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Sobre a Roda de conversa do Núcleo de Pesquisa Práticas da Letra

Renata Estrella 

Encerramos nossas atividades deste semestre – momento em que seguimos trabalhando as lições sobre a peça Hamlet do Seminário 6 – com uma instigante roda de conversa com Marcus André Vieira e Ram Mandil, contamos também com a participação de Andréia Reis. Nossos convidados puderam trazer algo do encontro de membros ocorrido em Inhotim (abril de 2017) a partir de algumas das nossas inquietações. A conversa partiu de uma questão sobre o desejo, lido por Lacan em Hamlet de forma nova e que abre para uma discussão sobre as relações entre fantasia e sinthoma.

Para Ram, Lacan se pergunta no Seminário 6 como o sujeito vive a pulsão tendo atravessado a fantasia, daí uma aproximação possível entre a narrativa de Shakespeare e a escrita de Joyce, lidas na perspectiva do final da análise. Em Joyce, não aparece na análise de Lacan a questão da fantasia, sendo o sinthoma uma forma de nomeação que não visa o sentido. Somos capturados pela obra de Joyce, há uma transmissão que não é pela identificação, daí a proposta de Marcus André de pensarmos o ato. O ato faria um escoamento de gozo que pode suscitar, ou não, uma nomeação. Pensando, então, o ato em Hamlet, o que parece é que ele só pode se deparar com o desejo a partir da circunscrição simbólica de uma perda real do objeto de onde surge um caroço de real na cena da fantasia que o empurra a agir.  Seguimos, assim, ao próximo semestre com algumas questões, entre elas, o estatuto do objeto na fantasia e no sinthoma e a relação entre desejo e ato, acompanhando o que Lacan traz no Seminário 6 como o grande segredo da psicanálise, “não há Outro do Outro”. Seguiremos trabalhando os escritos de Lacan com o auxílio dos poetas.

Sobre a Unidade de Pesquisa Clínica e Política do ato

Por: Leonardo Miranda

Este texto é fruto das discussões realizadas na Unidade de pesquisa Clínica e Política do Ato, tendo como proposta para esse ano de 2016 pensar o tema da adolescência. Através das apresentações de Fred Chamma e André Spinillo da terceira parte dos “Três ensaios sobre assexualidade” (FREUD, 1905) introduzimos a discussão sobre as questões que envolvem a puberdade seguindo a indicação do texto de Miller “Em direção à adolescência” (MILLER, 2016). Ainda na primeira parte do texto de Miller nos deparamos com a seguinte frase que nos convocou à pesquisa: “É   também   o   momento   de   se   levar   em consideração,   dentre   os   objetos   do   desejo,   o   que   Lacan   isolou   como   o   corpo   do Outro”. Neste momento, visando um aprofundamento desta parte destacada, Heloisa Caldas propôs que Ondina Machado apresentasse os trechos de sua tese intitulada”A clínica do sinthoma e o sujeito contemporâneo” (A tese toda está em www.ebp.org.br) onde trata sobre o corpo do Outro, como o trecho a seguir:

“Sujeito do significante e sujeito do gozo são as duas vertentes da insígnia. Essa duplicidade, todavia, pode ser aplicada também ao conceito de Outro. Este Outro é o lugar do significante. Mas Lacan também o define como corpo enquanto deserto de gozo.” (ONDINA, p.76)

Ondina comenta que o corpo para a psicanálise é uma substância de gozo. O corpo para psicanálise não é corpo enquanto não incide nele o significante. Sempre tem um dito que fixa o modo de gozo. Como é um dito que incide sobre o corpo? A gente não lida com o corpo antropológico, nem com o ontológico, nem com o corpo biológico, o corpo com o qual lidamos é uma substância gozante. Ele não é uma abstração, não está no mundo das ideias, mas também não é um corpo como matéria, como organismo, tampouco é o corpo da existência, do devir. Ele não é corporal, mas também não é incorpóreo, é  o corpo como o lugar do Outro porque nele (corpo) que está a marca do significante (incorporal). O corpo é uma substância gozante porque é atravessado pelo significante. É neste sentido que o corpo é sempre o lugar do Outro, lugar de um dizer.

