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Conversação dos núcleos do ICP

No dia 08 de dezembro de 2022, os Núcleos de Pesquisa do ICPRJ se reuniram mais uma vez para realizar uma Conversação. O evento aconteceu de forma híbrida, presencial e virtualmente. Neste post, trouxemos a contribuição do Núcleo de Topologia para a discussão do tema e do caso apresentado.

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Por: Ana Tereza de Faria Groisman

 

A conversação entre os núcleos de pesquisa do ICP-RJ, em 2022, partiu de uma pergunta lançada pela coordenação de núcleos: “o que é um caso para a pesquisa clínica no ICP?”. O núcleo de pesquisa em medicina e psicanálise escreveu o relato de um caso atendido num dispositivo institucional e acompanhado por uma participante do núcleo: O Caso E. No núcleo de topologia, dedicamos dois encontros ao seu estudo e, no primeiro encontro, junto com Elena Lerner e Flávia Hasky, me dediquei a fazer uma leitura topológica do caso.

Organizei o relato, destacando três momentos que nos ajudam a circunscrever uma lógica do caso E.

 

Primeiro momento: tempo pregresso

Considero que seria, mais do que um momento específico, uma perspectiva histórica recolhida do prontuário da paciente: sua chegada ao Caps AD como local de tratamento. As crises de angústia eram descritas por ela como “falta de ar” e “mal-estar difuso”. Qualquer fator orgânico que poderia provocá-las é descartado, porém, nota-se que as crises vinham sendo tratadas por ela com a ingestão desordenada de medicamentos (ansiolíticos), o que orientou seu encaminhamento para um centro de atendimento votado para usuários de Álcool e outras drogas. A ingestão abusiva de substâncias se desloca da função de tratamento e passa a ser interpretada como sintoma a ser tratado.

Logo nas primeiras entrevistas, ela associa angústia e medo às dores difusas pelo corpo.

 

Segundo momento: repetição e demanda

Um circuito se desenha alguns anos depois de sua chegada. Ela narra, para a praticante que a acompanha, a sequencia de fatos que tende a se repetir incessantemente: a falta de ar sentida no corpo (interpretada por nós como sinal de angústia), o não reconhecimento do outro de que algo não está bem (a irritação do marido e deboche do filho relatados por ela), a irrupção da violência que se espalha entre todos (o tapa que dá e a briga que começa), a emergência da urgência que a leva ao Caps (lugar de tratamento e acolhimento da demanda). No Caps, recebe a garantia de que goza de boa saúde (aferição de seus sinais vitais), e finalmente o apaziguamento e contorno dado pela equipe que a atende a tranquilizam e estabilizam seu humor. Um circuito que tende a se repetir inúmeras vezes.

O que chamamos de circuito, também pode ser pensado como um enredo, ou uma cena que tenta enquadrar um gozo que itera. A “falta de ar” é sinal de uma presença estranha ao Eu, algo no corpo não funciona como deveria. Seria este o sinal de um gozo disruptivo que desarranja sua consistência narcísica?

 

Terceiro momento: o “silêncio eloquente”

Esse momento foi lido por nós como um momento de corte ou de um ato propriamente dito, pois divide o tempo entre um antes e um depois, subverte a relação entre o sujeito e o objeto e localiza um ponto onde paciente e praticante sofrem seus efeitos de surpresa.

Gostaríamos de destacar a fórmula que o núcleo de medicina encontrou para nomear o ato da praticante: “silêncio eloquente”, uma fórmula paradoxal e ao mesmo tempo absolutamente precisa para nomear o objeto voz. A eloquência é sempre atribuída à fala, não às palavras ditas, mas ao que dá peso a enunciação e orienta os enunciados. Este silêncio, portanto, tem estrutura de linguagem e valor de enunciação.

Consideramos que, o que dá eloquência ao ato, é justamente o fato dele se desprender de qualquer protocolo. A praticante dá voz ao silêncio que se impõe. Vale salientar que ele não se dá, sem que antes sejam tentadas outras saídas. Ele se impõe como limite, na borda do saber. Esse ato tem efeitos para a praticante e para a paciente, que finalmente acolhe o olhar e as palavras ditas como pontos de apoio.

Em nossos encontros, concluímos que as palavras que faziam apelo a uma retificação subjetiva, algo como: “você está incluída na causa daquilo que se queixa”, só puderam ser ouvidas de dentro: “ouço sua voz vindo da minha cabeça”, a partir do “silêncio eloquente”. É nesse ato (silencioso) que localizo o corte que viabiliza o advento do sujeito do inconsciente.

