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Sobre a Unidade de Pesquisa Clínica e Política do ato

Por: Leonardo Miranda

Este texto é fruto das discussões realizadas na Unidade de pesquisa Clínica e Política do Ato, tendo como proposta para esse ano de 2016 pensar o tema da adolescência. Através das apresentações de Fred Chamma e André Spinillo da terceira parte dos “Três ensaios sobre assexualidade” (FREUD, 1905) introduzimos a discussão sobre as questões que envolvem a puberdade seguindo a indicação do texto de Miller “Em direção à adolescência” (MILLER, 2016). Ainda na primeira parte do texto de Miller nos deparamos com a seguinte frase que nos convocou à pesquisa: “É   também   o   momento   de   se   levar   em consideração,   dentre   os   objetos   do   desejo,   o   que   Lacan   isolou   como   o   corpo   do Outro”. Neste momento, visando um aprofundamento desta parte destacada, Heloisa Caldas propôs que Ondina Machado apresentasse os trechos de sua tese intitulada”A clínica do sinthoma e o sujeito contemporâneo” (A tese toda está em www.ebp.org.br) onde trata sobre o corpo do Outro, como o trecho a seguir:

“Sujeito do significante e sujeito do gozo são as duas vertentes da insígnia. Essa duplicidade, todavia, pode ser aplicada também ao conceito de Outro. Este Outro é o lugar do significante. Mas Lacan também o define como corpo enquanto deserto de gozo.” (ONDINA, p.76)

Ondina comenta que o corpo para a psicanálise é uma substância de gozo. O corpo para psicanálise não é corpo enquanto não incide nele o significante. Sempre tem um dito que fixa o modo de gozo. Como é um dito que incide sobre o corpo? A gente não lida com o corpo antropológico, nem com o ontológico, nem com o corpo biológico, o corpo com o qual lidamos é uma substância gozante. Ele não é uma abstração, não está no mundo das ideias, mas também não é um corpo como matéria, como organismo, tampouco é o corpo da existência, do devir. Ele não é corporal, mas também não é incorpóreo, é  o corpo como o lugar do Outro porque nele (corpo) que está a marca do significante (incorporal). O corpo é uma substância gozante porque é atravessado pelo significante. É neste sentido que o corpo é sempre o lugar do Outro, lugar de um dizer.

Puberdade não coincide com a adolescência, esta última pode ir mais longe, até mesmo à vida adulta. As metamorfoses do corpo na puberdade convocam o sujeito a se reposicionar diante do Outro. A forma (imagem) do corpo muda e os antigos dizeres sobre si não servem mais para situá-lo no Outro da família, da cultura. Seu corpo ocupa um espaço diferente e à sua fala passam a ser atribuídas consequências inéditas (brincar de médico, masturbação, namoro). O Outro sexo o convoca a manifestar seu desejo com palavras e com o corpo. Aqui o Outro sexo é qualquer corpo que não seja o seu. A mediação entre dois corpos (que só como corpo corporal não existem) é feita pela fantasia, pois é ela que vai conectar o sujeito a seus objetos. O corpo do semelhante não trás problema, é o corpo no qual incidem as marcas do Outro que é o problema, o que se produz quando esse dizer incide no corpo e faz dele Outro para o próprio sujeito.

Prosseguindo com as apresentação do texto de “Em direção à adolescência” (MILLER, 2016) discutimos sobre a diferença entre os sexos na adolescência, tentando pensar as diferenças precoces apontadas por Freud e destacadas por Miller. Levantamos algumas formas atuais de expressão como os blogs, tentando ver o que cada sexo posta pela internet e verificar se ainda valem as ideias de que a menina tende à inibição e ao recalque, demonstrando um amadurecimento precoce, enquanto o menino teria uma tendência a se manter infantil sexualmente. Camila Drubscky conta sobre o caso de uma jovem que não demonstra em nada esta inibição, pelo contrário, se mostra muito desinibida quanto ao sexo. Camila se prontificou a escrever o caso e trazer para discussão.

Paralelamente  foi indicada a leitura  de um caso publicado em um livro organizado por Éric Laurent*, que passou a orientar nossas discussões fazendo um contraponto com o caso mencionado por Camila.

Continuamos a discussão do texto do Miller na parte em que ele trata da imiscuição do adulto na criança. Levantamos a hipótese do adulto funcionar como um ideal para a criança, usando como exemplo a passagem que Miller conta sobre sua neta, que está no “Prólogo para Damásia”**. A menina disse que não acreditava mais nem em coelhinho da Páscoa nem em Papai Noel, mas manteria esta tradição quando tivesse seus filhos. Há um lugar para a criança, mas na perspectiva de tornar-se um adulto. É a partir disso que podemos pensar na imiscuição do adulto na criança, não como exigência, mas como ideal. Assim poderíamos entender a adolescência como tempo para compreender as transformações da puberdade. Traçamos algumas distinções preliminares sobre o ideal do eu e o eu ideal, situando o primeiro na via do simbólico e dirigido ao Outro e o segundo na via imaginária do querer ser, que daria margem à formação das fratrias, tribos, grupos. Este assunto foi aprofundado por  Sandra Landim que nos apresentou suas articulações, retiradas do Esquema R de Lacan, em paralelo com as primeiras leituras do caso clínico “Otra marca posible”*.

Sandra Landim apresentou o esquema R de Lacan, como está no texto “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose” (LACAN, 1959. p. 559) para falar do narcisismo e de como ele faz surgir o ideal do eu e o eu ideal. A partir da apresentação da Sandra discutimos sobre se o ideal hoje ainda orienta escolhas e atos, questão importante para este período da vida e para pensar a passagem ao ato.

Márcia Muller comentou sobre a tendência à procrastinação, levantando questões sobre o mundo atual e a multiplicidade das opções possíveis como facilitadora da procrastinação, a se adiar um momento de concluir da adolescência. Márcia deu também destaque ao modo como os jovens lidam com o saber atualmente, à influência do Google e à expressão de Miller de que “osaber está no bolso”. Ao pular o Outro, como fonte do saber, a teoria do complô ganha relevo respondendo à desidealização do Outro e a forma degradada e nociva que surge quando se evoca o Outro como saber ou como ordem.