Puberdade não coincide com a adolescência, esta última pode ir mais longe, até mesmo à vida adulta. As metamorfoses do corpo na puberdade convocam o sujeito a se reposicionar diante do Outro. A forma (imagem) do corpo muda e os antigos dizeres sobre si não servem mais para situá-lo no Outro da família, da cultura. Seu corpo ocupa um espaço diferente e à sua fala passam a ser atribuídas consequências inéditas (brincar de médico, masturbação, namoro). O Outro sexo o convoca a manifestar seu desejo com palavras e com o corpo. Aqui o Outro sexo é qualquer corpo que não seja o seu. A mediação entre dois corpos (que só como corpo corporal não existem) é feita pela fantasia, pois é ela que vai conectar o sujeito a seus objetos. O corpo do semelhante não trás problema, é o corpo no qual incidem as marcas do Outro que é o problema, o que se produz quando esse dizer incide no corpo e faz dele Outro para o próprio sujeito.

Prosseguindo com as apresentação do texto de “Em direção à adolescência” (MILLER, 2016) discutimos sobre a diferença entre os sexos na adolescência, tentando pensar as diferenças precoces apontadas por Freud e destacadas por Miller. Levantamos algumas formas atuais de expressão como os blogs, tentando ver o que cada sexo posta pela internet e verificar se ainda valem as ideias de que a menina tende à inibição e ao recalque, demonstrando um amadurecimento precoce, enquanto o menino teria uma tendência a se manter infantil sexualmente. Camila Drubscky conta sobre o caso de uma jovem que não demonstra em nada esta inibição, pelo contrário, se mostra muito desinibida quanto ao sexo. Camila se prontificou a escrever o caso e trazer para discussão.

Paralelamente  foi indicada a leitura  de um caso publicado em um livro organizado por Éric Laurent*, que passou a orientar nossas discussões fazendo um contraponto com o caso mencionado por Camila.

Continuamos a discussão do texto do Miller na parte em que ele trata da imiscuição do adulto na criança. Levantamos a hipótese do adulto funcionar como um ideal para a criança, usando como exemplo a passagem que Miller conta sobre sua neta, que está no “Prólogo para Damásia”**. A menina disse que não acreditava mais nem em coelhinho da Páscoa nem em Papai Noel, mas manteria esta tradição quando tivesse seus filhos. Há um lugar para a criança, mas na perspectiva de tornar-se um adulto. É a partir disso que podemos pensar na imiscuição do adulto na criança, não como exigência, mas como ideal. Assim poderíamos entender a adolescência como tempo para compreender as transformações da puberdade. Traçamos algumas distinções preliminares sobre o ideal do eu e o eu ideal, situando o primeiro na via do simbólico e dirigido ao Outro e o segundo na via imaginária do querer ser, que daria margem à formação das fratrias, tribos, grupos. Este assunto foi aprofundado por  Sandra Landim que nos apresentou suas articulações, retiradas do Esquema R de Lacan, em paralelo com as primeiras leituras do caso clínico “Otra marca posible”*.

Sandra Landim apresentou o esquema R de Lacan, como está no texto “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose” (LACAN, 1959. p. 559) para falar do narcisismo e de como ele faz surgir o ideal do eu e o eu ideal. A partir da apresentação da Sandra discutimos sobre se o ideal hoje ainda orienta escolhas e atos, questão importante para este período da vida e para pensar a passagem ao ato.

Márcia Muller comentou sobre a tendência à procrastinação, levantando questões sobre o mundo atual e a multiplicidade das opções possíveis como facilitadora da procrastinação, a se adiar um momento de concluir da adolescência. Márcia deu também destaque ao modo como os jovens lidam com o saber atualmente, à influência do Google e à expressão de Miller de que “osaber está no bolso”. Ao pular o Outro, como fonte do saber, a teoria do complô ganha relevo respondendo à desidealização do Outro e a forma degradada e nociva que surge quando se evoca o Outro como saber ou como ordem.

Rejane Nunes tratou das mutações na ordem simbólica fazendo alguns paralelos com a Saúde mental. Perguntou-se se o enfraquecimento do simbólico corresponderia ao que se passa na psicose.

