O texto que se segue é o efeito provocado pelo encontro entre o Núcleo de Pesquisa em Toxicomanias e Alcoolismo (ICP/RJ) e o CIEN – Centro Interdisciplinar de Estudos sobre a criança, ocorrido em 07 de junho de 2022.

 

Por: Rodrigo Pedalini Borges Pires [1]

 

Disparada por uma fala de Rodrigo Abecassis sobre a queda da função paterna, tive uma questão: Que relação é possível estabelecer entre o declínio da função paterna e a tecnologia – se assim posso dizer – “adictiva”? Teria a primeira algum efeito colateral sobre a segunda, de modo que, se o avanço tecnológico participa de alguma forma do mal-estar do sujeito contemporâneo, sendo mais uma modalidade de adicção, isso se daria por conta da pré-existência ou da pré-condição de um declínio da função paterna? Ou o contrário: é o avanço da tecnologia que faz deixar fora do ar o sistema da função paterna no contemporâneo?

Cito Dessal: “Ciência e técnica começam a transitar por caminhos separados, posto que o princípio de impossibilidade que rege para a ciência, não tem lugar no discurso da técnica.” (1) Lacan, em 1969 desenvolve a teoria dos 4 discursos: do Mestre, da Universidade, da Histérica e do Analista. Pelo que pesquisei recentemente, o que podemos chamar de um “Discurso da Ciência” estaria num lugar entre o Discurso do Mestre e o Discurso da Universidade. Mas, e o Discurso da técnica? O que seria? Pode-se pensar na existência formal de um discurso que é o da tecnologia?

Dessal segue, ainda sobre o divórcio da ciência com a tecnologia, dizendo: “Por outro lado, ciência e técnica opõem-se no que se refere à temporalidade. Enquanto a verdadeira ciência progressa lentamente, a técnica avança de forma acelerada, e faz da velocidade, um de seus postulados máximos. Para a gente de Silicon Valley, o método científico clássico é anacrônico e inadmissivelmente lento.” (1)

Os discursos, segundo Lacan, “nada mais são do que a articulação significante, o aparelho, cuja mera presença, o status existente, domina e governa tudo o que eventualmente pode surgir de palavras. São discursos sem palavra, que vêm em seguida alojar-se neles”(2). Também pelo que andei pesquisando, entendi que a impossibilidade é estrutural no discurso do Mestre e no do Analista, ao passo que a impotência (ou insuficiência) o seria em relação aos Discursos da Histérica e da Universidade. Só que a tecnologia avança acelerada e faz vacilar o que parecia pertencer ao campo da impossibilidade. Nada parece impossível para a tecnologia. O céu (não) é o limite (e há pouco um brasileiro foi sorteado para uma volta no espaço, organizada pelo multi-bilionário Jeff Bezos). Sendo assim, se não há a dimensão do impossível e não há impotência, poderíamos considerar a existência de um Discurso da tecnologia?

O Discurso do Capitalista, derivado do discurso do Mestre a partir da inversão entre as posições de S1 e S barrado, é um discurso no qual também desaparecem as dimensões da impossibilidade e da impotência, porque o sujeito ocupa a posição de agente, guiado pelo objeto “de acordo com as leis de consumo”. Poderíamos então equivaler um hipotético Discurso da Tecnologia ao Discurso do Capitalista? A tecnologia seria apenas uma versão do capitalismo? Que leis ordenariam esse discurso?

Parece-me, ou é a hipótese que levanto, que não há um discurso da tecnologia. Parece, antes, tratar-se de pura taquilalia, porque é rápida, acelerada, e de metonímia, porque é mais, do mesmo. Matematicamente, é como se se cortasse por equivalência, no matema do Discurso do Capitalista, o elemento que está no lugar da verdade (ou do capital), S1 – “o mestre moderno” – e o do outro, o do saber (ou da ciência), S2. Como se saber e verdade (ciência e capital) fossem equivalentes e pudessem ser eliminados, “cortados” como se faz em uma equação matemática. Talvez seja disso que se trate quanto à tecnologia: de se saber a verdade. Ou melhor ainda, de se ter a verdade à mão, de se poder controlar a verdade. Sobra um S (des)barrado, agente que aponta sua seta para o infinito e além, sem lei: acelerado (porque não há nada para detê-lo), segue em direção ao impossível, enquanto produz uma sequência infindável de objetos g(a)dgets.