Rejane Nunes tratou das mutações na ordem simbólica fazendo alguns paralelos com a Saúde mental. Perguntou-se se o enfraquecimento do simbólico corresponderia ao que se passa na psicose.

Camila Drubscky comentou um momento em que Ondina teria chamado atenção para a importância que a dor tem no processo da tatuagem. Diferente de épocas passadas, atualmente, não se estabelece tanto uma relação entre a figura tatuada e uma historia/cena da vida do sujeito. O que tem aparecido com maior frequência  é  a valorização da dor. Daí a possibilidade  de pensar a tatuagem como uma tentativa de constituir um corpo, fazer corpo quando as bordas do corpo estão imprecisas.

 * LAURENT, É. y otros. Cuerpos que buscan escrituras. Buenos Aires: Paidós, 2014. Os textos são: apresentação do caso – “Caso 1- Otra marca posible” e Discussão sobre o caso 2. Caso 1 “El impulso a cortarme” o hacer magia”.

** Freda, Damasia Amadeo de. “Prólogo para Damasia”. In: El adolescente actual. Nociones clínicas. San Martin: Unsam Edita, 2016

Bibliografia:

FREUD S. “As transformações da puberdade” (1905). In: Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, parte III. ESB, volume VII. Acessível por: https://www.passeidireto.com/arquivo/4156685/freud—ensaio-iii—as-transformacoes-da-puberdade-1905

LACAN, J. De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998

LACAN, J. (1974/2003) “Prefácio a ‘O despertar da primavera’”. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, pp.557-559.

MILLER, J.-A. Em direção à adolescência. Acessível por: http://minascomlacan.com.br/blog/em-direcao-a-adolescencia/

O que não se vê: crianças fascinadas, seduzidas e educadas pela tela

Por Maria do Rosário Collier do Rêgo Barros

Grupo de trabalho: Analícea Calmon, Astréa da Gama e Silva, Bibiana Poggi, Cristina Vidigal, Fátima Sarmento, Fábio Malcher, Jorge Carvalho, Maria Inês Lamy, Maria Elizabeth da Costa Araújo, Valéria Ferranti

“Enquanto tal, a virtualização não é nem boa, nem má, nem neutra (…). Antes de temê-la, condená-la ou lançar-se às cegas a ela, proponho que se faça o esforço de apreender, de pensar, de compreender em toda a sua amplitude a virtualização”. Pierre Lévy[1]

O título desta conversação, “Crianças fascinadas, seduzidas e educadas pela tela”, nos convida a pensar os diferentes efeitos sobre as crianças do encontro com as várias modalidades de telas que lhes são oferecidas na televisão e em seus computadores, celulares, ipads, iphones, etc. Para situar esses efeitos precisamos levar em conta a mutação que a criação desses gadgets produziu na civilização, e em seguida verificar o uso que as crianças têm feito deles, lembrando que isto vai depender em grande parte da maneira que seus interlocutores: pais, professores e até mesmo colegas, encontrarão para acolher e estar presentes na relação delas com a tela.

O analista, por sua vez, será aquele capaz de verificar o uso singular que cada criança faz da tela, e assim localizar como esta entra em jogo na construção da fantasia e do sintoma, ou funciona, em algumas situações, como obstáculo para essa construção. É preciso também não esquecer os casos em que a tela serve como recurso, como mediação para tratar o excesso de presença do Outro[2].

Em 1914 Freud[3] nos apresentou o “quarto da criança” como um espaço onde esta encontra a presença do outro parental e seus objetos pulsionais. Lacadée[4] resgata esta expressão e comenta que no seu quarto a criança cria um espaço, no qual apreende seu corpo como objeto de gozo, mas também pode se apreender como elemento à parte, isolando-se e vivendo seu ser como objeto rejeitado.

No tempo da inexistência do Outro, a criança pode encontrar, no uso dos gadgets que hoje fazem parte do seu quarto, novas formas de recuperação do seu gozo e também a possibilidade de se libertar do excesso do Outro.

Por um outro lado, a fantasia se constrói a partir da emergência de uma questão que não tem resposta nem nas imagens e nem nas representações. Sua construção, para a qual cada um tem que dar de si, vai servir ao mesmo tempo de tela e enquadre para velar e cingir um ponto de real que se apresenta de várias maneiras na relação do sujeito com sua imagem, com o Outro e com seu corpo.

O encontro com a imagem no espelho, como indicou Lacan, é um momento privilegiado de aparecimento de um ponto não especular que convoca a uma construção. É a partir daquilo que não se vê que a imagem, que aparece no espelho, articula o real do objeto perdido com os significantes veiculados pela fala do Outro. O simbólico, nessa operação, atravessa o imaginário e ao mesmo tempo em que faz uma articulação, produz uma escansão entre o que é dito do sujeito e a imagem que dá unidade e consistência ao seu corpo. A imagem atrelada ao significante ganha assim a dimensão de semblante, que ao mesmo tempo indica e vela o real em jogo. A questão que se coloca é como cingir na relação com a tela esse ponto de real, aquilo que não se vê, ao olhar e ser olhado.

A profusão de imagens oferecidas pelas telas termina por constituir um muro[5] que mascara a dimensão do olhar. Ao mascará-la tenta eliminar a hiância estrutural entre olhar e ser olhado, motor do terceiro tempo da pulsão, “fazer-se olhar”. É essa hiância que a fantasia vem circunscrever, permitindo que se possa circular pelas posições de sujeito e de objeto, graças ao impossível que ela vem velar, mas que é ao mesmo tempo o que a sustenta. Será que a fantasia faria assim limite à transparência, ao tudo ver como pretensão do momento atual? Ou será que os avanços tecnológicos da ciência chegarão a volatilizar até mesmo esse recurso da fantasia, que se apoia no que há de mais singular na relação de cada um com seu gozo? Esta relação, como sabemos, se refere à forma como cada um se virou para lidar com o inevitável de uma perda que, de saída, convocou o sujeito à criação de sua realidade psíquica. A maneira como os gadgets vêm encarnar o mais-de-gozar tentando manipular a causa de desejo poderia nos fazer acreditar ser possível eliminar a fantasia. Mas o que está talvez em jogo é uma “decadência ficcional da verdade”[6], obrigando-nos a recorrer ao real como o que não tem estrutura de ficção. Cabe ao analista apontar o real, não permitindo que a verdade seja absorvida pela ficção, resgatando assim o não todo da verdade. Esse é o caminho por onde o analista pode favorecer a transformação do mais-de-gozar em causa de desejo, tão importante hoje nas diversas relações que a criança pode ter com a tela sem se deixar escravizar por ela.