Camila Drubscky comentou um momento em que Ondina teria chamado atenção para a importância que a dor tem no processo da tatuagem. Diferente de épocas passadas, atualmente, não se estabelece tanto uma relação entre a figura tatuada e uma historia/cena da vida do sujeito. O que tem aparecido com maior frequência  é  a valorização da dor. Daí a possibilidade  de pensar a tatuagem como uma tentativa de constituir um corpo, fazer corpo quando as bordas do corpo estão imprecisas.

 * LAURENT, É. y otros. Cuerpos que buscan escrituras. Buenos Aires: Paidós, 2014. Os textos são: apresentação do caso – “Caso 1- Otra marca posible” e Discussão sobre o caso 2. Caso 1 “El impulso a cortarme” o hacer magia”.

** Freda, Damasia Amadeo de. “Prólogo para Damasia”. In: El adolescente actual. Nociones clínicas. San Martin: Unsam Edita, 2016

Bibliografia:

FREUD S. “As transformações da puberdade” (1905). In: Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, parte III. ESB, volume VII. Acessível por: https://www.passeidireto.com/arquivo/4156685/freud—ensaio-iii—as-transformacoes-da-puberdade-1905

LACAN, J. De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998

LACAN, J. (1974/2003) “Prefácio a ‘O despertar da primavera’”. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, pp.557-559.

MILLER, J.-A. Em direção à adolescência. Acessível por: http://minascomlacan.com.br/blog/em-direcao-a-adolescencia/

Sobre a Conversação com Hélène Deltombe no Colóquio da EBP-Rio e do ICP-RJ

Por: Ana Maria Lima (Turma 2015 ) 

A conversação clínica com Hélène Deltombe durante o Colóquio da EBP-Rio e do ICP-RJ Despertar do adolescente: do gozo ao desejo, trouxe ainda mais profundidade a reflexão sobre a direção no tratamento nos dois casos já trazidos para o ICP, surgiram mais detalhes e cenas da clínica. O que podemos dizer que continuou mais marcante foi a destreza da psicanalista em conduzir o tratamento pela clínica do real do gozo, sem perder a dimensão das estruturas edipianas clássicas, ali presentes e registradas,  mas com o tratamento orientado para os significantes de gozo.

Foram discutidos dois casos da prática de Hélène Deltombe com adolescentes. Nos deteremos em alguns breves comentários sobre eles.

A psicanalista se atém ao tratamento do gozo, da vontade de “felicidade”, para a paciente, o gozo absoluto, tendo no horizonte a pulsão de morte. Fazendo emergir o enigma do sintoma em contraponto à fantasia de gozo a qual ela tudo se submete, a paciente se vê as voltas com o desejo de saber, fazendo conexões entre suas produções artísticas e sua subjetividade. Logo: “A força da experiência analítica a colocou na dimensão dos traços significantes de sua existência, lhe abrindo a via de uma expressão artística que tocava seu gozo”. A paciente passa a poder produzir um laço social com sua arte, assentindo com a não relação sexual, e colocando-se mais no movimento de conquista de saber do que da demanda de felicidade anterior.

No outro caso, o paciente começa, a partir da análise, a desconsistir a importância do grupo com quem se identificava e compartilhava um ódio segregatório, proveniente de uma relação parental muito influente na sua formação, que se ressentia do gozo do outro. A partir do olhar da psicanalista é possível chegar ao significante marca do seu ódio, que também marca seu estranho familiar. Ele pode então aproximar-se de sua história de uma forma diferente. O desejo de saber se dá pela satisfação obtida com a descoberta de uma nova língua e pela curiosidade de suas origens.

Nos dois casos, é possível acompanhar a virada do gozo ao desejo, que se dá pela via do significante, pela constituição de um enigma do sintoma, e o desejo de saber, que abre portas para outros meios de satisfação que incluem uma certa conciliação com a não relação sexual e a impossibilidade do gozo absoluto fora da morte.

