O caso da Jovem Homossexual: uma releitura.

Neste ano estamos trabalhando no núcleo, o caso de Sarah Kane dramaturga inglesa que se suicidou aos 27 anos. A escrita de suas peças, a encenação e todo o sucesso alcançado que atingiram não foram suficientes  para que ela encontrasse uma amarração para sustentar seu corpo. Foi nessa perspectiva que lemos o caso da paciente de Freud.

Gabriela Basz, a partir de Lacan, trabalhando sobre Sarah Kane em seu livro “Cuerpo y Psicosis em la época” (2018) sinaliza que a linguagem na psicose se impõe, uma imposição no corpo que pode chegar a dissolvê-lo. Nesse livro ela traz o entendimento dos fenômenos elementares com os transtornos nos três registros, imaginário, simbólico e real. Os fenômenos elementares não são necessariamente fenômenos de linguagem.

O “deixar cair o corpo” em Joyce seria um exemplo de fenômeno elementar que não é transtorno de linguagem. Desenvolvendo o tema da consistência, a autora traz a linguagem como disruptiva, experiência de uma presença que irrompe e dissolve essa consistência que suporta o corpo.

Daí a necessidade de uma distância desse Outro da linguagem que invade o corpo. Ao mesmo tempo, a importância para o analista em identificar qual o estatuto deste Outro na psicose.

 No caso da Jovem Homossexual (Freud,1920) o encontro com o olhar de reprovação do pai teria tido esse efeito de dissolução da consistência do corpo? Outra hipótese é a ausência do desejo da mãe sobre o bebê feminino, ou seja, a criança não pôde ser o falo da mãe, produzindo um enodamento sem o nome do pai. Assim orientamos a nossa investigação, a partir de uma das posições de sujeito preconizadas por Lacan no seminário 10 no caso da jovem homossexual, que indica a “redução ao objeto real na tentativa de suicido” ( Os poderes da palavra, AMP, 1996).

Lacan, neste momento de seu ensino, estabelece as condições para a passagem ao ato, afirmando que primeiramente é a identificação absoluta do sujeito com o “a”, ao qual ele se reduz. É justamente o que sucede com a moça no momento do encontro. A ausência do desejo da mãe sobre a criança é atualizada a partir desse outro idealizado, desse outro heterogêneo.  A outra condição é o confronto do desejo com a lei (Lacan, pág 125). Neste ponto, diz Lacan, trata-se do confronto do desejo pelo pai, sobre o qual se constrói toda conduta dela, com a lei que se faz presente no olhar do pai. É através disso que ela se sente definitivamente identificada com o “a”, e ao mesmo tempo, rejeitada, afastada, fora da cena (pág 125). A jovem se sente identificada com “a” por causa da retirada do desejo desse outro heterogêneo dela, em outros termos, o desprezo da dama. E isso, somente o abandonar-se, deixar-se cair pode realizar.

Nossa hipótese para discussão, apoia-se nessa questão: qual o estatuto da passagem ao ato na época do tratamento com Freud e nas outras duas tentativas de suicídio relatadas na biografia: tomou remédios e deu um tiro no peito, dois tempos relacionadas a vida amorosa. Foi a incidência do olhar do pai sobre a cena, e também o desprezo da dama, que fizeram com que seu corpo não se sustentasse e ela se jogasse na linha do trem, caída como um dejeto, ao modo de uma passagem ao ato?  Para Freud, a jovem não se apresentava como histérica, não apresentava conflitos que era uma questão requerida pela análise. As interpretações edipianas não ressoavam muito, apesar da transferência.

No texto Habeas Corpus (2018), Miller aponta que o último ensino de Lacan inicia por uma fórmula que ele enuncia assim: “o inconsciente deriva do corpo falante” e destaca três pontos: “o sujeito tem um corpo, o corpo é falante e não é o corpo que fala”. O corpo serve para falar, é um instrumento, a fala passa pelo corpo e o afeta, “sob a forma de fenômenos de ecos e ressonâncias”.

No caso da paciente de Freud a sexualidade se apresenta como invasiva, repugnante, sem o recobrimento da fantasia, como irrupção de algo estranho no real de seu próprio corpo. A tentativa de ser amada está presente, mas o amor se revela como morto, frente a degradação do Outro.

Lacan no Seminário 3 vai dizer que a relação amorosa na psicose, situa o sujeito “fora de si mesmo”. É uma relação amorosa que suprime o sujeito pois se trata de um encontro “com uma alteridade tão estrangeira que mata o sujeito”. Neste sentido, o amor na psicose é um amor morto porque implica “numa heterogeneidade radical do Outro”. O Outro é tão radicalmente heterogêneo, diferente, levando o sujeito a não reconhecê-lo como sendo da mesma natureza. É uma distância defensiva, mas opera também como uma garantia. Essa dimensão leva o sujeito a um apagamento, deixando sua vida de lado. No caso da paciente de Freud, o real da sexualidade aparece em seu corpo, se materializa no desprezo da dama, e na rejeição dos pais em relação a sua posição. Ela não encontra apoio fálico e se deixa cair na linha férrea e “se deixa abandonar” também por Freud.

Na biografia de Sidonie C. (2008)  sobram relatos de uma vida incomum, que se estendeu até o final do século XX.  Muitos amores, seguiu amando, sempre se mantendo com muita distância em relação ao sexo. Diante disto, qual foi o enodamento dos registros feito por esta paciente?

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