A política do olhar, que reina atualmente, tem a pretensão de transformar o mundo em um todo visível, desconsiderando que existe no campo da visão um nada ver ou um ver nada, como Lacan tão bem desenvolveu em seu Seminário XI, ao diferenciar o olhar como objeto a, da visão. A arte, diferentemente da ideologia da ciência, mostra o que não se vê. Ela resiste, assim como a psicanálise, a essa política do olhar a serviço da vigilância, que se torna cada vez mais generalizada.

Acreditar na transparência é reduzir o sujeito a um homem sem qualidades, a uma cifra a ser usada e manipulada nos cálculos estatísticos.

As telas são usadas cada vez mais com essa pretensão. Ao olhá-las, acreditando poder ser sujeito desse olhar particularizado, estamos sendo olhados por um olho anônimo que nos transforma em cifras a serviço do mercado de trocas e vendas. Essa pretensão produz, no entanto, um mal estar crescente causado pelo uso da máquina que “reconfigura o mundo e tem efeito de invasão e saturação”[7].

Para nos situarmos nessa conjuntura, será necessário considerar a função do olhar, não como uma atividade do sujeito que olha, mas como objeto, como aquilo que faz mancha no espetáculo do mundo, olha sem olhar-me e me fascina[8]. Ernesto Derezensky, citando Lacan, sublinha que o olhar pode ser signo de um desejo que permanece como uma incógnita. Para Lacan, o olhar poderá tanto sustentar como devastar uma existência[9], dependendo de como ele vai manter sua relação com o vazio nesse ponto mesmo de opacidade do olhar – nada a ver. Quando essa relação se perde, poderá haver uma quebra no enquadre que sustentaria um impossível de ver, e o olhar se transforma em devastação. Quando o olhar aparece na tela, sem que se possa lhe dar o enquadre da fantasia, é preciso lançar mão de outros recursos para evitar ser sugado pelo abismo ilimitado das imagens. Esta é nossa aposta: que mesmo diante da profusão das imagens, será possível sempre ressaltar a relação ao vazio. Caso contrário, o fascínio “pode ter como efeito parar o movimento e literalmente matar a vida”[10].

A questão que nos orienta neste trabalho é a seguinte: como as crianças têm se virado com esse mundo reconfigurado pelas telas que lhes são oferecidas, já simulado pelo cálculo[11], que tem muitas vezes efeitos infernais? Algumas delas sucumbem a esses efeitos, ao ficarem escravas de suas ofertas em programas de televisão e jogos eletrônicos.

Os sintomas das crianças tanto podem ser lidos como formas de resistência (um apelo ao Outro) quanto de desistência (um se entregar sem limites). Mas, nessa última alternativa, de quem seria a desistência: da criança ou do Outro? Mesmo quando elas se entregam aos excessos, fascinadas pelas telas, ainda assim podemos pensar tratar-se de resistência, ao causar tumulto e perturbação em seu entorno. Dessa forma convocam, mesmo sem se darem conta, um bom entendedor para quem poucas palavras ou muitas imagens bastam para trazer de volta o sujeito ao campo da fala e da linguagem, que pode incluir o corpo, devolvendo a ele seu lugar com todo o mal-entendido que lhe é próprio.

Um simples clic no controle remoto é suficiente para conectar as crianças ao mundo das imagens. Estar atento ao uso que cada criança faz dessas imagens e à maneira como ela fala disso é o que vai permitir o corte entre o virtual e o pulsional, dando lugar ao que há de único em suas construções.

Os quatro casos apresentados em nossas discussões preparatórias nos permitiram apreender como essas crianças e adolescentes iam buscar nas imagens da tela algo para lidar com a estranheza de um gozo em seu corpo assim como com o opaco do desejo do Outro que operavam em seu sintoma.

O festival Anima Mundi de 2015 trouxe vários filmes que tratam desse assunto. “O filme do americano Dan Lund, diretor de “Aria for cow”, diz que não quis retratar “as máquinas como vilões”, e sim “a desconexão entre um homem e seu entorno. No filme, um ordenhador imerso nas músicas de seu iPod tira leite de uma vaca praticamente sem se dar conta da presença do animal. A vaca, então, numa contorção narrativa, protagoniza um número musical em que exige respeito do fazendeiro” (Jornal Globo de 6/7/15). A arte resiste, nos oferecendo uma oportunidade para tomar distância da submissão à máquina. E o analista do século XXI não perde essa oportunidade, na medida em que vai privilegiar, na sua escuta e nas suas intervenções, os enigmas produzidos pelos pontos de real que através da tela não se pode ver.

* Texto produzido para uma das Conversações que tiveram lugar no VII Enapol – Encontro Americano de Psicanálise da Orientação Lacaniana, “O Império das imagens”, em São Paulo, ocorrido em setembro de 2015: http://oimperiodasimagens.com.br/pt/.

[1] Lévy, Pierre: O que é o virtual? , Editora 34, São Paulo, 1996

[2] A tela tem sido um recurso importante utilizado por crianças autistas e psicóticas para suportar a presença do Outro e permitir o contato.

[3] Freud, S. Algumas reflexões sobre a psicologia do escolar – 1914, Vol. XIII

[4] Lacadée, P. – A bússola do sim e do não – Cien Digital 16; agosto 2014

[5] Wajcman, Gérard: L’oeil absolu, Éditions Denoël

[6] Miller, J-A: El Otro que no existe y sus comités de ética, Paidós, Buenos Aires, 2005, pg. 15.

[7] Miller, Jacques Alain: “A era do homem sem qualidades in Revue de la Cause freudieene n. 57, pg. 92

[8] Derezensky, Ernesto: “O percurso de um olhar”, na Scilicet Los objetos a en la experiência psicoanalítica, verbete Olhar.

[9] Lacan, Jacques: Seminário, Livro 16 “De um Outro ao outro”, cap XVI pg. 245 , Jorge Zahar Editor:

[10] Lacan,Jacques: Seminário Livro 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise: , Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1998, pg. 114.