 

Lacan com Freud soletrando Hamlet: a tragédia do desejo[1]

Bruna Guaraná

Este presente texto é fruto das discussões empreendidas no Núcleo de Pesquisa Práticas da Letra do Instituto de Clínica Psicanalítica do Rio de Janeiro (ICP). As últimas discussões foram baseadas nas sete lições dedicadas à Hamlet por Lacan. O Práticas da Letra busca valorizar o modo de leitura que inclui, nesse movimento, a escrita. Daí se faz, quando se lê, uma prática da letra, por isso o convite de Lacan para que soletremos Hamlet está de acordo com essa perspectiva. Vamos no caminho de Lacan com Freud que inclui esse modo de leitura.

Lacan, em seu Seminário 6, na primeira lição dedicada à Hamlet, se deixa guiar por Freud e valoriza seu primeiro esboço de percepção sobre Hamlet. Segundo Lacan, os demais comentadores figuram como mera “digressões” ou “floreios”[2]. Salvo Jones quem ele atribui maior importância. O ponto destacado dessa primeira percepção freudiana repousa sobre o que é considerado ser o grande dilema ou “problema” do herói da trama: cumprir a vingança do qual está encarregado pelo fantasma do próprio pai para vingar sua morte. Segundo outros autores, como Goethe e Coleridge, a hesitação de seu ato, que paralisa sua ação, está ligada a um desenvolvimento excessivo da ordem do pensamento.

Segundo Lacan, os outros autores alegam que Shakespeare pretendeu representar um herói ou personagem central doentio, histérico e indeciso. Contudo, o que é apontado por Freud e seguido por Lacan é que Hamlet não se mostra incapaz de agir, já que mata um homem (Polônio) atrás de uma porta em uma conversa com sua mãe e envia os seus dois velhos amigos Rosencrantz e Guildenstern para a morte que lhes estava destinada após o trairem. Porém, o que impede Hamlet de executar a tarefa é de outra natureza e reside, segundo a citação de Lacan à Freud, na natureza em si da própria tarefa. O que significa ou condensa essa ação?

Há de se convir que é a natureza dessa tarefa. Hamlet pode agir, mas não conseguiria se vingar de um homem que matou seu pai e tomou o lugar dele junto a sua mãe, de um homem que realizou os desejos de sua infância. O horror que deveria impeli-lo à vingança é substituído por remorsos, por escrúpulos de consciência. Acabo de traduzir em termos conscientes o que permanece inconsciente na alma do herói…. (Lacan J. 1959, p.259 Apud Freud, S.)

A tradução em termos conscientes do que é da ordem inconsciente realizada por Freud situa para Lacan, com enorme precisão, o lugar de Hamlet na trama edipiana. O destaque conferido ao termo “escrúpulos de consciência” se deve ao fato de ser sob essa aparência que sentimentos inconscientes e recalcados mostram sua cara. Segundo Lacan, é o que pode se expressar de forma consciente, e que se apresenta ao mesmo tempo inconsciente na alma do herói.

A partir disso, o que seria interessante, segundo Lacan, nos perguntarmos é de que forma os “escrúpulos de consciência” se articulam ao inconsciente?  É o que Ella Sharpe, citada por Lacan, o demonstra a partir das associações livres ou relatos de sonhos de seus pacientes. E também é o que aparece a partir do comentário de Lacan, logo nos primeiros capítulo desse Seminário 6,  do relato de Freud a respeito do sonho do pai morto. O famoso dito “Ele não sabia que estava morto” da análise desse sonho, onde a imagem do pai encarna o próprio inconsciente do sujeito – e também seu próprio anseio inconsciente de morte contra seu pai.

Por isso, os sonhos edipianos, a análise, as tragédias e fabulações colocam ou trazem para a cena o desejo inconsciente e também sua articulação com a consciência ou as suas formas de aparições. Cito:

Freud, com efeito, insistiu muito no fato de que os sonhos edipianos são como as irrupções desses desejos inconscientes, que são como que sua fonte fundamental e que sempre reaparecem. Quanto ao Édipo de Sófocles ou aqueles da tragédia grega, eles são como a elaboração, a fabulação do que sempre surge desses desejos inconscientes. É assim que as coisas são, textualmente, articuladas por Freud, que nos diz que, em Hamlet, esses mesmos desejos da criança estão recalcados e só ficamos sabendo da sua existência, assim como nas neuroses, por seus efeitos inibidores. (Ibid, p. 258) [grifos nossos]

Mais uma vez, confirmamos só termos acesso aos nossos desejos inconscientes através de seus efeitos. É por isso que, os “escrúpulos de consciência” são tão explorados por Lacan, entendidos como efeito do verdadeiro desejo inconsciente não sabido de Hamlet. Dessa forma, correlacionamos que os sonhos edipianos ou a história encenada pela tragédia grega são reflexos dos desejos inconscientes, sua fonte “fundamental”.

