Sobre o lançamento do livro Segregação em tempos de guerra: psicanálise na cidade, do Núcleo de pesquisa de Psicanálise e Direito, no ICP-RJ, no dia 30 de agosto de 2019, com a exibição do documentário Pixadores, e a presença de Cripta Djan no debate.

por André Abu-Merhy

Os analistas parecem avisados que o mundo não pode mais contar com uma fórmula tradicional para contornar isso que Lacan chamou de real. Assim, recorremos à arte como um instrumento singular e possível de lidar com aquilo que sempre escapa ao controle do eu. Assumindo que tanto a arte quanto a clínica são práticas que lidam com o real, o ICP propôs um diálogo com o artista, pixador e ativista Cripta Djan para que ali, na extimidade entre a Escola e os ensinamentos das ruas, extraíssemos alguma direção para seguir, afinal, como bem disse Lacan: “que antes renuncie a isso, portanto, quem não conseguir alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época” .
O que a cidade pixada nos ensina sobre o real de nossa época? O pixo, a pixação com “x”, neologismo, mais um nome que uma palavra, litoral entre arte e contravenção, é uma espécie de retomada da própria cidade “porque tem esse lance da conquista”, ensina Cripta Djan . Curioso pensar em ‘retomada’ de uma cidade por alguém que nunca a teve de fato ou por direito, mas o pixo de Osasco (SP) é reto e surge como uma espécie de resposta à segregação, a uma espécie de partilha recusada à periferia.
Cripta Djan falou que quando ele pixa um prédio, seja este histórico, público, privado ou tombado pelo patrimônio, “o prédio vira nosso” . O pixo é uma ação e, portanto, física. Tem gesto, tem tinta, tem risco e, por que não dizer, certo heroísmo. Afinal, estamos falando de quem expõem o próprio corpo para o resgate de uma cidade perdida, sem memória, erguida a partir de uma história fabricada sob a encomenda de um mecenato minoritário. Ao contrário do que se pretende apagar com ao enxame de fake news no celular do eleitor desavisado, o pixo é real e tem função de memória, de marca indelével, como uma tatuagem na carne da cidade.
A grafia do pixo desconcerta o olhar do passante. O nonsense é insuportável para uma maioria que balança na corda do sentido. O que temos a ver com o pixo e o que de nós teria naquela grafia de estética meio gótica, meio qualquer outra coisa que não se ensina nas escolas de Higienópolis ou dos Jardins ? E o que dizer do rapaz que se alfabetizou pelo pixo ?
Antes de escutarmos DJ, assistimos o documentário “Pixadores”, dirigido por Amir Escandari, que expõe um determinado episódio ocorrido durante a sétima Bienal de Berlim, na Alemanha. Alguns integrantes do grupo Cripta foram convidados para participar e promover uma espécie de work shop dentro de uma edificação histórica, uma igreja talvez, patrimônio público e preservado daquela cidade. O grupo fora surpreendido por um pedido do curador que consistia em preencher, com tinta, algumas paredes artificialmente levantadas para a finalidade de uma espécie de exibição, com ambição didática e artística. A câmera flagra o mal estar instaurado a partir do momento que Djan e o grupo explicam que o pixo não comportaria aquela artificialidade.
Cripta, todo o grupo, mas especialmente Djan, trocaram farpas e tintas em uma briga ética onde se precisou explicar com o real do risco da escalada e da tinta lançada na carne daquele edifício, lá onde não deixaram pintar, que o pixo é notícia da transgressão, daquilo que não cabe sem resto, que escapa, do real do léxico de Lacan, inapreensível e que não permite representação, ensaio, didática, regra ou gramática, pois ele não quer ser incluído, sob pena de perder sua marginalidade e sua vocação de fazer balançar o sujeito e a cidade.