Um Bom Lugar: exílio e luto

Outra questão que me tocou na reunião foi quanto à universalidade dos smartphones. Smartphones são quase tão universais quanto um CPF ou uma Carteira de Identidade. Quem não tem um, não existe. O tal do metaverso é isso. O mundo é o que se passa por dentro da tela. O velho exercício filosófico da pergunta “se uma árvore caiu no meio da floresta e ninguém ouviu, a árvore fez barulho? Pode-se dizer que a árvore caiu?”. Quanto aos smartphones (e não aos telefones normais, sem acesso a redes sociais) essa pergunta também vale. Quem não tem um, existe? Quem viu? Quantos likes são necessários para ratificar a presença de um sujeito? “Quantos likes merece esse Princeso??”, como já vi numa postagem qualquer. O like, aliás, é a lista de presença de uma postagem. É a marca feita a canivete no tronco da árvore que caiu ou não caiu: “Estive aqui”. “Aqui, fui”. Ou, bastante contemporâneo, ao lado das iniciais de um casal apaixonado, o desenho de um coração, like oficial do Instagram.

Tudo isso para dizer que, pensando clinicamente, a relação de um sujeito com a tecnologia, diferente da relação do sujeito com a droga, tem essa particularidade de não necessitar que haja um movimento daquele em direção ao objeto de consumo. Não é preciso ir ao bar ou à boca-de-fumo. Não é preciso fazer uma ligação. É como se o objeto em jogo fosse mesmo uma parte do corpo para esse sujeito, sua carteira de identidade, seus óculos, algo muito necessário para a convivência em sociedade. O objeto de consumo está ali, no corpo.

Mas, se vemos uma crescente de sujeitos totalmente aprisionados por seus celulares, fazendo deles um uso, digamos, nocivo, exagerado, perdendo-se horas do dia com seus caça-níqueis de bolso, é porque outra gente, muito estratégica, desenvolveu o sistema para que funcionasse assim. De outra forma: não é o pequeno-grande computador de bolso, o objeto que vicia. São os programas que nele são instalados. E os programas nele instalados, o software, são linguagem. Somos todos capturados por uma linguagem, ou, mais uma vez, inseridos em uma linguagem. Só que dessa vez, o produto dessa operação não é a castração. Ou é, mas sempre com a promessa de possibilidade de recuperação do objeto perdido (que é indissociável da possibilidade de decepção, ou de não recuperação, posto tratar-se de dar cara de possível ao que é impossível). “Prometo que pode ser que você recupere o que lhe foi retirado”, que contém subliminarmente a sentença: “e prometo que pode ser que não”. É sempre pelo “gozo de menos”, pela possibilidade de decepção, pela velocidade acelerada com que os vídeos são editados de modo a causarem a sensação de que a qualquer momento uma grande verdade será revelada, pela multiplicidade de objetos oferecidos. É o que fixa o sujeito numa repetição tão automática quanto os robôs criados pela mesma tecnologia.

E achamos tudo isso o máximo, ao menos no início. Encontramos velhos amigos, ganhamos biscoitos em fotos, “joinhas” em homenagens póstumas. Todo mundo lembra seu aniversário, elogiam seus filhos e tudo se passa como se estivéssemos em The Good Place*. Consentimos com nossa inserção nessa linguagem e nossa entrada nesse mundo, porque nos foi mostrado tratar-se de um Good Place. Tudo muito bem, tudo muito bonito, o que me faz lembrar do que Lacan diz em seu Seminário, no livro 7, sobre a Função do Belo, como último anteparo antes da Coisa. “… que o belo tem por efeito suspender, rebaixar, desarmar, diria eu, o desejo. A manifestação do belo intimida, proíbe o desejo”. Talvez possamos, por analogia, considerar que a estratégia da tecnologia tenha sido a de colocar o belo como anteparo, para que não víssemos “a Coisa”, para que nos retirasse o lugar do desejo, e mais: como a serpente que nos seduz a morder a maçã.

Isso tudo parece mesmo uma coisa de outro mundo. O metamundo, o Metaverso. Colocadas as coisas assim, topologicamente, entrando em cenas dois lugares, poderíamos considerar que apenas o exílio seria a “solução” para o mal-estar genérica e recentemente nomeado de “o dilema das redes”? E nesse caso, quanto seria exigido de um sujeito, para que ele possa elaborar o trabalho de luto inevitável do que deixou para trás?

The Good Place é uma série de televisão de comédia fantasiosa americana criada por Michael Schur. uma utopia altamente seletiva semelhante ao Paraíso projetada e administrada pelo “arquiteto” Michael. (wikipedia)

 

Referências bibliográficas:

  • DESSAL, Gustavo. “La alienación digital. Apuntes al debate crítico sobre los dispositivos móviles”.
  • LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 17 – o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.

 

 

[1] Participante do Núcleo de pesquisa em Toxicomania e Alcoolismo