Com essa introdução, localizamos o que interessa a Lacan com Freud: “ler” em toda a trama escrita por Shakespeare, em mínimos detalhes, desenvolvimentos, percalços e falas, como se articulam os “efeitos” do desejo inconsciente. Para isso é que Lacan nos convida a “soletrar” Hamlet (Ibid, p. 261).

Antes de tudo, veremos na conduta de Hamlet o que quer dizer esse desejo inconsciente. Sabemos que os “escrúpulos de consciência” são sua representação na consciência, mas e o que mais? Segundo Lacan, algo não vai bem no desejo de Hamlet. O “barômetro” da posição de Hamlet em relação ao desejo se presentifica na sua relação com a Ofélia:

Freud nos indica e vemos aparecer na peça, em correlação com o drama propriamente dito, um horror à feminilidade como tal, cujos termos são articulados, no sentido mais próprio da palavra, pelo próprio Hamlet, quando ele expõe aos olhos de Ofélia todas as possibilidades de degradação, variação e corrupção ligadas ao desenvolvimento da própria vida da mulher quando esta se entrega a todos os atos que, pouco a pouco, fazem dela uma mãe- em nome do que Hamlet a rejeita, e o faz de uma maneira que parecer ser a mais sarcástica e cruel. (Ibid, p. 267) [grifos nossos]

A sua inicial relação com a Ofélia sofre uma alteração drástica desde a morte do seu pai. Hamlet se torna posteriormente hostil, sarcástico e cruel com Ofélia. O horror à feminilidade encarnada por Ofélia, correlata ao que sua própria mãe representa, resulta de um quase rechaço à posição feminina de objeto. Existe uma relação, segundo Lacan, entre a sua posição no desejo e o que a feminilidade lhe apresenta.

Porém, a relação do desejo de Hamlet também gira em torno do seu ato. Hamlet tem um ato a executar e tudo o mais depende disso. E o que ele faz? Procrastina, deixa para depois. É aí que vamos com Lacan à pergunta no início do texto: qual é a natureza desse ato ou “o que significa o ato que lhe é proposto?” (Ibid, p. 268).

Nesse ponto, Lacan faz questão, apoiado em Freud, de deixar claro que esse ato nada tem a ver com o ato edipiano, o desejo de matar o pai inconsciente. Tal, como seria no Édipo, onde o herói quer escapar desse desejo (destino) e não sabe que ele determina toda a sua vida, mesmo que ele o evite. É por querer conscientemente escapar de seu destino (desejo) que Édipo realiza exatamente a profecia sem sabê-lo, o que o leva ao seu trágico final. A tragédia de Édipo é a da primazia do destino ou desejo inconsciente justamente por ele agir de forma não sabida.  Enquanto a tragédia de Hamlet é, segundo Lacan, a “tragédia do desejo” (Ibid, p. 272).

Pois, diferente de Édipo, Hamlet já sabe de antemão sobre o desejo inconsciente que lhe é revelado de forma peculiar pela aparição do espectro de seu pai. O que lhe outorga de antemão a culpa dos pecados não expiados do seu pai e a sua própria culpa ou “escrúpulos de consciência” pela realização por seu padrasto de seu mais profundo desejo inconsciente. Lacan alude a esse ponto dessa forma: “Para ele, é insuportável ser. Bem antes do começo do drama, ele conhece o crime de existir.” (Ibid, p. 268) [grifos nossos]. O desejo inconsciente de matar o pai, do qual o Édipo tenta escapar, já foi realizado em Hamlet. Alguém, que poderia ter sido ele próprio, já matou o seu pai e assumiu o seu lugar.