[11] Triclot, M : Philosophie des jeux video, Paris, editions la Découverte, 2011,pg. 50, citado por Giraudel, Agnès in Le corps avec et sans l Autre, Scripta, pg 49.

[12] Lacan, Jacques: Le Séminaire, Livre 16, De um Outro ao outro, capítulo VII (Introdução à aposta de Pascal) e capítulo VIII (O Um e o pequeno a) Zahar Editor, 2008.

Relatório do período 2012-2015

De agosto de 2012 a dezembro de 2015, o Núcleo sobre a Lógica do Contemporâneo, Psicanálise e Cultura, investigou pontos cruciais da clínica psicanalítica nos dias atuais. Foi importante marcar que o psicanalista só adquire legitimidade em sua prática se ele considerar a subjetividade de sua época. Esta questão foi discutida tomando como eixo “o declínio social da imago paterna” [1], tal como prognosticou Lacan em 1938, bem como a ênfase do sujeito no lugar de gozo e as intervenções no real do corpo.

A pesquisa do Núcleo iniciou a partir da discussão do livro Los 4 discursos y el Otro de la modernidad, de Marie-Hélène Brousse[2]. A autora se remete ao mais além do Édipo desenvolvido por Lacan em O seminário 17 e às consequências deste conceito ao abordar o lugar da psicanálise no discurso do mestre contemporâneo. Lacan ensinou que o discurso do mestre organiza o discurso do inconsciente, já que em ambos o agente é o S1, por isso mesmo são discursos que se equivalem. Aconteceram mudanças ao longo do ensino de Lacan, pois a partir de O seminário 17 a interpretação não se efetua mais a partir do pai edipiano, e sim a partir do S1, definido mais tarde, em O Seminário 23, como o nome do sinthoma. Lacan interpreta o discurso do mestre contemporâneo a partir dos discursos do capitalismo e da ciência.

Brousse elucidou que a psicanálise sustenta o para além do Édipo porque se antes fornecia uma resposta ao todo produzido pela universalidade da lei do Outro, na atualidade, ao contrário, estamos numa época onde O Outro não existe, e o que fascina é o não-todo. Nessa direção ela propôs superpor as fórmulas: saber fazer com seu sintoma e saber fazer com sua imagem. Sua tese é de que não estamos mais no tempo da tragédia, e sim no tempo de ironia e irrisão, uma comédia que transcreve a ruptura com o Outro que não existe.

Marie-Hélène Brousse se valeu de obras literárias para mostrar uma leitura do pai na contemporaneidade, distinta da leitura edípica. Focalizou o não-todo do Nome-do-Pai e assinalou a pluralidade dos nomes. Por exemplo, o livro A Dália Negra, de James Ellroy, fala da decomposição de um corpo feminino em um crime. O autor revela um estilo literário típico em destroçar a língua nos cortes das frases, fazendo com se possa acompanhar a diferença entre o enunciado e o movimento da enunciação, mas sem que se possa constatar a atribuição subjetiva.

Outro exemplo de Brousse[3] é o livro de Thomas Bernhard, Mestres Antigos, que se caracteriza por um estilo musical, pois constrói um escrito como se fosse uma fuga de Bach: pode-se encontrar na mesma página muitas vezes uma mesma palavra, mas com um deslocamento de sentido, como se seguisse um movimento musical de fuga[4].

Finalmente, para mostrar as consequências do Outro da modernidade, Brousse exemplificou o Outro através da pintura de Francis Bacon (1909-1992) retratando o Papa Inocêncio X sentado numa cadeira, pintura original de Diego Velásquez datada de 1650. Nela, o corpo se apresenta como um retrato com padrões e limites, enquanto nos esboços de Bacon aparece como figuras sem moldura, sem padronização, sem limites, expressando o horror.

 Seguindo a nossa pesquisa trabalhamos a conferência de Jacques-Alain Miller (2004) “Uma fantasia” [5], que aborda a cultura após o declínio do significante Nome-do-Pai. Amparado no Lacan de “Radiofonia”, assinalou que ascensão do objeto a liga-se ao imperativo de gozo imposto pelo discurso capitalista e à queda dos ideais que sustentavam a crença no Pai. Por isso a “fantasia” de Miller foi a de propor o discurso do psicanalista “como estrutura do discurso hipermoderno da civilização”, pois “o discurso da civilização hipermoderna tem a estrutura do discurso do analista”, uma vez que ambas – a civilização e a psicanálise –, já não tem mais uma relação de avesso/direito, “essa relação é, antes, da ordem da convergência” [6].

A moral civilizada mencionada por Freud permitia aos sujeitos desamparados ter uma bússola – pois a moral inibia a transgressão e funcionava como interdição ao gozo, – hoje os sujeitos encontram-se desbussolados.  Nessa direção trabalhamos o Seminário de J.A.Miller, “O Outro que não existe e seus comitês de ética” a partir da pergunta: o que ocorre quando o Outro não existe?

Para concluir trabalhamos o texto de Miller[7] “Progressos da psicanálise bastante lentos”, fundamental para acompanhar as mudanças na teoria de Lacan referente ao gozo, à fantasia e ao sinthoma. Miller esclarece que antes o desejo era criado pelo interdito, tendo origem edipiana, enquanto no contemporâneo o Outro é o próprio corpo[8]. E o gozo não está mais ligado à interdição, ele é um acontecimento de corpo, cujo valor é o de se opor à interdição. O que conta é a satisfação que a pulsão obtém em sua trajetória que não depende do interdito. Tudo se transforma do gozo do Outro para o gozo do corpo.

Encerramos nosso percurso de estudo com a discussão dos textos chaves para o Congresso da AMP, em abril de 2016. Trabalhamos “O corpo falante e o inconsciente no sec.XXI”- argumento de Miller para este congresso e o texto de M. H. Brousse, “Corpos lacanianos: novidades contemporâneas sobre o Estádio do Espelho”. (Revista Opção Lacaniana on line no15)

Outras referências bibliográficas citadas e/ou comentadas:

BROUSSE, M.-H. (2002). O inconsciente é a política. São Paulo: seminário EBP-SP, 2003.