O corte é condição necessária, mas não suficiente, para que um tratamento possa prosseguir numa via orientada pela psicanálise. Até aqui, apesar do tanto de trabalho feito no acolhimento decidido pela equipe do Caps AD, poderíamos supor com a topologia que E. seguia como um pneuzinho (um toro) girando ao redor de um furo, sem nada querer saber sobre o que a faz girar.

Como veremos com a topologia de superfície, a partir do corte (interpretação) que subverte a estrutura, o imaginário tende a se recompor. O furo revelado pela estrutura moebiana que põe em relação o sujeito e o objeto a, tende a se tamponar novamente. Mas, a nossa aposta, é de que o furo não se fechará da mesma maneira.

 

Uma leitura topológica do caso

“Vem agora um pouco de topologia…” é assim que Lacan introduz em seu texto “O Aturdito”, a apresentação que faz do corte que viabiliza uma mudança na estrutura do discurso. Esse corte pode ser lido, portanto, como efeito da interpretação ou do ato do analista. Ele descreve passo a passo, o corte que produz uma subversão topológica que desvela a superfície moebiana que o toro escamoteia, “a evidência da banda é homologada pelo esvaziamento do toro”. O corte produz a “verdadeira banda”, aquela que se equivale a seu corte (Lacan, 2003, p.470).

No vídeo abaixo, é possível visualizar o corte que produz a subversão do toro em banda de Moebius, que na clínica corresponderia ao momento propício a entrada em análise ou ao surgimento do inconsciente transferencial.

https://youtu.be/876a_0WAoCU

Para Lacan, o corte e a banda são equivalentes: “O que se evidencia, é que a banda de Moebius, não é outra coisa senão esse mesmo corte, aquele pelo qual ela desaparece de sua superfície” (idem, p.471).

Lacan prossegue, localizando a passagem da banda ao cross-cap, que se infla em esfera a partir dela, é um inflado imaginário que coloca em relação o sujeito do significante e o objeto a. Ele pode ser lido como uma apresentação do matema da fantasia ($ ◊ a), ou ainda, como uma variante do esquema R, onde o simbólico e o imaginário se articulam pela torção da realidade. Porém, na passagem dos esquemas para o Cross-cap, o real se imiscui na fantasia. Segundo Lacan, “realizando a topologia, não saio da fantasia, mas confirmo que é a partir do discurso em que se funda a realidade da fantasia, que aquilo que há de real nessa realidade, se acha inscrito” (idem, p.478).

No aturdito, Lacan nomeia o Cross-cap como a (a)sfera, um inflado, com a aparência de esfera, mas que inclui uma torção interna que aloja o objeto em relação de extimidade com o sujeito.

Neste vídeo, é possível visualizar a estrutura do cross-cap: https://youtu.be/W-sKLN0VBkk

Por conta dessa torção, o dentro e o fora encontram-se em continuidade. Por isso, a voz da praticante (no caso E.)  pode ser ouvida como vindo do lado de dentro da cabeça, ou o olhar dela pode ser buscado como testemunha ou apoio que lhe assegura um contorno corporal. A paciente encontra seu lugar no olhar da praticante.

Aqui, vale lembrar da imagem que Lacan nos oferece da transferência em seu texto “Posição do inconsciente”, onde ele descreve o inconsciente como o “lugar onde isso fala”, e o relaciona com a caverna de Platão (e também de Ali Babá) , onde nela vemos entrar o psicanalista: “mas as coisas são menos simples, porquê essa é a entrada a que nunca se chega senão no momento em que ela é fechada (esse lugar jamais será turístico) e porque o único meio de ela se entreabrir é chamar do lado de dentro”, um abre-te Sésamo pelo efeito de linguagem (Lacan, 1998, p.852).

Retomo essa passagem para visualizarmos a torção que se opera com o ato da praticante, uma torção que introduz um novo lugar no discurso. As palavras produzem efeitos por serem ouvidas desde o lado de dentro da caverna, é de lá que se produz uma abertura para a dimensão inconsciente e uma possível retificação subjetiva. Uma topologia de borda, onde o dentro e o fora colocam-se em continuidade.

Voltando ao Aturdito, Lacan nos ensina que a topologia não é uma teoria, mas “deve dar conta de que haja cortes do discurso tais que modifiquem a estrutura que ela acolhe originalmente”. Esse corte não se dá como efeito da intervenção da sabedoria, ele irrompe no ato que brota no limite do saber.

A passagem do toro à banda e ao Cross-cap ((a)sfera) apresenta uma ficção que fixa um furo que conecta as duas dimensões do dizer. O objeto se torna êxtimo e, de fora, toca o mais íntimo de cada um: “sua voz entrou na minha cabeça” é a formulação poética de E. que demonstra de forma clara que é de dentro que o dizer poderá alcançar a dimensão do gozo.