O “crime de existir” faz Hamlet se colocar diante de uma escolha:

Ser ou não ser – eis a questão. Será mais nobre sofrer na alma. Pedradas e flechadas do destino feroz. Ou pegar em armas contra o mar de angústias – E, combatendo-o, dar-lhe fim? Morrer; dormir; Só isso. E com o sono – dizem – extinguir. Dores do coração e as mil mazelas naturais.

A que a carne é sujeita; eis uma consumação. Ardentemente desejável. Morrer – dormir – Dormir! Talvez sonhar. Aí está o obstáculo! (Shakespeare, W. Trad. Millôr Fernandes)

O que é interpretado por Lacan ser a questão colocada por Hamlet “ser ou não ser”, tem como consequência uma posição que ele tem que assumir diante do que o fantasma de seu pai lhe apresenta quando relata a causa de sua morte: “Abatido em plena floração de meus pecados”. (Ibid, p.25)

O fantasma de seu pai lhe revela que ao momento de sua morte pela mão do irmão, foi surpreendido na “flor de seus pecados” e morreu em pecado. Por esse mesmo motivo seu espírito é condenado a pairar e a vagar pela noite sem encontrar paz até que seus pecados cometidos em vida sejam expurgados.

Por isso, para Lacan: “Trata-se, para o filho, de encontrar o lugar ocupado pelo pecado do Outro, o pecado não pago pelo Outro.” (Lacan, J. 1959, p.269) Ao contrário de Édipo que paga pelo crime que não sabia que cometeu aqui Hamlet apesar de sabê-lo ainda não pagou pelo crime de existir. Por isso mesmo se trata a si próprio como um covarde:

Sou então um covarde? Quem me chama canalha? Me arrebenta a cabeça, me puxa pelo nariz, E me enfia a mentira pela goela até o fundo dos pulmões? Hein, quem me faz isso? (Shakespeare, W. p. 48)

A covardia atribuída à paralisação da sua ação pela sua dúvida é o que posteriormente se deslinda através dos tortuosos caminhos pelos quais Hamlet precisa passar para vingar a morte do pai. Para finalmente matar seu padrasto sabemos, ao final da trama, esse feito só poder se realizar a preço de sua própria vida:

Hamlet não pode nem pagar no lugar do pai, nem deixar a dívida em aberto. No final das contas, tem de fazer com que seja paga, mas nas condições em que está colocado, o golpe passa através dele mesmo. (Ibid)

A necessidade de que a morte ou eliminação de Claúdio passe através dele mesmo é apontada por Lacan como um desfecho que é reflexo de uma problemática ligada à castração.

É justamente porque faltou alguma coisa na situação original, inicial, do drama de Hamlet – enquanto distinta daquela da história de Édipo -, a saber, a castração, que, no interior da peça, as coisas se apresentam como um lento caminhar em zigue-zague, um lento parto, por vias tortuosas, da castração necessária. (Ibid, p. 270)

É por essa mesma problemática que Lacan se interessa pelo drama de Hamlet como algo que possa servir para reforçar uma espécie de elaboração do complexo de castração e ter no horizonte de que maneira isso se articularia concretamente na análise, ao longo de seu percurso. (Lacan, J. 1959, p. 257)

Bibliografia

BLOOM, Harold. Hamlet: Poema ilimitado. Tradução de José Roberto O’Shea. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004.

COLERIDGE, Samuel T. A balada do velho marinheiro e outros poemas. Exilados dos livros. Disponibilizado por Le Livros, em: https://poiesisufpr.files.wordpress.com/2015/06/a-balada-do-velho-marinheiro-samuel-taylor-coleridge.pdf

JONES, Ernest. (1949) Hamlet e o Complexo de Édipo. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar, 1970.

LACAN, J. (1958-59) O seminário, livro 6: o desejo e sua interpretação. Rio de Janeiro: Zahar, 2016.

ROSA, Márcia. Ella também sabia sem Lacan aquilo que ele ensinava! Em: http://www.revistaderivasanaliticas.com.br/index.php/ella

SHARPE, Ella Freeman. (1937) Análise dos sonhos. Um manual prático para psicanalistas. Imago Editora, 1971.