______________.(2012). El Superyó Del Ideal hacia el objeto perspectivas políticas, clínicas y éticas.Córdoba Babel Editorial

CLAUDEL, P. (1908-1916). L’otage, suivi de Le pain dure et Le père humilié. Paris: Gallimard, 1990.

LACAN, J. (1960-1961) O Seminário, livro 8: a transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992.

_________. (20/11/1963).  Nomes-do-Pai. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.

_________. (1969-1970). O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992.

_________. (1974-1975). “RSI”. Seminário 22, não publicado, tradução desconhecida.

_________. (1975-1976). O seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.

Miller, Jacques-Alain.\ colaboração com Éric Laurent: “O Outro que não existe e seus comitês de ética” (1996-97, Paidós, 2005),

[1] LACAN, J. (1938). “Os complexos familiares na formação do indivíduo”. Em: Outros escritos. RJ: Jorge ahar Ed., pp. 66-67.

[2] BROUSSE, M.-H. (2000). Los 4 discursos y el Otro de la modernidad. Cali: Ed. Letra, Grupo de Iinvestigación de Psicoanálisis de Cali.

[3] Ibid, pp. 99-103.

[4] Ibidem, p. 99.

[5] MILLER, J.-A. (2004). “Uma fantasia”. Em: Opção lacaniana n. 42. São Paulo: Eolia, janeiro 2005.

[6] Ibid, p. 9-10.

[7] MILLER, J.-A. (2010-2011). “Progressos da psicanálise bastante lentos”. Em: Opção Lacaniana n.64, dezembro de 2012, pp. 9-67. .

[8] Ibidem, p. 63.

Rumo à adolescência

Desde o segundo semestre de 2015, o Curumim se lançou ao trabalho de pesquisa sobre a adolescência, tema de todos os Núcleos de Psicanálise com Crianças da NR Cereda, auxiliado pelo texto de Jacques-Alain Miller que encerra a III Jornada do Instituto da Criança, cujo título é: “Em direção à adolescência”.

Nesse texto Miller retoma as bases desde Freud, sobre a puberdade, o que é ainda vigente, indo até o novo recolhido entre vários autores que nos apontam para os desafios que temos que enfrentar, pois os novos adolescentes são frutos desses desafios.

As bases

A adolescência é uma construção feita de significantes e de real; o real em jogo nela se articula com o apoio dos semblantes. O semblante compreende imaginário e simbólico.

Momentos cruciais:

  • Na puberdade, que é a saída da infância, ocorre o encontro com um objeto de desejo novo: o corpo do Outro.
  • É uma escansão sexual, ou seja, é o tempo de compreender o que foi antecipado na infância, “as predisposições, reconhecíveis desde a infância, à posição feminina ou à masculina”.
  • O ponto de basta e a conclusão no momento em que o desejo se reconfigura pelos ideais. É quando algo de fora, do adulto, se introduz no jovem. Lacan fala da “imisção ou imiscuição” do adulto no adolescente.

O novo

  • A procrastinação: diante dos muitos objetos possíveis através do mundo virtual, o sujeito adia ao infinito o encontro com o impossível.
  • O auto-erotismo no jogo com o saber, sem passar por estratégias com o desejo do Outro: como o conhecimento é acessível através da internet, não há aposta com a bolsa ou a vida, uma vez que a vida está no bolso.
  • Realidade imoral: quando o adolescente precisa largar a mão dos pais para se tornar adulto, muitas vezes não encontra um Outro e, se o encontra, este tem a face tirânica, degradada ou nociva como o Outro do complô.
  • Há um déficit de respeito, os adolescentes dizem: “quero ser respeitado”. Mas quem é o Outro que o respeitaria? Retorna o que Miller chama de demanda vazia: “Como seria bom ser respeitado por alguém que respeitássemos”.
  • E, finalmente, porque as mutações na ordem simbólica são tão agudas, o pai deixou um vazio, a tradição religiosa ou a dos chamados “bons costumes” se perderam, é que sobrou espaço para uma tradição muito demarcada como a islâmica. Sem pai, sem perdão, só vingar, só vencer.

Mas não esqueçamos das três palavras necessárias que nos aponta Lacan em “A Juventude de Gide”: a palavra que interdita, a palavra que protege e a que humaniza (e autoriza) o gozo, o desejo, para enlaçá-los com o amor.

Cleide Maschietto e Isabel Bogéa Borges

Comentários sobre o Eixo 4 da Manhã Clínica das XXIV Jornadas Clínicas da EBP-Rio e do ICP-RJ

Os trabalhos apresentados na manhã clínica pelo eixo 4 nos convocou a pensar o mal-entendido do corpo “tomado como objeto, artefato ou mecanismo, em suas partes”. Nos encontramos, assim, com os impasses da clínica cotidiana, nos mais diversos dispositivos, o que nos trouxe uma dimensão importante da psicanálise em sua conexão com a cidade. Seja em ONG’s, na Saúde Mental, no Hospital, na Internet, nos esportes, ou até mesmo no consultório particular, a discussão suscitada pelos trabalhos apresentados circulou pelo que há de mais íntimo à prática psicanalítica: o encontro.

O que ocorre quando um sujeito encontra um analista? Ou ainda melhor, o que ocorre quando um analista supõe um sujeito? Haveria um mal-entendido também aí? Onde a psicanálise, encarnada pela presença de um analista convoca um sujeito a advir onde ele já não é mais quase suposto? Seja por demanda própria ou pela contingência institucional?

Os trabalhos apresentados apontaram as encruzilhadas institucionais em suas dimensões de lugares de resposta, e muitas vezes, resposta social à problemas tipicamente clínicos,  como também apontaram para a questão da disponibilidade do analista em ouvir, mas não só. Pois sabemos que para além da demanda ha desejo.

Esses corpos adoecidos ou doloridos, atletas ou obesos, infantis, toxicômanos, estão mal-entendidos nisso que Laurent chamou de “delírio da normalidade”. Nomeação que nos remete às urgências, usos e ideais que irrompem à partir desse corpo e que o atravessam e o marcam. Corpo que vêm à clínica, falado, estranhado, condenado, questionado, numa época em que, franqueados pelo discurso médico/científico, os imperativos superegóicos parecem prevalecer na ordem do dia, apontando toda a sorte de condutas e soluções que implicam diretamente esse mesmo corpo.

