Escrita/leitura que aparece como endereçamento possível à inscrição subjetiva. O que convoca o analista às questões paradoxais da sua formação: como ler o sinthoma e identificar o lugar de gozo no corpo? Como avançar do objeto a ao sinthoma, para que apareça a alteridade radical, aquilo que não se lê, o que não faz significante na cadeia?

O tema desta mesa convoca a pensar: O que muda na ética da psicanálise de hoje? Quais são os limites da prática? A verdade mentirosa e o gozo, o avanço dos conceitos e sua inscrição em cada caso, oferecendo a possibilidade de leituras ao analista e analisando. A escrita como expressão do que se lê e o que se (in)escreve numa análise. A interrupção do analista opera, num determinado momento da análise, e convoca a pensar sobre a interpretação hoje. Entender os deslocamentos do sentido para o gozo, como também pensar se a fantasia mantém a sua vigência, se pode servir como ferramenta para as neuroses. Se sim, como isso se isso dá? A verdade e o gozo, hoje, apresenta o deslocamento do conceito de inconsciente (Freud) para o Falaser (Lacan) – da verdade ao gozo.

A segunda mesa ‘um olhar sobre o narcisismo’ apresenta o singular modo de viver o mal entendido de um corpo. Como um adolescente pode se virar com o seu corpo em análise? Do ideal do eu ao eu ideal e o narcisismo. O que se configura do corpo na adolescência parece ser uma entrada do adulto na criança. Miller no seu livro em direção à adolescência, diz: o adolescente nega o real para viver os signos. E na velhice há um narcisismo terciário? Envelhecer doí, a imagem especular que convoca o ideal do eu e eu ideal. O real, imaginário e simbólico de um corpo que envelhece. Cita Clarice Lispector, ‘em que espelho ficou o rosto?’. O resto e a dor que traduz esse pulsar que está prestes a cessar. A analista interroga-se sobre a possibilidade do narcisismo terciário, mas o inconsciente, como diz Freud, é infantil. E também não acontece a morte de um corpo infantil na adolescência?

Através do filme ‘O abutre’ nas imagens que apresentam semblantes de corpos, imagens de traços traumáticos, a pregnância de um olhar que vê os fragmentos de um corpo e indaga o que é ter um corpo. Do espetáculo do horror a indagação do que não se vê. O corpo revisitado, a mídia e o falaser, faz indagar sobre o lugar do gozo do corpo na sociedade atual.

Pensar o corpo seja nas imagens despedaçadas, apresentadas no filme ‘abutre’ – do gozo do um que não incluí o outro, mas que produz efeitos naquele que vê as imagens. Seja no corpo da adolescência, um tempo de reafirmar a escolha sexual, dar conta das transformações de um corpo que provoca o desconhecido – Quem é esse adulto em mim? Uma demanda do que pode ou não ser formulado do ilimitado do amor. Seja na velhice que urge o anunciado da finitude de um corpo, isso também se dá noutros tempos da vida? As pessoas envelhecem, mas o sujeito envelhece? A dor de existir nos vários tempos da vida, a dor do dente cabe dentro do orifício – um olhar sobre o narcisismo. Ir além, entre doer e doar há uma escolha do sujeito. Já temos muito que se haver com o narcisismo primário e secundário, independente da idade cronológica, como diz Freud, o inconsciente é infantil. O corpo como o lugar do trauma, sempre escapa. A aposta do analista no tratamento do que excede no gozo está para além do significante ser adolescente ou ser velho, traduz o diferente lugar da psicanalise que não obtura como o geriatra/pediatra, deixando aberto o buraco, a ferida que doí e pulsa. A caverna psicológica de cada um e suas marcas no corpo, a intervenção do analista padece com a sustentação do que é possível em cada tempo de analise.

A terceira mesa revela os modos de tratamento do gozo na transferência. A obra de Pina Bausch como uma possibilidade de um corpo na psicose que evoca o caso Joyce (Lacan) de um enlaçamento na produção subjetiva. Como o mistério da libra de carne, extração do objeto do mundo como resposta subjetiva na construção do fantasma marca cada corpo? O percurso que o trabalho chega quando se pensa o corpo na psicose – Como Joyce e Pina se servem da arte para depois achar o saber que recolhe? Certas coisas se dizem em palavras, outras só podem ser sentidas ou por movimentos como a dança ou escritas de fragmentos vivos. Tem certas coisas que não sabemos como ir e aí dançamos, escrevemos, pintamos… Injetar a vida na vida!

Nunca me esquecerei desse acontecimento

Na vida de minhas retinas tão fatigadas.

Nunca me esquecerei que no meio do caminho

Tinha uma pedra no meio do caminho

No meio do caminho tinha uma pedra.”

Carlos Drummond de Andrade ·

O tempo é lógico e não cronológico, já dizia Lacan. As diferentes durações em análise, algumas bem recentes e outras bem longas, se inscrevem em recortes/leituras possíveis do analista. O desejo e aposta na travessia e o seu limite na fantasia. Qual o tempo de final de analise? O curioso quando o sujeito fala, insiste, não falta e repete a pergunta em cada encontro amoroso – Já está bom? Quem permite o final de um percurso? Do primeiro Freud ao último Lacan e leituras de Miller e outros, o lugar do analista para cada sujeito fazer a sua travessia. Os cuidados da clínica atual, um acontecimento de corpo e gozo, só sendo possível na condição de transferência do suposto saber num tempo que não é cronológico é lógico de cada um.

A convocação do nome do pai e a cisão, um drama marcado pelo S1. Uma experiência vivida, também por Lacan, na cisão da escola EBP com a AMP e representada pelo ‘Lago do Cisne’. No final a morte anunciada é apresentada na fantasia e no real, se constrói numa travessia que leva tempo, o tempo de cada um. A função da dança, a arte no resto, aquilo que falta e insiste em cada encontro com o desencontro. O corpo revisitado permite o delírio, o sinthoma é um acontecimento de corpo, a corporificação da entrada da linguagem no corpo.

O sujeito falaser e sua fuga errante num gozo sem sentido, um corpo e o seu lugar de dor na busca de sentidos, as escolhas de objeto de amor, a construção de um corpo que se apresenta estranho e provoca sensações fora de controle. O corpo seja na adolescência ou velhice, e suas marcas de um acontecimento de corpo que insiste e padece na imagem especular do ideal do eu e eu ideal. A libido e os objetos perdidos à urgência de uma vida que se esvai nas imagens de corpos sem vida, num gozo que se reproduz num excesso em que cada um há que chegar à dose certa do seu resto.

Ana Cristina Aguiar Vilhena de Carvalho (Turma 2014)

* As menções que pudessem identificar os casos clínicos foram retiradas em nome do sigilo dos pacientes.

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