Este texto fez parte do encontro de trabalho do Núcleo de Topologia do ICP do dia 09 de setembro de 2022, onde foram apresentados e discutidos os comentários de Marilena Leitão, Lucia Mariano e Ana Beatriz Freire, sobre o filme “Frida” da diretora Julie Taymor.

 

Por: Marilena Leitão

(Participante do Núcleo de Pesquisa em Topologia do ICP)

 

“A boa maneira é aquela que, por ter reconhecido

a natureza do sinthoma, não se priva de usar isso logicamente,

isto é, de usar isso até atingir seu real, até se fartar”.

– Jacques Lacan, Seminário 23, O sinthoma. (1)

 

“Frida”, o filme, é sobre a artista Frida Kahlo (1907-1954), seu relacionamento com o também artista Diego Rivera e sua saga com as dores advindas de um terrível acidente que trouxe complicações que a colocaram na cama até a morte. Mas o filme mostra principalmente a forma como ela fez de seus sintomas o Sinthoma que produziu seu dizer sobre a arte, a liberdade e “o saber haver-se aí” diante das contingencias da vida.

Vemos no filme, o pai de Frida em uma relação bastante amorosa com ela e apoiando-a em tudo. Ele, um fotógrafo que ela admirava muito e em quem se espelhava. Frida, quando jovem, vestia-se de homem e o pai dizia: “Eu queria ter um filho homem”.

Após o grave acidente e a fragmentação corporal que sofreu, a pintora transformou em arte a sua tragédia e a sua dor. Para atravessar a impossibilidade de movimentos do seu corpo, fez de sua própria imagem uma obra de arte. E o fez até mesmo com crueldade. Ela dizia que era a vida que ela pintava, mas era o (tocar o) Real que ela fazia surgir diante dos olhos de todos…

Diego Rivera a tomou como objeto a, como tomava todas as mulheres – e não eram poucas –, mas casou-se com Frida. O casamento não cessou a busca de Diego pelo objeto. Ele não buscava A Mulher, não abria mão de sua liberdade e menos ainda de seu compulsivo e incontrolável desejo elas mulheres.

Mas para Frida, Diego era tudo, era um verdadeiro deus. Podemos ler no texto de Miller (O parceiro sintoma) que: “Há uma outra pantomima que escrevemos em série: fazer do homem um deus, ou deixá-lo louco. O sujeito feminino dirige-se ao Outro para nele encontrar a consistência, mas oferece ao sujeito masculino a oportunidade de aí encontrar a inconsistência, a que inscreve satisfatoriamente o (A/)”. (2)

Estava formado o casal sintomático.

Ainda em Miller, vemos que: “Se seguirmos Lacan, a mulher é sempre objeto a para um homem, motivo pelo qual ela não é mais que parceiro-sintoma. O núcleo de gozo, esse objeto a, o parceiro sendo aqui o invólucro de a, exatamente como o sintoma o é. O parceiro como pessoa é o invólucro formal do núcleo de gozo, enquanto, para a mulher, se o homem se aloja em S(A/), não é somente um sintoma circunscrito, porque esse lugar implica o ilimitado. É um lugar não cerceado, um lugar em que não há limite. O homem é então o parceiro-devastação. Dito de outro modo, a devastação comporta o ilimitado do sintoma. Em um determinado sentido, para cada sexo, o parceiro é o parceiro-sintoma, mas para a mulher, em particular, um homem pode ter a função de parceiro-devastação”. (3)

Após muitas idas e vindas e dois casamentos desse mesmo casal, Diego finalmente cede e se reencontra com a mulher Frida, em quem reconhece a parceira de uma vida, sob o signo da liberdade.

Frida já totalmente imersa na morfina para aplacar suas terríveis dores, surpreende a todos chegando deitada em sua própria cama na abertura de sua primeira exposição no México após muita luta. Na época, era ainda mais difícil do que hoje as mulheres chegarem a lugares que eram ocupados apenas pelos homens.

Já perto da partida final, Frida Kahlo anuncia que espera “não voltar mais”. Ela se vai e sua obra ascende vertiginosamente em valor de mercado.

Frida é desenhada no filme como uma mulher interessante, corajosa, audaciosa, de humor sagaz, libertária e do Partido Comunista.

O filme apresenta uma posição decidida de Frida nas parcerias sexuais com os homens e com as mulheres também. Uma proposta de vida sexualmente livre. Mas, no entanto, ela necessitava da lealdade do seu homem. E aqui é onde ela se enrola na relação com Diego e com ela mesma.

E para concluir, vamos com Miller que nos diz que: “… o sintoma é antes de tudo um fato de enrolação. Há sintoma quando o nó perfeito rateia, quando o nó se enrola, quando há, como dizia Lacan, lapso do nó. Ao mesmo tempo, porém, esse sintoma feito de enrolação é também o ponto de basta, e em particular, o ponto de basta do casal. Assim, o sintoma é também um termo Janus. O sintoma, em uma de suas faces, é o que não vai bem, e na outra, o que Lacan, recorrendo à etimologia, denominou de sinthoma, o único lugar onde, para o homem que se enrola, finalmente isso rola”. (4)

 

 

Referências bibliográficas

(1) Lacan, J. (1975-1976). O Seminário, livro 23: O Sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007, pg. 16.

(2) Miller, J.-A. “A teoria do parceiro”. In: Os circuitos do desejo na vida e na análise. Escola Brasileira de Psicanálise (orgs.). Rio de Janeiro: Contra Capa, 2000, pg. 196.

(Esse texto retoma uma ampla parte do seminário proferido, em colaboração com Éric Laurent, no quadro da Seção Clínica de Paris VIII, e intitulado O Outro que não existe e seus comitês de ética (1996-97), dias 12, 19 e 26 de março, 23 de abril, 21 e 28 de maio, 4 e 11 de junho de 1997. Texto estabelecido por Catherine Bonningue).

 

(3) Miller, J.-A. “A teoria do parceiro”. Op. Cit., pg. 197.

(4) Miller, J.-A. “A teoria do parceiro”. Op. Cit., pg. 207.