A presença do analista, no avesso dessa maré, vem apontar que há furo, ou ainda, que é preciso haver furo nessa produção maniaca de saberes ideais. Ali onde busca-se evitar, encobrir, solucionar, o mal-entendido do corpo, o analista o escuta, sublinha, o põe a trabalho numa lógica que é outra.

Se propõe a fazer coisas num movimento oposto ao da mania contemporânea, se dá ao artesanato de fazer a coisa psicanalítica insistir.

Como apontou a mesa – Ressonâncias do Corpo Hoje – o analista está na cidade e trabalha com essa dimensão do invisível, do impossível, que não cessa de se inscrever. ‘É convocado a um fazer, que dialogue com os discursos de nossa época’, e a recolher no um a um da clínica seus efeitos e desdobramentos.

Andrea Marcolan (Fundamental 2014) e Maira Dominato Rossi (Fundamental 2014)

Comentários sobre o Eixo 2 da Manhã Clínica das XXIV Jornadas Clínicas da EBP-Rio e do ICP-RJ

Os trabalhos apresentados no Eixo 2 da manhã clínica nos permitiram tocar importantes questões em torno dos Usos do corpo. O que chega à clínica hoje se tornou sensível nas três mesas que compuseram o eixo: que uso fazer desse corpo, muitas vezes estranho, monstruoso, sempre submetido ao movimento pulsional, que não vem com manual de instruções? Como se servir dele? Seja na montagem de um corpo de mulher, no funcionamento de um corpo de homem ou mesmo nos casos em que esses limites não estão em jogo, observamos sujeitos às voltas com suas tentativas de encontrar recursos para lidar com o mal-entendido. O que pode a psicanálise operar nesse ponto?

Nas saídas pela neurose o mal-entendido do corpo aparece como radicalidade na impossibilidade da relação. Há sempre Outro que guardaria a verdade sobre o uso correto do corpo e da satisfação do parceiro, como se a concordância entre identidade e imagem corporal se passasse pela via pedagógica. Para tanto, vemos tentativas frustradas de reunir pedaços dos corpos de outros e, com um desenho ideal, fazer existir a relação sexual. Aqui, a fala em análise pode fazer furo nessa crença, pausa na busca desenfreada pelo ideal e pela completude.

Nas psicoses, por outro lado, onde os pontos de apoio e referência são escassos, é preciso boa dose de criatividade para sustentar-se no discurso. Em mundos onde tudo escapa ou onde tudo é cheio, sem furos, encontramos saídas que podem afastar do real da relação, mas que permitem a construção de semblantes para fazer circular estes corpos. O analista, por vezes, poderá servir de apoio com seu próprio corpo: vimos propostas de parceria onde a voz ou o olhar podem operar como molduras para os corpos destes sujeitos, recursos simbólicos encontrados para moderar a angústia.

De todo modo, no trabalho de análise, seja no sentido de operar cortes ou amarrações, é possível inventar formas de sustentar-se frente ao olhar do Outro para valer-se daquilo que, no corpo, escapa. “Nunca se é aquilo que se tem” -, nos disse Marina Recalde em sua conferência na sexta-feira – mas para que esse corpo não se apresente totalmente à deriva, à revelia do sujeito, é importante poder modular “algo do corpo que não se deixa capturar”. Nos casos clínicos apresentados pudemos ler o trabalho dos analistas neste sentido. Cuidadosamente comentados, os casos convergiram para a discussão sobre a importância da hipótese diagnóstica. Concluiu-se que é essencial sustentar essa discussão e seus impasses, sem renunciar a ela, pois a direção do tratamento não está desarticulada dos usos do corpo que poderão surgir em cada caso.

Marina Sereno (Turma 2015)

Comentários sobre o Eixo 1 da Manhã Clínica das XXIV Jornadas Clínicas da EBP-Rio e do ICP-RJ

A primeira mesa, com o título ‘O ilegível do sintoma e a opacidade do gozo’, apresenta questões da clínica nas dimensões da voz, som, escrita e leitura. Voz/som que provoca acontecimento de corpo, o mal estar do corpo, um corpo que padece além da dimensão biológica. Escrita/leitura que aparece como endereçamento possível à inscrição subjetiva. O que convoca o analista às questões paradoxais da sua formação: como ler o sinthoma e identificar o lugar de gozo no corpo? Como avançar do objeto a ao sinthoma, para que apareça a alteridade radical, aquilo que não se lê, o que não faz significante na cadeia?

O tema desta mesa convoca a pensar: O que muda na ética da psicanálise de hoje? Quais são os limites da prática? A verdade mentirosa e o gozo, o avanço dos conceitos e sua inscrição em cada caso, oferecendo a possibilidade de leituras ao analista e analisando. A escrita como expressão do que se lê e o que se (in)escreve numa análise. A interrupção do analista opera, num determinado momento da análise, e convoca a pensar sobre a interpretação hoje. Entender os deslocamentos do sentido para o gozo, como também pensar se a fantasia mantém a sua vigência, se pode servir como ferramenta para as neuroses. Se sim, como isso se isso dá? A verdade e o gozo, hoje, apresenta o deslocamento do conceito de inconsciente (Freud) para o Falaser (Lacan) – da verdade ao gozo.

A segunda mesa ‘um olhar sobre o narcisismo’ apresenta o singular modo de viver o mal entendido de um corpo. Como um adolescente pode se virar com o seu corpo em análise? Do ideal do eu ao eu ideal e o narcisismo. O que se configura do corpo na adolescência parece ser uma entrada do adulto na criança. Miller no seu livro em direção à adolescência, diz: o adolescente nega o real para viver os signos. E na velhice há um narcisismo terciário? Envelhecer doí, a imagem especular que convoca o ideal do eu e eu ideal. O real, imaginário e simbólico de um corpo que envelhece. Cita Clarice Lispector, ‘em que espelho ficou o rosto?’. O resto e a dor que traduz esse pulsar que está prestes a cessar. A analista interroga-se sobre a possibilidade do narcisismo terciário, mas o inconsciente, como diz Freud, é infantil. E também não acontece a morte de um corpo infantil na adolescência?