SHAKESPEARE, William. Hamlet. Tradução: Millôr Fernandes. Texto disponibilizado em: www2.uol.com.br/millor/

TCHEKHOV, Anton. A Gaivota. Tradução e Pós-fácio: Rubens Figueiredo. Cosac & Naify, 2004.

[1] Esse texto é consequência das discussões que têm tido lugar no Núcleo de Pesquisa Práticas da Letra, coordenado por Ana Lucia Lutterbach Holck e Ana Tereza Groisman, empenhado na leitura do conjunto das lições de Lacan do Seminário 6 sobre Hamlet.

[2] Lacan agrupa em três vertentes os esforços de crítica dirigidos à Hamlet. Nas duas primeiras vertentes estão Goethe e Colerigde e na terceira à qual ele atribui maior importância, quem “introduz a posição analítica” é Jones. ( Lacan, J. 1959, p. 276)

Notícia do Núcleo de pesquisa

No encontro do dia 05 de outubro, o Núcleo se reuniu em torno da conferência “Falar com seu corpo”, de Jacques-Alain Miller (Opção Lacaniana nº 66, agosto 2013). A partir das constatações de que “a saúde mental não existe” e de que “cada um tem seu grão de loucura”, Miller nos fala da posição singular do analista frente ao discurso comum, o discurso de massa. O caráter ficcional do termo “saúde mental” reaparece quando se tenta, por exemplo, numa pretensa objetividade, expor um caso clínico como se fosse o de um paciente, sem levar em conta o laço transferencial com aquele que o escuta. O analista, diferentemente, está implicado no caso, sua presença produz efeitos, ele está “dentro do quadro” clínico, precisa pintar a si mesmo dentro deste quadro assim como Velázquez representa a si mesmo com o pincel na mão em sua tela “As meninas”.

Ao longo dos últimos anos, o discurso do mestre penetrou de maneira profunda a dimensão psi, a dimensão do “mental”, através, por exemplo, do fácil acesso aos psicotrópicos, da expansão da psicoterapia sob um modo autoritário, em se tratando sempre de uma aprendizagem para o controle. Se antes esse domínio escapava em grande parte aos governos, ele é atualmente objeto de regulações e exigências cada vez maiores. Essa progressão acontece paralelamente ao reconhecimento público da psicanálise, recolocando o desafio aos analistas de sustentarem sua posição remodelando sua prática em função do que lhes é requerido a partir do cenário atual sem abrir mão da sua ética.

Para a psicanálise, a única saúde mental que um sujeito é capaz de conseguir advém de certo exílio conquistado do discurso do Outro, advém do sintoma que uma vez esvaziado de seu sentido, nem por isso deixa de existir, mas vive sob uma forma que já não escraviza mais o sujeito. A psicanálise oferece, portanto, para aquele que nela aposta, acesso ao campo onde o mental se esvaece e deixa o real nu.

Lacan uniu com um laço essencial a verdade e a mentira, e apontou o campo que está para além da mentira do mental, a parte mais opaca do que Freud já nomeava como libido. Sendo assim, podemos observar, a partir da leitura de Miller, uma mudança no modo de se tomar o termo “desejo” na obra de Lacan: tomado como o que era irredutível à demanda, tal como pensado nos anos 50, o desejo deixa entrever agora sua face de “sentido”. O desejo, tal como no percurso de uma análise, passa também por uma deflação se apresentando agora como semblante que, como a relação sexual, é outra “verdade mentirosa”. Afirma Miller: “O desejo é o sentido e o semblante da libido, sua mentira mental”.

Outra passagem na obra de Lacan diz respeito à mortificação do corpo pelo significante. A partir do Seminário 20, é possível reconhecer que o significante não só mortifica o corpo, mas que nesta operação que recorta uma parcela de carne, esta última emerge numa palpitação que anima o universo mental. O significante não só mortifica o corpo, mas vivifica o gozo, ele marca o corpo com um vestígio inesquecível, um “acontecimento de corpo”, um advento de gozo que não volta jamais ao zero. Deste modo, como diz Miller, “o corpo não fala, mas serve para falar”. O que a psicanálise oferece para cada um é o horizonte de um saber fazer com esses gozos sem as muletas da fantasia, da tela.

Tatiana Grenha

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