Por fim, uma nota sobre o tempo: a topologia Moebiana não apresenta uma subversão apenas do espaço, onde a localização Euclidiana se dissipa, mas também subverte a relação com o tempo, onde o antes e o depois nem sempre se sucedem cronologicamente. Retomo aqui um recorte de Lacan na apresentação que faz de seu texto sobre o tempo lógico, onde diz que “o depois se fazia de antecâmara para que o antes pudesse tomar seu lugar” (Lacan, 1998, p.197).

A partir disso, penso ser razoável considerar que, no caso apresentado, o silêncio (posterior ao dito) serviu de antecâmara para que a voz ressoasse num novo lugar. O tempo da interpretação não coincide com o momento em que a praticante enuncia suas palavras, mas sim, se sucede ao corte que o silêncio produz.

 

 

 

Bibliografia:

LACAN, J. O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada. In: LACAN, J. Os Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

LACAN, J. Posição do inconsciente. In: LACAN, J. Os Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

LACAN, J. O aturdito. In: LACAN, J. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.

 

https://youtu.be/876a_0WAoCU

https://youtu.be/W-sKLN0VBkk

 

 

 

 

 

O trabalho clínico, epistêmico e político do ICP

Por Maria do Rosário Collier do Rêgo Barros

O trabalho clínico, epistêmico e político do ICP no ensino da psicanálise se apoia em sua vocação de pesquisa. A pesquisa entrelaça essas três dimensões e oferece aos alunos, aos associados e aos participantes dos Núcleos diferentes espaços para sua formação permanente, como também a ocasião de descobrir maneiras de estar presente no social, atentos às diferentes formas de segregação oriundas dos impasses próprios de nossa época. Assim, a cada vez, podemos descobrir o uso possível de nossos instrumentos para evitar que os processos segregativos a serviço da pulsão de morte produzam efeitos desastrosos, como previa Lacan em seu texto “Alocução sobre as psicoses da criança”[1].

A pesquisa em psicanálise necessita de uma casuística recolhida do atendimento oferecido por um psicanalista (e pelos clínicos que se orientam pela psicanálise) e acompanhada em supervisão em cada um de seus diferentes momentos, desde o acolhimento até sua conclusão, passando pelo cálculo das intervenções (interpretação, ato, manobra na transferência) e a disponibilidade à contingência.

A cada ano precisamos pensar como renovar esses espaços e transmitir suas elaborações. Os cursos oferecidos pelo ICP buscam oferecer os instrumentos conceituais para esse trabalho de pesquisa. A cada encontro com um paciente renovamos nossa aposta no sintoma, que se apresenta de diferentes maneiras ao longo da experiência, desde localizar os significantes nos quais o gozo está fixado, até levar o sujeito a interrogá-los e produzir novas formas de arranjos sinthomáticos.

Em setembro, os Institutos do Campo Freudiano na América Latina se reunirão em Buenos Aires, no VIII ENAPOL, sobre o tema “Assuntos de família, seus enredos na prática” – o que nos convida mais uma vez a verificar os efeitos do declínio do pai, não só nas novas formas de constituição e organização das famílias, mas também na prática da psicanálise. Estar atento à dimensão da singularidade requer uma prática sem standards, mas não sem princípios, não sem  uma orientação, que é o que buscamos transmitir no ICP.

As famílias mudam, mas os analisantes continuam a falar dos pais e a interrogar as condições de seus nascimentos e a trama dos laços familiares que os antecederam.

Quando Lacan aponta para o fato de que nascemos do mal-entendido[2] de nossos ascendentes, ele oferece um ponto de abertura que permite a separação do peso dos enredos familiares, que transformam em necessários os efeitos dos acontecimentos contingentes que marcaram nossas vidas.

Ao apreender a dimensão de mal-entendido nos enredos que alimentaram suas construções fantasmáticas e seus sintomas, cada um terá a chance de se reconectar com suas marcas singulares, que servirão de apoio para seu estilo de vida orientado pelo seu sinthoma.

Articular mal-entendido e sinthoma serve também de bússola para nos orientarmos em relação às novas parcerias amorosas e aos novos arranjos familiares.

[1] Lacan, J.: “Alocução sobre as psicoses da criança”. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003. “[…] o problema mais intenso de nossa época, na medida em que ela foi a primeira a sentir o novo questionamento de todas as estruturas sociais pelo progresso da ciência. No que, não somente em nosso próprio domínio, o dos psiquiatras, mas até onde se estende o nosso universo, teremos que lidar, e sempre de maneira mais premente, com a segregação” (p. 360).

[2] Lacan, J. “O mal-entendido”. In: Opção lacaniana – Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 72, março de 2016.

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