Através do filme ‘O abutre’ nas imagens que apresentam semblantes de corpos, imagens de traços traumáticos, a pregnância de um olhar que vê os fragmentos de um corpo e indaga o que é ter um corpo. Do espetáculo do horror a indagação do que não se vê. O corpo revisitado, a mídia e o falaser, faz indagar sobre o lugar do gozo do corpo na sociedade atual.

Pensar o corpo seja nas imagens despedaçadas, apresentadas no filme ‘abutre’ – do gozo do um que não incluí o outro, mas que produz efeitos naquele que vê as imagens. Seja no corpo da adolescência, um tempo de reafirmar a escolha sexual, dar conta das transformações de um corpo que provoca o desconhecido – Quem é esse adulto em mim? Uma demanda do que pode ou não ser formulado do ilimitado do amor. Seja na velhice que urge o anunciado da finitude de um corpo, isso também se dá noutros tempos da vida? As pessoas envelhecem, mas o sujeito envelhece? A dor de existir nos vários tempos da vida, a dor do dente cabe dentro do orifício – um olhar sobre o narcisismo. Ir além, entre doer e doar há uma escolha do sujeito. Já temos muito que se haver com o narcisismo primário e secundário, independente da idade cronológica, como diz Freud, o inconsciente é infantil. O corpo como o lugar do trauma, sempre escapa. A aposta do analista no tratamento do que excede no gozo está para além do significante ser adolescente ou ser velho, traduz o diferente lugar da psicanalise que não obtura como o geriatra/pediatra, deixando aberto o buraco, a ferida que doí e pulsa. A caverna psicológica de cada um e suas marcas no corpo, a intervenção do analista padece com a sustentação do que é possível em cada tempo de analise.

A terceira mesa revela os modos de tratamento do gozo na transferência. A obra de Pina Bausch como uma possibilidade de um corpo na psicose que evoca o caso Joyce (Lacan) de um enlaçamento na produção subjetiva. Como o mistério da libra de carne, extração do objeto do mundo como resposta subjetiva na construção do fantasma marca cada corpo? O percurso que o trabalho chega quando se pensa o corpo na psicose – Como Joyce e Pina se servem da arte para depois achar o saber que recolhe? Certas coisas se dizem em palavras, outras só podem ser sentidas ou por movimentos como a dança ou escritas de fragmentos vivos. Tem certas coisas que não sabemos como ir e aí dançamos, escrevemos, pintamos… Injetar a vida na vida!

Nunca me esquecerei desse acontecimento

Na vida de minhas retinas tão fatigadas.

Nunca me esquecerei que no meio do caminho

Tinha uma pedra no meio do caminho

No meio do caminho tinha uma pedra.”

Carlos Drummond de Andrade ·

O tempo é lógico e não cronológico, já dizia Lacan. As diferentes durações em análise, algumas bem recentes e outras bem longas, se inscrevem em recortes/leituras possíveis do analista. O desejo e aposta na travessia e o seu limite na fantasia. Qual o tempo de final de analise? O curioso quando o sujeito fala, insiste, não falta e repete a pergunta em cada encontro amoroso – Já está bom? Quem permite o final de um percurso? Do primeiro Freud ao último Lacan e leituras de Miller e outros, o lugar do analista para cada sujeito fazer a sua travessia. Os cuidados da clínica atual, um acontecimento de corpo e gozo, só sendo possível na condição de transferência do suposto saber num tempo que não é cronológico é lógico de cada um.

A convocação do nome do pai e a cisão, um drama marcado pelo S1. Uma experiência vivida, também por Lacan, na cisão da escola EBP com a AMP e representada pelo ‘Lago do Cisne’. No final a morte anunciada é apresentada na fantasia e no real, se constrói numa travessia que leva tempo, o tempo de cada um. A função da dança, a arte no resto, aquilo que falta e insiste em cada encontro com o desencontro. O corpo revisitado permite o delírio, o sinthoma é um acontecimento de corpo, a corporificação da entrada da linguagem no corpo.

O sujeito falaser e sua fuga errante num gozo sem sentido, um corpo e o seu lugar de dor na busca de sentidos, as escolhas de objeto de amor, a construção de um corpo que se apresenta estranho e provoca sensações fora de controle. O corpo seja na adolescência ou velhice, e suas marcas de um acontecimento de corpo que insiste e padece na imagem especular do ideal do eu e eu ideal. A libido e os objetos perdidos à urgência de uma vida que se esvai nas imagens de corpos sem vida, num gozo que se reproduz num excesso em que cada um há que chegar à dose certa do seu resto.

Ana Cristina Aguiar Vilhena de Carvalho (Turma 2014)

* As menções que pudessem identificar os casos clínicos foram retiradas em nome do sigilo dos pacientes.

Comentário sobre a mesa redonda: A obra prescinde do artista

O que seria uma mesa de discussão se torna uma instigante meia roda de conversas e questionamentos com o tema “A obra prescinde do artista”. Fomos apresentados a obras de Adriana Varejão, iniciando, assim, uma discussão acerca das articulações entre psicanálise e arte. A própria construção da identidade visual da jornada traz “Trois petites morts”, três muros brancos e limpos invadidos por cortes e feridas. Feridas estas que aparecem nas demais obras acompanhadas de manchas de sangue ou representadas por pedaços de carne, vísceras à mostra. O furo, no que estava coberto e velado por um muro, um revestimento de azulejos retos, brancos e limpos, nos remete à pele enquanto algo que vela o vivo e real de nosso próprio corpo. Ana Lucia Holck fala do azulejo branco como a pureza que reveste o vivo, representado pelas feridas.

Ao contrastar horror e belo através de sua arte, Varejão nos causa. Como disse Andréa Vilanova: “fratura nosso olhar e perturba nossas defesas”. A conversa girou em torno da impossibilidade de uma obra de arte representar o real, ainda que o possa presentificar em alguma medida. A obra que resiste a ser capturada por uma fotografia, apesar de não representar o real, é capaz de ressoar algo em seu espectador no momento do encontro. É certo que este encontro é marcado por algo de opaco, um infinito que os olhos não podem captar, mas este próprio inalcançável seria o mal-entendido que nos acompanha sempre em nossa jornada. Isso porque a arte toca um ponto de desconhecido em nós mesmos que remete ao desejo, suscita algo de um impossível de ser colocado em palavras.

