por Geisa de Assis

Os objetos de estudo da Unidade de pesquisa Clínica e política do ato têm sido o racismo e a segregação. Com estes dois significantes, e partindo da indicação de Miller em “Racismo e extimidade” de que a segregação seria conhecida pelo nome batido de racismo, equivalendo os dois, decido, a partir de uma indicação de Ondina, não ir rápido demais e a cada encontro me perguntar: haveria uma especificidade do racismo como segregação? Certamente esta pergunta não foi respondida de primeira e sua resposta será construída a cada passo, encontro e texto.

Pretendo, neste texto, vislumbrar essa construção, mas já deixo uma importante indicação de Mbembe (2018) sobre a especificidade do racismo. Em “Necropolítica”, o autor afirma que “…a função do racismo é regular a distribuição da morte e tornar possíveis as funções assassinas do Estado” (Mbembe, 2018, p.18).

O primeiro texto lido na Unidade foi “Racismo 2.0” de Éric Laurent. Dentre muitas indicações importantes, como, por exemplo, a de que a raiz do racismo está no corpo e na fraternidade do corpo e de que os mercados comuns se equilibrarão numa ampliação cada vez mais dura dos processos de segregação, indicações, estas, de Lacan recolhidas por Laurent, uma me chamou atenção: “De fato, o racismo muda seus objetos à medida em que as formas sociais se modificam (…)”. Aqui, torna-se importante apresentar um pouco da minha pesquisa para clarear porque essa indicação, que parece autoexplicativa, em mim fez eco.

Minha pesquisa é resultado da inquietação provocada pelas recorrentes mortes de cidadãos negros na cidade do Rio de Janeiro. Tais mortes inquietam, pois ultrapassam e esgarçam a noção de civilidade. A pesquisa, portanto, se impôs como uma exigência. Olhos abertos e atentos à cidade do Rio de Janeiro, aos múltiplos bairros que a compõe, a diferença salta ao olhar. Não a diferença singular e inalienável a cada sujeito, ou as diferenças que, segundo Angela Davis, são como fagulhas criativas. A diferença que salta ao olhar, ao atravessar a cidade, é a diferença que marca o acesso, ou melhor, o não acesso, em última análise, à dignidade e à vida.

Diferença marcada pela cor e que determina a dita guerra sobre a qual nos reportam as manchetes dos jornais. Logo, essa guerra às drogas faz a polícia morrer e matar, e o exército operar apenas nas favelas, lugar de preto e favelado. Ali, até uma criança com roupa de escola é suspeita. A morte faz parte do cotidiano desta cidade, mas a expressão “bala perdida” parece não fazer mais sentido, principalmente quando o corpo que mais jaz no chão é o corpo negro. Aqui, a bala tem endereço. O corpo negro no Brasil, e, especialmente, no Rio de Janeiro, é um corpo alvejável[1].

Segundo dados compilados pelo Instituto de Segurança Pública com base em boletins da Polícia Civil, obtidos pelo UOL através da Lei de Acesso à Informação, entre janeiro de 2016 e março de 2017, 9 em cada 10 mortos pela polícia no Rio de Janeiro eram negros ou pardos, e cerca de 22% ocorreram em morros ou favelas. Segundo o mesmo Instituto, a cada 100 mortos no Brasil, 71 são negros; e, de acordo com o Atlas da violência, a estimativa é que cidadãos negros tenham um risco 23,5% maior de serem assassinados em relação a outros grupos populacionais. Além disso, do ano de 2005 a 2015, enquanto a taxa de homicídio caiu em 12,2% entre não negros, a mesma aumentou em 18,2% entre negros.

Estes números colocam em xeque de forma radical a democracia racial brasileira, ou melhor, o mito da democracia racial brasileira, ainda operante. Tal mito consiste na crença de que, no Brasil, brancos e negros têm as mesmas possibilidades de existência. Assim, o Brasil vendeu sua imagem de paraíso racial e, sobre ela, se constituiu. Uma das explicações para isto é a solução que o governo brasileiro encontrou para o problema da presença do negro pós-abolição: a miscigenação, a partir do fomento da imigração de brancos, principalmente, europeus. O objetivo do governo brasileiro era que, em 100 anos, não houvesse mais negros no país; objetivo que claramente fracassou.

O fracasso deste projeto não significou a extinção do racismo, mas sim lhe deu outras roupagens e maneiras de operar. Aqui, destaco o significante genocídio, entendido não apenas como morte física, mas qualquer tipo de estratégia que apaga a existência, como aponta Abdias Nascimento em “O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado”.

Depois deste breve panorama, é preciso nos perguntar: será que, no Brasil, foi o objeto do racismo que mudou? Não é o que parece.

Com isto, recolho uma importante indicação de Heloísa Caldas frente à persistência do racismo contra o negro no Brasil. Segundo ela, não se trataria de uma mudança do objeto do racismo, mas sim de uma mudança de semblante.

Lacan trabalha a noção de semblante a partir da sua teoria dos discursos. Os quatros discursos que ele elabora seriam indicados a partir dos deslocamentos dos termos da estrutura tetraédrica. O semblante é um desses termos. No seminário 18, Lacan aproxima a noção de semblante à noção de significante ao afirmar que “o significante é igual ao status como tal do semblante”. O semblante, em Lacan, se afasta da noção de falso, já que “a verdade não é o contrário do semblante” e “a diz-mansão da verdade sustenta a do semblante”.