As partes destruídas de um muro dando vazão às vísceras de um corpo vivo, corpo despedaçado e fragmentado. Pedaços de carne colocados em belas pinturas clássicas. A invasão de uma carne sem sujeito, carne desvelada pela pele. Manoel Motta traz a possibilidade de a arte contemporânea denunciar a pintura enquanto véu, dar fim a um espetáculo inaugurando na arte, porque não, uma nova ética e uma nova estética. Para Cristina Duba, esse movimento de desconstrução da arte contemporânea pode estar ligado a uma função de apaziguamento, pois, ao se deixar ferir, a obra de arte dá lugar ao furo, ao sem sentido, à opacidade do real.

Os muros então, que teriam a função de, assim como cortinas, servir de véu separando dentro e fora, o que está na frente e o que está por trás, são denunciados como puro semblante na medida em que, citando Stella Jimenez: “o horror não está nem dentro e nem fora, está no espaço impossível, entre as duas pedras do azulejo, como se fosse entre a pele e a carne”. Cabe então a nós, espectadores, nos deixarmos causar, ensinar e surpreender pela arte que se abre ao lugar do enigma e do espanto, assim como o faz a psicanálise.

Bárbara de Queiroz Sousa (Turma 2015)

Sobre a Conversação dos Núcleos e Unidades de Pesquisa do ICP

A primeira manhã da XXIV Jornadas Clínicas foi aberta por Maria do Rosário nos convidando a acompanhar os casos trabalhados pelos Núcleos e Unidades de Pesquisa. Cristina Duba nos apresenta o caso trabalhado na Unidade de Pesquisa Clínica e Política do ato, deixando-nos como questão uma indagação acerca da verdade, lembrando que a verdade não pode ser toda dita, pois o que está em jogo é a verdade do desejo, e nesse caso, é o desejo do analista que pode levar o sujeito a uma nova invenção, pois há algo de real que não pode ser dito.

Lenita Bentes comenta o caso apresentado pelo Núcleo de Psicanálise e Medicina, ressaltando o manejo do analista ao propor a objetalização da medicação à objetificação do sujeito, quando da posição de psiquiatra passa à do analista. O que o analista faz é apostar na transferência.

Angélica Bastos apresenta-nos um caso clínico trabalhado na Unidade de Pesquisa Práticas da letra, marcando o lugar do analista para sustentar a construção de uma suplência no caso de uma psicose atendida em um consultório na rua e depois em Caps. Alerta-nos sobre a ética do psicanalista na sustentação de um real impossível.

Vicente Gaglianone comenta o caso de uma criança do Núcleo Curumim, destacando o analista com seu corpo em jogo com o efeito de apaziguamento para o sujeito, permitindo a enunciação de um nome que possa fazer um contorno ao real.

Por fim, e após intenso debate, ficamos com a presença e fala de Marina Recalde, ao nos dizer que todos “são casos que despertam”. Penso que é o analista que se fez despertar em cada caso, pois como disse Marina Recalde “o que se escuta é o analista por todo o lado”.

Monica Marchese (Turma 2014)

Notícia do Núcleo de pesquisa

No encontro do dia 05 de outubro, o Núcleo se reuniu em torno da conferência “Falar com seu corpo”, de Jacques-Alain Miller (Opção Lacaniana nº 66, agosto 2013). A partir das constatações de que “a saúde mental não existe” e de que “cada um tem seu grão de loucura”, Miller nos fala da posição singular do analista frente ao discurso comum, o discurso de massa. O caráter ficcional do termo “saúde mental” reaparece quando se tenta, por exemplo, numa pretensa objetividade, expor um caso clínico como se fosse o de um paciente, sem levar em conta o laço transferencial com aquele que o escuta. O analista, diferentemente, está implicado no caso, sua presença produz efeitos, ele está “dentro do quadro” clínico, precisa pintar a si mesmo dentro deste quadro assim como Velázquez representa a si mesmo com o pincel na mão em sua tela “As meninas”.

Ao longo dos últimos anos, o discurso do mestre penetrou de maneira profunda a dimensão psi, a dimensão do “mental”, através, por exemplo, do fácil acesso aos psicotrópicos, da expansão da psicoterapia sob um modo autoritário, em se tratando sempre de uma aprendizagem para o controle. Se antes esse domínio escapava em grande parte aos governos, ele é atualmente objeto de regulações e exigências cada vez maiores. Essa progressão acontece paralelamente ao reconhecimento público da psicanálise, recolocando o desafio aos analistas de sustentarem sua posição remodelando sua prática em função do que lhes é requerido a partir do cenário atual sem abrir mão da sua ética.

Para a psicanálise, a única saúde mental que um sujeito é capaz de conseguir advém de certo exílio conquistado do discurso do Outro, advém do sintoma que uma vez esvaziado de seu sentido, nem por isso deixa de existir, mas vive sob uma forma que já não escraviza mais o sujeito. A psicanálise oferece, portanto, para aquele que nela aposta, acesso ao campo onde o mental se esvaece e deixa o real nu.

Lacan uniu com um laço essencial a verdade e a mentira, e apontou o campo que está para além da mentira do mental, a parte mais opaca do que Freud já nomeava como libido. Sendo assim, podemos observar, a partir da leitura de Miller, uma mudança no modo de se tomar o termo “desejo” na obra de Lacan: tomado como o que era irredutível à demanda, tal como pensado nos anos 50, o desejo deixa entrever agora sua face de “sentido”. O desejo, tal como no percurso de uma análise, passa também por uma deflação se apresentando agora como semblante que, como a relação sexual, é outra “verdade mentirosa”. Afirma Miller: “O desejo é o sentido e o semblante da libido, sua mentira mental”.

Outra passagem na obra de Lacan diz respeito à mortificação do corpo pelo significante. A partir do Seminário 20, é possível reconhecer que o significante não só mortifica o corpo, mas que nesta operação que recorta uma parcela de carne, esta última emerge numa palpitação que anima o universo mental. O significante não só mortifica o corpo, mas vivifica o gozo, ele marca o corpo com um vestígio inesquecível, um “acontecimento de corpo”, um advento de gozo que não volta jamais ao zero. Deste modo, como diz Miller, “o corpo não fala, mas serve para falar”. O que a psicanálise oferece para cada um é o horizonte de um saber fazer com esses gozos sem as muletas da fantasia, da tela.

Tatiana Grenha

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