Tomo, aqui, a noção de semblante como uma função; agente do discurso, como aponta Lacan; como as diversas roupagens das quais um discurso se serve a fim de se manter operante ao longo dos anos. A partir das indicações de Laurent e Heloísa, poderíamos afirmar que o racismo no Brasil se manteve operante, pois seu semblante mudou à medida que as formas sociais se modificaram? Assim, conseguiríamos vislumbrar as relações históricas do racismo contra o negro no Brasil, quer dizer, a escravidão, a miscigenação, o mito da democracia racial e, atualmente, o genocídio da população negra, como semblantes de um discurso racista?

A aproximação entre semblante e significante também nos faz introduzir este outro conceito de Lacan. Dentro da lógica do racismo, a criação de significantes condensa e veicula o gozo a ser segregado, direcionando a segregação a qualquer um que seja atravessado por este significante. Achille Mbembe (2018), em “Crítica da razão negra”, ilustra como isto ocorre com a criação do nome negro, tomado, aqui, como significante:

“…o nome “negro” foi, desde sempre, uma forma de coisificação e de degradação. Seu poder era extraído da capacidade de sufocar e estrangular, de amputar e castrar. Aconteceu com esse nome o mesmo que com a morte. Uma íntima relação sempre vinculou o nome “negro” à morte, ao assassinato e ao sepultamento. E, óbvio, ao silêncio a que deveria necessariamente ser reduzida a coisa – a ordem de se calar e de não ser visto” (Mbembe, 2018, p. 264).

Vimos que, no Brasil, não parece ser uma mudança de objeto, mas sim uma mudança de semblante que mantém o racismo contra o negro, já que o objeto do racismo permanece o mesmo. Ele se mantém, mas a maneira que se apresenta já não é a mesma, levando muitos a acreditar que não há racismo no Brasil.

Retomamos, mais uma vez, a citação de Laurent, desta vez, completa: “De fato, o racismo muda seus objetos à medida que as formas sociais se modificam, mas, conforme a perspectiva de Lacan, sempre jaz, numa comunidade humana, a rejeição de um gozo inassimilável, domínio de uma barbárie possível”. Aqui, cabe perguntar: a manutenção do racismo, a partir da mudança de semblantes, seria sustentada pela rejeição deste gozo inassimilável, domínio de uma barbárie possível? Ou seja, o racismo contra o negro no Brasil persiste por: 1) seu semblante mudar à medida que se modificam as formas sociais; e, 2) por estar sustentado por um gozo inassimilável? Poderia ser, esta, uma chave de leitura para as barbáries que presenciamos, as mortes sem fim?

Termino com uma indicação de Marcelo Veras, uma perspectiva não a partir do que segrega, mas daquele que é alvo da segregação e o que ele faz com isto:

“…o Outro para o negro, no Brasil de hoje, são os milhões de negros escravizados, em subempregos, as mães empregadas domésticas, os jovens negros assassinados a cada 23 minutos, os pais humilhados, etc. Eis porque o significante reparação é tão importante na questão do racismo hoje”.

Para o negro no Brasil, segundo Veras, o significante a ser destacado é reparação, reparação do Outro, o que nos leva a entender o movimento de resgate da ancestralidade, da história, música, dança, vestimentas, literatura, filosofia e religião africanas, por muitos jovens negros no Brasil como afirmação da sua negritude como vida que vale a pena ser vivida frente ao genocídio de sua população. Isto não parece ser muito diferente de um dos movimentos que Césaire (2012) apresenta em seu poema “Diário de um retorno ao país natal”:

Ó morte teu pântano pastoso!

Naufraga teu inferno de destroços! aceito!

No fim da madrugada, poças perdidas, perfumes errantes, furacões encalhados, cascos sem mastros, velhas chagas, ossos apodrecidos, boias cegas, vulcões acorrentados, mortos mal enraizados, gritar amargo. Aceito!

E a minha original geografia também; o mapa do mundo feito para o meu uso, não pintado com arbitrárias cores dos sábios, mas de acordo com a geometria do meu sangue derramado, aceito

e a determinação da minha biologia, não prisioneira de um ângulo facial, de uma forma  de  cabelo,  de  um  nariz  suficientemente  achatado,  de  uma  tez  suficientemente melânica, e a negritude, não mais índice cefálico, ou um plasma, ou um soma, medindo- se agora ao compasso do sofrimento

e o negro cada dia mais baixo, mais covarde, mais estéril, menos profundo, mais disperso,  mais  separado  de  si  mesmo,  mais  sonso  consigo  mesmo,  menos  imediato consigo mesmo

aceito, aceito tudo isso

[1] O termo alvejável foi utilizado por Luiz Eduardo Soares no livro “Ódio, segregação e gozo” (2012, Subversos).

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Referências Bibliográficas:

CÉSAIRE,  Aimé.  Diário  de  um  Retorno  ao  País  Natal.  São  Paulo:  Editora  da Universidade de São Paulo, 2012.

LACAN, Jacques (1971). O Seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.

LAURENT,    Eric.    Racismo    2.0.    http://ampblog2006.blogspot.com/2014/02/lacan- cotidiano-n-371-portugues.html Acesso em 14/07/2018.

MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. São Paulo: n-1 edições, 2018.

 ________________ Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. São Paulo: n-1 edições, 2018.

MILLER, Jacque-Alain. Racismo e extimidade. In: Derivas analíticas: Revista digital de psicanálise e cultura da Escola Brasileira de Psicanálise – MG. Nº: 4 (Maio 2016). VERAS, Marcelo. A contingência negra. In: Correio Express https://www.ebp.org.br/correio_express/extra001/texto_MarceloVeras.html acesso em 14/07/2018.

https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2017/07/26/rj-9-em-cada-10- mortos-pela-policia-no-rio-sao-negros-ou-pardos.htm acesso em 14/07/2018.

https://g1.globo.com/politica/noticia/enquanto-homicidios-de-negros-crescem-taxa-cai- no-restante-da-populacao.ghtml acesso em 14/07/2018.